Tinha o vício confesso de olhar cada estranho como personagem de um qualquer enredo literário ou cinematográfico e tentar adivinhar-lhe uma profissão, as suas intenções, possíveis gostos, uma complexa e refinada teia de afetos, um código moral e até fragmentos de uma vida. Foi, portanto, com normalidade detectivesca que se atirou com ânimo e determinante empenho ao guião de um tipo que acabava de entrar no café. Era um espécime maravilhoso. Não era particularmente bonito, ao nível do que é comummente aceite como beleza, mas tinha um rosto soberbo, talhado na madeira – parecia mesmo – com pouca arte, mas enorme paixão. Os traços geométricos pendiam para o ângulo reto, e a pele queimada cheirava a sol e maresia. Era um daqueles rostos que impressionam não pelo que mostram, mas pelo que escondem, por tudo aquilo que nos levam a acreditar, sem que digam uma única palavra. Era um velejador, um homem do mar, um aventureiro, ou apenas um pescador em dia de terra, ou tudo isso a uma só vez. O corpo era firme e sólido, musculado e sóbrio, não obstante a magreza, quase secura, tudo conjugado numa volumetria muito equilibrada e sedutora. Não era novo. Não era velho. Um tipo físico incrível. Memorizou-o, estudou-o, mimetizou-o naquilo que lhe era possível, estando também ela ali, sentada, num local público, completamente envolvida em observar um estranho que, num instante, poderia reparar naquilo que ela se entretinha a fazer. Podia, depois, abordá-la, confrontá-la, ou confundir a sua curiosidade por uma qualquer, e bastante pouco sofisticada, técnica de engate. Não podia deixar que tal acontecesse. Acreditava, todavia, que eram receios infundados. Havia determinação no olhar do homem. Ele vinha em busca de algo ou alguém. Após passar os olhos por todas as mesas, sentou-se numa perto da janela e olhava ansiosamente para a porta e para os transeuntes, desejoso de reconhecer num deles, a pessoa que aguardava. Sim, era um encontro. Um encontro amoroso. Uma coisa recente ou ainda por acontecer. Nada de absolutamente casual, pois caso fosse, ele não lançaria tal brilho dos seus olhos e não seria tão audível o batimento do seu coração, o pulsar do seu desejo. Ele vestia-se de forma descomprometida, mas com o seu charme. Uma camisola de gola alta, sobre esta, um casaco de malha, umas calças de ganga e umas botas de atacadores, a lembrar as típicas botas tradicionais dos trabalhadores rurais.

By Antonio Mora

O cabelo num desalinho, mas lavado e brilhante, num tom que oscilava, conforme a luz e o movimento da cabeça do homem, entre o ruivo e aquele louro típico da salmoura, do sol e da praia. Um surfista? Não. O visual negava-o. Ainda um pescador, ou um marinheiro. Um aventureiro. Aquele tipo de homem que imaginamos autossuficiente, a conseguir fazer tudo com as próprias mãos, desde uma jangada em caso de aperto, a enrolar uma folha de tabaco, ou a substituir uma torneira sem ter de recorrer à internet. Deu por si sem conseguir retirar os olhos da nuca daquele fulano fascinante. Sentia-se triste por saber que não era ela própria quem ele esperava com ansiedade. Que não seria ela a beijar aquela pele rude e torrada e que jamais cheiraria os elementos na ondulação daquele cabelo rebelde, onde se escondia o vento, o sol e a chuva. A sedução dá por vários nomes, de facto. Se não soubesse quão vão e inconsequente era aquilo que sentia e chamar-lhe-ia paixão. Sim, não fosse ele um estranho e ela insignificante na vida daquele homem e diria que estava a apaixonar-se por aquele fulano-mistério, aquela promessa de aventura, aquele corpo musculado sem um segundo de ginásio… Ele ergueu o braço. Assinalava a sua presença a alguém que se aproximava e que ela, por não saber o que procurar, ainda não tinha visto? Retesou-se. Perscrutou a porta. Olhou a rua. Ele erguia de novo o braço. Chamava o empregado. Nada mais. Apenas chamava o empregado. Sentiu-se relaxar. Quase a ficar feliz. Enquanto a pessoa que ele aguardava não chegasse, ela podia ter esperança. Podiam ser um do outro, ali e agora. Sem intromissões. Sem interrupções. Podia alimentar aquela história. Inventar para si e aquele homem misterioso um caso de amor, de brigas e paixão. Um amor feito de longas separações, já que ele velejava em torno do globo, em busca de ouro e de si próprio. Ela aguardava-o de porto em porto e, por fim, em casa. Marcariam encontros em cafés como aquele, junto de marinas e embarcadouros, praias e pontões. Entre ambos, sempre o mar e o vento. As ondas e o sal. E aquela saudade. Aquela vontade de apertarem o corpo um do outro num longo reencontro, ou em mais uma penosa despedida.

O empregado viu o gesto do homem. Aproxima-se. Ela crê… Ela imagina… Ela quer que ele peça um expresso bem forte. Apenas isso. O homem que inventou com base naquele outro à sua frente, de costas para si, apenas pediria um café. Ela baixou o olhar e pôs-se à escuta, eliminando um a um todos os ruídos que pudessem impossibilitá-la de ouvir a voz daquele estranho. Primeiro, abafou os guinchos histriónicos e despropositados da máquina de café. Seguiram-se os ensurdecedores e irritantes sons dos pires e das chávenas de encontro uns aos outros e dos seus corpos de cerâmica contra o balcão. O ruído das colheres que se mexiam dentro das chávenas e o dos carros que passavam na rua… O empregado, depois de borrifar a mesa com um spray desinfetante e de passar um pano húmido sobre o tampo da mesma, já se afastava. Não tinha conseguido perceber o que pedira o homem, mas tinha conseguido perceber o seu timbre, grave, sólido, sem reticências ou hesitações, como deve ser a voz de um homem por quem ela se apaixonasse. Um homem do mar e da tempestade. Uma voz como a das ondas. Ele mete a mão ao bolso das calças. Em busca de moedas para o café, acredita ela. Do bolso cai um papel, sem que ele dê conta disso, mas ela deu, se bem que o esqueceu momentaneamente, pois a imagem das mãos do estranho apagou tudo em seu redor. Já não estavam no café. Estavam algures, apenas ela e o marinheiro. Apenas o amor dela e as mãos largas e ossudas, de dedos longos e perscrutadores do seu amante. Apenas ela e aquelas mãos sedutoras. Feitas de beira-mar e areia. Um elétrico trava e apita, esganiçado, e ela regressa ao café. O empregado volta.

Na bandeja o que ela imaginara. O que ela desejara. Apenas um café. Engano seu. Também um pires com um pastel de nata. Não contava com isso, mas esse seria mais um elo de ligação entre ambos. Pastel de nata era igualmente o seu doce predileto. Todos os dias, ela comia um de manhã. Mais do que um ritual, uma religião. Ele tomava notas num bloco que ela não percebeu de onde saiu. Talvez do bolso das calças, quando caiu aquele papel que ela planeava já apanhar, logo que ele se levantasse, ou que a mulher que ela acreditava que ele aguardava chegasse. Podia deixar cair uma moeda e levantar-se e apanhar a moeda e o papel, mesmo com ele ali tão perto de si. Ele estava de costas para ela e para o papel, não seria estranho que ela o conseguisse fazer com sucesso e sem alarido. Seria ele um escritor? Seria aquilo o seu diário de bordo, exigido a todos os navegantes? As confidências do seu dia em terra? Uma necessidade nascida do hábito diário de anotar rotas e posições? Ocorreu-lhe que ele saberia ler as estrelas e apontar o nome de constelações e fazer cálculos literalmente no ar. Apetecia-lhe tocar na nuca daquele estranho. Comparar a palidez da sua cor de pele com a tez curtida e marinada daquele homem sedutor, cheio de mundo e de saberes. Queria que ele lhe contasse coisas que nunca tinha ouvido, temas e palavras que desconhecia por completo. O nome de terras distantes e de gente com sorrisos no rosto. Que a ensinasse a distinguir estibordo de bombordo ou de qualquer outro bordo que urgisse conhecer. O coração dela palpitava a descompasso. Tinha conseguido apanhar o papel que o seu marujo tinha deixado cair, mas os seus olhos engataram, num encaixe meio cúmplice, com os do empregado de mesa. Estaria ele a observá-la com iguais rigores? Com a mesma obstinação e delírio com que ela inventava a vida do estranho? O empregado larga um quase sorriso e regressa aos seus afazeres. Isso não queria dizer o que quer que fosse que não apenas que o homem tinha coisas a que tinha de dar atenção, mas não impedia que a tivesse topado. Que pudesse vir com conversas, ou avisar o estranho… Isso seria demasiado embaraçoso. Leria o papel rapidamente e voltaria a mandá-lo para o chão ou, melhor e mais inteligente, aguardaria novo olhar do empregado e entregá-lo-ia ao homem:

– Desculpe, mas deixou cair este bilhete, ou este papel, ou isto, dir-lhe-ia, calando qualquer olhar ameaçador do empregado e metendo conversa com o marinheiro. Seria perfeito! Um tudo em um.

Abriu o bilhete. Leu-o. Não entendia. “Porque não te sentas aqui e fazemos as pazes? Já pedi o teu pastel de nata. Anda! Sinto o teu olhar na minha nuca, o que é bom. Podes incluir-me na tua história de hoje e voltarmos para casa?” Até parecia que o homem se dirigia a ela. Como se se conhecessem. Que bom que seria, mas não era verdade. Nunca o tinha visto. Não se conheciam. A quem se destinaria aquele bilhete? Era enigmático. Era entusiasmante. Quem comeria o seu pastel de nata? Quem aguardava o homem da sua vida?

Apesar de levar anos deste tipo de jogo e de não resistir a inventar histórias à sua volta, jamais lhe acontecera sentir-se tão próxima, ou, porque não dizer a verdade a si própria – já que ninguém mais jamais o saberia –, a sentir-se tão apaixonada por alguém que não conhecia. Era como se aquele fosse o parceiro que o destino, Deus ou ambos em conluio tinham decidido atribuir-lhe e apenas o marinheiro não o soubesse. Ela sentia esse tipo de certeza no seu interior, o que era idiota… Deveria meter conversa com o estranho? O que lhe diria? E se ele fosse louco e a embaraçasse ali, no café que frequentava todos os dias? Se a insultasse? Sim, os homens do mar, por causa da solidão tornam-se estranhos e antissociais, com tolerância zero para disparates. E se ele aguardasse um homem e não uma mulher? Um amigo ou mesmo um amante? E se outros interpretassem, como talvez também ele próprio interpretaria, a sua abordagem como um engate? E não seria isso mesmo? Uma tentativa de abordagem com vista a algo mais íntimo? E se a julgassem louca varrida, ou por varrer, que a limpeza, nestas coisas, não é assim tão necessária. Tinha de se deixar destes jogos. Começava a perder o pé. Numa das últimas vezes embrenhara-se tanto no guião, que ficara retida nele uns quantos dias. Interpretando um papel ficcionado na vida de um outro estranho, ele próprio uma quase invenção sua. Achava que tinha tudo controlado, mas nem sempre tinha tantas certezas. Uma sombra cruzou o seu olhar. Preparava-se para se ir embora.

Tinha mesmo de se ir embora. Deixar aquele homem sedutor aguardar a sua amada, ou amado, brindá-la com o pastel de nata – torrado como também ela gostava –, contar-lhe as suas aventuras. A mulher acariciar-lhe-á seguramente o cabelo. É quase irresistível. Talvez pudesse ficar mais um pouco, apenas para perceber se ela o fará como ela, estava certa, o faria, caso estivesse no lugar dessa mulher que já começava em tardar. Não. Não ficaria. Levanta-se. O homem vira-se. Olha-a de frente. Ergue-se. Dirige-se-lhe. Ela treme e assusta-se. Ele segura-a pelos ombros e pergunta-lhe, com aquela voz que ela tão bem conhece na sua cabeça e num tom que não é apenas inquisitivo, é também assertivo:

– Agora vamos para casa, pode ser?

Sem acreditar no que dizia, mas sentindo-se segura, ela responde, num tom quase dócil e agradecido:

– Sim, claro. Vamos.

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