Hoje dei por falta de uma palavra. Por mero ‘caso’, como a maioria das descobertas. E digo propositadamente caso e não acaso, porque o que me levou a perceber a ausência de léxico foi um caso triste. Muito triste. Na verdade, um caso tão extraordinário na sua negatividade e no seu drama que permite todo o tipo de adjetivação e exagero semântico, na medida em que seja qual for o grau empregue, ficará sempre aquém daquilo que mesmo quem está de fora possa sentir. Eu própria não estou dentro do vórtice sentimental. Por sorte, encontro-me já num lugar relativamente seguro e sossegado, com direito a cadeira, a um coração sereno e a espaço mental para pensar naquilo que estou a pensar, sem o atropelo da dor extrema, do soluço convulsivo, das lágrimas que cegam. Permite-me até o macabro exercício – cristão, dirão os crentes – de me forçar a calçar os sapatos dos outros. Daqueles que o fado, Deus ou o destino não poupou à dor suprema nesta véspera de Natal, que tudo torna tão mais doloroso, tão mais descabido e tortuoso. Tenho, portanto, estado para aqui a colocar-me no lugar dos outros. Daquele homem jovem que acaba de perder a mulher quando se encontrava a milhas de distância do local e da hora a que ela inexplicavelmente morreu. Aquele jovem homem que se encontrava num local afetivo de conforto extremo, demasiado apaixonado ainda e que flutuava na felicidade suprema do segundo filho, de apenas dois meses. No abreviamento que o meu perímetro de segurança permite, pensei logo de seguida que ele é agora viúvo. Um viúvo que vai sofrer, mas que sobreviverá e que tem ainda futuro. Demasiado futuro para que não tenhamos fé na sua próxima felicidade. A vida dele vai seguir em frente.

Pensei antes disso ainda, nas duas crianças, a de dois meses e a de dois anos, cuja diminuta existência, a qual se contabiliza em tempo, jamais permitirá uma recordação que seja da mãe. Essas crianças são agora órfãs. Órfãs que, de forma consciente, não conhecerão outra existência que não a de pai único. Sentirão uma dolorosa e invisível ausência do colo materno, mas daquela forma estranha com que sentimos a falta de algo que apenas desejávamos ter e não temos. Algo que tudo dávamos para experimentar, mas que nunca tivemos. Consolo-me para aqui a acreditar que será melhor assim do que viver com a eterna saudade de algo que se chegou a saborear em pleno e que, depois, num nanossegundo de inexplicável destino, acabamos por perder para sempre. Não será melhor com praticamente zero anos do que com seis ou dez? Neste momento, quero e vou acreditar que sim, que é melhor assim, nunca ter chegado a ter, do que ter e perder, e que o amor de todos os outros que rodeiam estes órfãos permitirá rotas de alegria e felicidade e que muitos braços consigam chegar perto dos dois que agora se foram. A vida deles seguirá em frente, pois se algo lhes assiste ainda, é o tempo. É o futuro.

By Dorothea Lang

Recuando ainda mais, pensei, no primeiro de todos os lugares, nela e sobre ela ocorreram-me tantas coisas que julgo não terem sequer lugar aqui. Coisas tão grandes e tão pequenas quanto os presentes que imagino que já teria embrulhado para oferecer daqui a uns dias. Pensei que para ela acabou o amor e o tempo, pilares básicos de qualquer existência digna disso mesmo, de existência. Esgotou-se-lhe o futuro.

Não sei explicar porquê, mas só depois pensei, apenas depois de todos eles, pensei na mãe que perdeu a filha e o relógio voltou a parar no peito. Foi então que percebi que para ela nem futuro, que mereça tal designação, nem palavra que designe o seu estado de pessoa que perdeu um filho. De alguém que perdeu alguém, sendo esse alguém um elemento vital à sua existência. Percebi que não nomeamos tudo. Há coisas para as quais não temos palavras.

É estranho. Demasiado estranho para não ser intencional que não tenhamos uma palavra que passe a nomear a mãe que perde um filho. Mais sapiente do que eu, a língua sabe bem que há coisas inomináveis. Coisas que, de tão tenebrosas e sofridas, a teoria rejeita à partida, como uma impossibilidade sentimental que impedisse, por isso mesmo, a sua própria verbalização, a sua ortografia, a sua consignação em dicionário, a sua nomeação. A mãe que perde um filho é apenas isso, a mãe que perde um filho. O pai que perde um filho, apenas um pai que perde um filho. São ‘insubstantiváveis’. A dimensão da dor, a vastidão do sítio sombrio por onde o ser humano deambula após a perda do seu principal órgão vital só parece admitir escuridão, vazio, ausência total, até mesmo de signos gráficos. É um espaço morto onde não se contemplam sequer palavras. Nem mesmo apenas esta, a que falta. Por isso, se calhar, não é tão estranho quanto isso que faltem palavras. Que falte esta palavra, pelo menos, que de tão inconcebível não foi inventada. Não foi contemplada. Talvez na vã esperança de que nunca fosse permitido empregá-la, com ou sem propriedade. Um pouco como em certas crenças pagãs, nas quais não se nomeia aquilo que mais se receia, aquilo que nem deveria ter nome, para que não se caísse na tentação ou no descuido de se nomear o inominável, nem mesmo quando parecesse necessário. Para não acordar a besta. Uma espécie de exorcismo preventivo. Se não tem nome, então, não existe. É simples. E aquilo que não existe não pode ser sabido. Logo, aquilo que não sabemos não nos pode fazer mal. Mas faz. Porque mesmo sem palavras, sem nomes ou substantivos, essa perda existe e, sem nome, tudo parece ainda um pouco mais despropositado e insensível. Mais cruel até. Como não se teve coragem para encontrar um nome para dar à mãe (ou pai) que perde um filho? Não seria a única coisa que lhe poderíamos dar? Melhoraria fosse o que fosse? Não. Não melhoraria coisa alguma. Mas neste momento, parecia-me justo que alguém ‘órfão’ de filho, uma ‘jánãomãe’ ou um ‘jánãopai’, decepado do braço armado do amor não fosse apenas alguém que perdeu alguém.

Falta-nos essa palavra. Parece-me.

 

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