A – Já sabes da Pequena Sereia?

B – Qual Pequena Sereia?

A – A fulana do rés-do-chão direito, vizinha do Nemo, aquele gay muito educado e colorido, que trabalha no Trumps e tem aqueles cães adoráveis, um todo castanho e outro todo preto. Tu conheces!

B – Aquele que tem um corpo fan-tás-ti-co?

A – Esse mesmo. Vive ao lado de uma ruiva espampanante, não sabes quem é?

B – Ah, sim, aquela que tem uma cabeleira farta e flamejante e usa, invariavelmente, saias ou vestidos com corte de sereia? Parece saída de um filme dos anos ’80?

A – Isso! Daí chamarem-lhe, aqui na vizinhança, a Pequena Sereia.

B – Ok, ok, sei perfeitamente, sim. O que tem?

A – Imagina tu, que consta que agora anda de romance com um beto qualquer.

B – Um beto? Um beto faz-de-conta, não?

A – Estás enganada. Um beto, beto, mesmo! Vive em Cascais e tudo.

B – Mas ela não é nada bem!? Também há pobres em Cascais, não será um tipo armado ao pingarelho, que encontrou, afinal, a sua alma génia?

A – Queres dizer gémea?

B – Não. Quero dizer exatamente aquilo que disse. A duas almas, para se corresponderem em toda a sua dimensão e plenitude, não lhes basta serem gémeas, têm de ser geniais. Quantos gémeos conhecemos que nem se podem ver?

A – Eu não conheço um par que seja…

B – Mas já viste casos desses na televisão, não é isso que agora interessa…

A – Tu é que me perguntaste!

B – Era uma questão retrógrada…

A – Retórica?

B – Não. Que diabo! Mas vais estar sempre a interromper-me e a querer corrigir-me? Sei perfeitamente o que digo. É retrógrada, no sentido em que apenas nos está a fazer andar para trás nesta conversa.

A – Tens razão. Vá, pronto, a miúda anda mesmo com um beto de Cascais e tudo. Certo. Qual o problema disso? À parte a aberração, pois que ela, de facto, parece-se mais com uma peixeira do ‘povão’ do que outra coisa qualquer. Manda cá cada ‘pregão’, quando se metem com ela na rua!

B – Não parece, é mesmo. Ela é filha da Idalina do Mercado da Ribeira e é quem está à frente da banca de peixe da família há já uma data de anos. Tem o maior jeito e tudo! Muito dengosa, muito apelativa, com aquela farta cabeleira e a pele muito branca, se bem que atira para o ‘acnoso’, não achas?

B – Completamente. As borbulhas veem-se à distância…

A – Mas a freguesia adora a miúda. Agora, estás a ver, não é?! Como é que uma criatura da praça, que deve ter escamas sob as unhas, se vai encantar com um afetadinho da linha, todo lambidinho e cheio de maneirismos?

A – Sabes que o amor é alcoólico, certo?

B – Ahahaha. Alcoólico?

A – Sim, completamente. Por muito intoxicado que esteja, encontra sempre, sempre o caminho de casa. O mais certo, é terem sido feitos um para o outro.

B – Às tantas, é mesmo isso! Logo, este não é bem um mexerico, certo, é apenas um facto: Pequena Sereia encontra o amor nos braços de um beto.

A – Calma, não é tudo. Dizem, agora, que o tipo é casado!!!

B – Não me digas! Lá está, deve ser beto mas teso e a miúda, peixeira, deve fazer uma nota no mercado, sabes como anda por aí tudo doido com a história do Ómega 3 e da dieta mediterrânica e a moda das sardinhas. Deve ser só faturar.

A – Isso não deve andar longe da verdade, se bem que se ganhasse dinheiro a valer, achas mesmo que vivia naquele rés-do-chão? Aqui no bairro?

B – Porque não? Agora é chique viver nestes bairros antigos e pitorescos e mais não sei o quê?

By Antonio Mora

A – Deve ser mais por causa do não sei o quê do que pelo chique. E mesmo o pitoresco, só me lembra pobreza ou já viste algum rico pitoresco? Rico é rico, faz coisas de rico não anda por aí com gente da praça nem visita rés-do-chão direitos.

B – É certo. Mas, e então, como souberam que o tipo era casado?

A – Então não é que a mulher do coisinho apareceu aí um dia a perguntar pela Pequena Sereia, referindo-se à pequena como ‘a Ruiva’ e a coisa deu para o escândalo?

B – Bolas, devias ter começado a conversa por aí.

A – Se tu nem sabias bem quem era a miúda, ou com quem andava, como querias que começasse pelo meio?

B – Tens razão, adiante. E depois?

A – Foi a Idalina quem a recebeu, de roupão e chinelas, com meia dúzia de carapaus frescos na mão e outros tantos impropérios.

B – Bem!!! E a outra? A beta? Meteu a viola no saco e desandou, certo?

A – Errado. Vinha preparada para as trincheiras e sacou de não sei quantas petingas à outra. A Idalina quase sufocava de ira. Claro que, quando percebeu a estirpe da outra, vieram de lá as xaputas e os chicharros e arrumou a beta de vez. Dizem que lhe disse que se não era capaz de manter satisfeito um choninhas daqueles em casa, então não era mulher nem nada, que aquela coisinha a que chamava marido se devia contentar até com jaquinzinhos e se ela nem isso tinha para lhe dar, mais valia dobrar o avental.

B – Não posso!

A – Podes, podes, e não é tudo. A Idalina ainda lhe atirou com um balde de choquinhos em cima, dela e do carro de alta cilindrada que teve o azar de estacionar à porta. Quando, finalmente, se meteu no carro e ligou, estupidamente, os limpa para-brisas, era só tinta preta. Nem sabem como conseguiu sair dali com o vidro todo preto.

B – Ahahahaha. E já imaginaste o cheiro daquilo no vidro?

By Robert Minnick

A – Um fartote. Que pena não ter assistido. O que eu me iria rir.

B – Mesmo!!! O beto, está visto, nunca mais deu à costa, certo? Que essa gente é muito apaixonada enquanto os níveis de civismo ainda estão nos mínimos olímpicos, quando a coisa descamba…

A – Enganas-te. Tem sido visto aí, a altas horas da noite, com os seus pullovers em tons de alfazema pelos ombros, faça chuva ou faça sol.

B – A Pequena Sereia não se importa com a outra? Será que sabia?

A – Dizem que não está nem aí, para o assunto. Anda a papá-lo, ao que tudo indica, mas não deve achar que tem ali um príncipe encantado, seguramente.

B – Um beto terá unhas para a ruiva da praça?

A – Que queres que te diga? O amor é…

B – Alcoólico, já sei, por isso cega e entorpece todos os outros sentidos.

A – Isso mesmo! Vês como já sabes?

B – E a beta, que tal era ela?

A – Segundo ma descreveram: anafada, petulante, claro, cabelo oleosíssimo e muito mal-vestida.

B – Jura!

A – Sabes que não juro, mas até o poderia fazer, pois quem me passou tal informação foi o Kikas, o cabeleireiro, e se alguém percebe de óleos e guarda-roupa é ele.

B – Em que é que isto vai dar? Não estou a vê-lo a deixar a mulherzinha.

A – Pois, isso só nas histórias infantis mais parvas. Essa gente casa com apelidos e jamais deles prescinde, sabes como é. Ou achas que ia, agora, casar-se com a fedelha da Pequena Sereia e ter a Idalina como sogra e um besugo de filho? O mais estranho é que o fulano exige à miúda que largue a praça, que deixe aquela vida madrugadora e que se mantenha muda e queda em casa, para que a relação não dê nas vistas.

B – ‘Tás a gozar! Muda e queda? Então, mas isso é como tirar um peixe da água. A miúda nasceu peixeira, ganha bom dinheiro, ou, pelo, menos faz a vida dela, tem umas curvas capazes de seduzir qualquer cachalote e ia agora deixar tudo por causa de um afetado?

A – Devem entender-se às mil maravilhas na cama, não achas?

B – Só pode. Em tudo o resto parece estar a juntar-se um balão a um alfinete e ainda assim querer acreditar que serão felizes para sempre. Olha a Idalina na Quinta da Marinha, ou coisa que o valha, com a sua carrinha a cheirar a peixe e a dizer: “Compre à Idalina que é coisa fina!”

A – Sim, e a chamar ó-freguês ao ‘genro’. Era lindo!

B – Devíamos tirar essa história a limpo. Vigiar a Pequena Sereia, ver quem entra e quem sai. A que horas, puxar pela Idalina, falar com o Nemo, sei lá! É uma história demasiado boa para que não tenhamos detalhes.

A – É certo. Devíamos falar com o Kikas, queres melhor? Ele sabe tudo, incluindo aquilo que não sabe. Vai-lhe tudo parar às mãos. Ele nem precisa de perguntar.

B – Temos é de o deixar falar, caso contrário começa a puxar por aquilo que sabemos e no final, quem fica a saber nada somos nós. Temos de nos fazer de parvas e ir perguntando.

 A – Isso. Podemos ir lá agora. Olha, olha, vem de lá a sair o Nemo. Que homem! Pena, e tanta, não jogar do nosso lado. Será mesmo um caso perdido? Haverá reconversão possível?

B – Não sejas parva. Isso não interessa neste momento. Foca-te. Concentra-te. O assunto, agora é a Pequena Sereia e a betolândia. Nada mais.

A – Olha, olha, aquele deve ser o beto da ruiva, de boina e óculos escuros, deve ser para passar despercebido, mas entrar aqui no bairro com um ‘gilletzinho’ cor de canário e sapatos sem meias é como trazer um letreiro na testa, quer dizer, Helooo!!

B – Sim, sim, e agora olha para todos os lados para ver se ninguém o vê a tocar à campainha. Olha!! Que maroto!

A – Aahahaha. ‘Tadinho, devem ser todos tapados lá na rua dele.

B – Mas, espera lá! Tu estás a ver isto?

A – Ahahahaha. Não dá para acreditar. É bom demais!! Por isso a ruiva não estava nem aí. O gajo anda mas é com o Nemo.

B – Enganaram-se no rés-do-chão.

A – Ah, agora percebo. Por isso, alguém dizia que a Pequena Sereia ainda ganhava algum com toda esta história da mulher já saber e andar atrás dela. E essa parte eu nunca entendi. Deve arcar com a fama, o Mr. Trumps e o totózinho de Cascais pagam um quanto à bela peixeira e sempre que a mulher lhe apetecer dar à costa, para vir defender o seu belo casamento, a banca de sardinha salta-lhe para a espinha e a outra julga que está apenas a ser traída, quando está a levar o maior calote de todos os tempos.

B – Sabes que mais? Mais vale pobrezinha, mas não viver mentiras.

A – Isso não! Já que é para pedir, que se peça o kit completo. Bom mesmo é ser riquinha e não viver mentiras, mas isso só nas histórias da carochinha, certo?

B – Olha, olha. Quem é a gorda que espreita à janela do terceiro esquerdo? Não é a casa da Simone? Quem estará em casa com aquela gorda, ela ou o marido? Ou a gorda é a Simone?

A – Vai-se lá saber, mulher? Como isto anda… Além de que ela sempre foi muito estranha, não achas?

B – Estranha sou eu, ela é uma aberração. Nunca topaste como nos come com os olhos, sempre dos pés à cabeça, como se quisesse decorar o nosso modelito todo?

A – Sim, sim, nem nos olha nos olhos. Às tantas é bi.

B – De relance, pareceu-me ver cabelo ruivo na mesma janela da gorda, queres ver que a Pequena Sereia também está metida neste outro caso?

A – Isto começa a parecer a novela da noite, ‘melher’!

B – Vamos ter com o Kikas, anda!!!

A – Vai-nos sair caro, sabes disso, não sabes? Não levas nada dele sem, pelo menos uma mini-vague, que aquele é outro com olho para o negócio. É pior que a ruiva peixeira.

B – Eu aproveito e faço uma mise, não te apoquentes. E vai com tato que o Kikas não é vago, ok?

A – Kikas, amor, conta-me lá a história da Pequena Sereia que não entendo patavina do que dizem por aí na rua.

 

K – Minhas queridas, A Pequena Sereia andava com uma tipa estupenda, de Cascais. O marido soube do caso e apareceu por aí. Enganou-se a tocar à campainha, foi acordar o nosso príncipe Nemo. Ia cheio de coisas para dizer, mas logo que viu aquele deus grego, foi queca à primeira vista. Como nós o compreendemos, não é minhas lindas!?? Nunca mais se largaram. Quem já saltou para outra foi a estouvada da Pequena Sereia. É tão moderna. Mais do que isso, aquela miúda é contemporânea. Dizem que agora… faz casais. A ser verdade, é a primeira do bairro a ‘fazer’ casais. Dizem que até já duplicou a freguesia no mercado. Até fazem fila e, por este andar, qualquer dia até farão bichas! Ahahaah. Por mim, está perfeito, se soubessem a quantidade de clientes que agora quer ser ruiva. E vocês meus amores, vai uma corzinha?

A – Olhem, olhem, de quem é aquele carrão à porta da Justina? Ouvi dizer que o filho ganhou para aí um dinheiro, será dele?

B – Onde, onde?

K – Deixem-me ver… Ah, não, é do Capitão Gancho, o dono da drogaria. Vendeu uns terrenitos que eram da mãe, lá para o Cartaxo. E, darlings, aquele carro também não é assim lá grande coisa. Mag-ní-fi-co é o da Pérola, a stripper.

A – Stripper?

B – Quem? Aqui da rua? Conta-nos tudo, Kikas, conta-nos tudo… Ai, estás a queimar-me com o secador…

Moral da história: Matar tempo é tarefa para apenas uma pessoa de cada vez. Logo que duas se juntam, acontecem outras coisas e o tempo não morre.

 

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