A BELA ADORMECIDA

Bela olhava, no espelho, as mãos da cabeleireira deambularem com destreza pelos seus caracóis, por onde fios de prata carregavam anos e enredos no seu curriculum de vida. Num homem, as cãs podem ser surrealmente charmosas e sedutoras. Numa mulher, graças a milénios de subjugação e misoginia, não passavam de patilhas esbranquiçadas que, tal como a hera, trepavam insidiosamente por toda a sua cabeça. Notas de branco que indicavam aos machos a aproximação do fim do seu período fértil, reprodutor, da sua vida no ativo na única profissão, válida aos olhos do mundo, em que as mulheres tinham, se é que tinham, algum reconhecido mérito. Na sua vida nem os cabelos brancos falavam verdade. Era nova ainda, apenas precoce. Sempre fora. E não era infértil. Tinha, agora, a quase, quase certeza. Quatro testes de gravidez, a uma fortuna cada um – isso é que tinha sido um investimento na natalidade -, Bela sabia estar grávida. Sentia coisas novas e inesperadas a acontecerem no seu corpo, na sua mente, no seu coração. Uma sonolência sem princípio nem fim que a atacava a qualquer minutos do dia ou da noite. Parecia dopada. Nem precisava de fechar os olhos. Apenas pestanejava e pronto, caía num sono do qual ninguém a conseguia acordar. Não podia ser outra coisa que não um filho, já a tagarelar os seus afazeres. Mas precisava mais do que apenas isso. E por isso entenda-se a sua mera intuição e quatro testes de gravidez que podiam ser de outra pessoa. O patrão só iria lá com algo mais sólido. Alimentaria o seu caso nessa mesma tarde: consulta num obstetra e um papel que apresentaria na empresa. Não tinha um mau patrão, atenção. Nada disso. A questão era outra: o patrão era também o pai da criança. Enfim, do feto, que como em tudo na vida, há que ir com calma e não saltar etapas.

 

A BELA ADORMESIDA

A sua vida não era em nada original. O caso típico de secretária que se encanta pelo patrão. Patrão aproveita a deixa. Os dois enrolam-se, por assim dizer. Secretária engravida. Patrão desconfia. Patrão torna-se mal-humorado. Patrão afasta-se. E, claro, o patrão é casado. Também ele sem grande originalidade, é casado com a filha do dono na empresa. Um caso clássico, dir-se-á. Mas um clássico é um clássico e quem não gosta de um falará mentira, seguramente. Bela esperaria a confirmação das análises para as acenar, apenas ao de leve, ao patrão. Teria de engolir em seco, já que ela jamais prescindiria deste filho. O patrão não precisava de ficar na sua vida. Nada lhe pedia, como, de resto, nunca pedira. Apenas aconteceu assim. Estava feito. Nada de olhar noutra direção que não fosse em frente. Não que o amor pelo patrão fosse insignificante. Não era. Não que o amor pelo patrão fosse desmesurado ou digno de telenovela. Também não era. Mas era um amor. Isso era. Um amor. Sem mais adjetivos e só isso já era mais do que muita gente conhece em toda a sua vida. Depois de arranjar o cabelo, daria um jeito na casa. Nada como umas boas limpezas para arejar a cabeça e organizar ideias. Depois, daria também um jeito ao coração. Definitivamente, um jeitinho ao coração. Tinha de estar tudo concluído até ao nascimento da criança. Precisava de voltar a entregar-se à vida. Sem apagamentos, sem desinteresses que isto tudo passa muito depressa. Uma vida sua. Uma nova, de preferência. Acordaram-na. O cabelo já estava. Com tanta escovagem, claro que tinha voltado a adormecer. Se gostava do penteado? Sim. Bastante. Por acaso sentia-se outra. Diferente. Tinha apenas tempo para uma sopa ou uma sandes. Um café, seguramente. Não fosse deixar-se dormir no autocarro e ir até ao fim da linha. Isso, sim, seria o fim da linha. Implicaria nova consulta.

O consultório era acolhedor. Muito limpo e silencioso. Cheio de janelas e luz natural. Tinha um bom feng shui, como diria a revista feminina que comprava avidamente a cada fim do mês no quiosque do Sr. Humberto e em cujas páginas aprendia uma novidade a cada mês. Em janeiro ficara a conhecer as bagas góji e as sementes de chia e como fazer um cocktail para o patrão… Olhando para a varanda de uma das janelas, dececionou-a perceber que a trepadeira que se agarrava afincadamente à parede, ou assim parecia, era, afinal, artificial. Num ambiente tão meticulosamente pensado e agradável, aquela era uma telha partida em dia de chuva. Apenas aquele sinal de plástico – provavelmente da loja do chinês – e tudo o resto tinha automaticamente perdido a graça. Não podia ser tão exigente, mas em tudo o que tinha a ver com a estética, Bela não perdoava. Algo se fechava lá dentro perante a feiura, a desarmonia, o desencaixe de qualquer elemento. Também já tinha sido assim com os homens, mas conhecem-se mais homens do que consultórios médicos, pelo que já se afeiçoara aos defeitos dos primeiros. Esperava não ter de se tornar cega aos desajustes dos segundos também. Pelas suas contas, seria a quinta mulher a ser chamada naquela sala cheia de fêmeas férteis e algumas já visivelmente grávidas. Todas sorriam para o nada. Deve ser por isso que se chama estado de graça. Pelos sorrisos. Ensaiou um também. Um só seu. Estava neste casting de sorrisos quando ouviu o seu nome: Anabela Custódia. Admirou-se, mas não negou o jeito que lhe dava passar à frente daquela gente toda. Jamais a privilegiavam no que quer que fosse. Não ia, agora, rejeitar a inédita oferta. Agarrou aquele último sorriso e com ele avançou para a receção.

 

A BELA ADORMESIDA

A enfermeira, de olhar sisudo, pareceu imune ao seu estado de graça. Não interessava. Não iria desmanchar aquele rasgo nos lábios. Agora era seu e do seu bebé. Ao pousar os olhos na sua ficha, a enfermeira voltou a olhar Bela diretamente nos olhos. Que mulher estranha, pensou Bela já a acusar fartura daquele escrutínio maldisposto. Entraram no gabinete número cinco. Era um bom número. O médico, muito jovem ainda, tratou-a com salamaleques que lhe souberam pela vida. Estar grávida era maravilhoso! Nove meses daquilo seriam o céu na terra. Ele confirmou, já o sabia, as suas gigantescas suspeitas. Mais do que isso, ele apenas sublinhou as suas certezas, mas de uma forma atabalhoada, nervosa, por ventura, disse-lhe que tinham de conversar. Pois bem, tinha tempo, até porque passara à frente de quatro pacientes. Nada mau! O médico avançou então para zona desconhecida, inesperada. Um itinerário que Bela desconhecia por completo. Era como se a conversa fosse de táxi e depois dos bilhetes postal de Lisboa estivesse agora a avançar por Chelas. O médico continuava a conduzir as palavras para terreno estranho. Ruelas estreitas de paisagem desagradável. Suburbana. Sub-humana. Meteu tanta informação, fez tantas perguntas e deu tantas recomendações, quase ralhetes, pelo meio que Bela quase não entendia aquela frase fatal:

– A Bela tem Sida.

Qual Bela? Ela? Sida? Como? Não dava sangue e também não tinha tido, assim, tantos amantes. Sem proteção, então, poderia nomeá-los a todos que ela não era nada vaga em assuntos de cama. Era bem esclarecida e exigente. Higiene acima de tudo. Segurança antes de mais. Como teria acontecido? Não conseguia livrar-se do sorriso que inaugurava o seu estado de graça, o que deve ter baralhado o médico, que lhe perguntou se entendia. Claro que entendia. Não entendia Bela mais nada. O quê? O médico chorava? Contava-lhe que a mãe dele tinha morrido de sida? Seria parvo? Não percebia o despropósito? Bela consolou-o. Acalmou-o. São coisas que acontecem. A vida é um destrambelhamento, nós é que andamos sempre com óculos de alinhavar, que vão remendando, cosendo e chuleando as pontas e as imperfeições. Já não se morre de sida e o meu bebé nascerá saudável. Era o milagre dos ‘retrovitais’. Ele sorriu. Desanuviou sem se atrever a esclarecer se fora uma brincadeira ou ignorância. Não suportaria se fosse o último caso. Bela tinha um filho lá dentro. Bela tinha imenso sono. Bela tinha sida. Tudo lá dentro. Na companhia do filho. Na calma dos húmus. Na ânsia dos humores.

Tinha mesmo de dar um jeito ao coração e mais outro à sua vida. Uma nova, de preferência. Uma vida melhor, seguramente, ou titubeantemente. Sim, é verdade, chamo-me Bela e tenho Sida. Mas hei de ser feliz. Era tudo uma questão de mind setting, esclarecia a sua revista feminina. Feita de mulheres, para mulheres. Elas sabiam do que falavam. Bolas! Teria de dizer ao patrão: 1) Ia ser pai; 2) Tinha de fazer análises ao sangue para ver se também ele não estaria infetado. Mais logo. Agora esperava-a o autocarro. Com sorte, um lugar à janela. Encostaria a cabeça ao vidro. Dormiria. Deu uma gargalhada. Na sua cabeça bailava um sinistro mas divertido jogo de palavras: seria A Bela Adorme-SIDA.

 

Moral da história:

Não durma nunca em serviço, mas caso tal aconteça, aproveite para sonhar.

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