Em toda a sua vida, o único instrumento, ferramenta ou auxílio de que alguma vez necessitara esteve sempre à distância da gaveta dos talheres, no bico de uma faca, no fio de uma navalha. Jamais lhe falharam. Jamais desapontaram. Mesmo velhas, mesmo ferrugentas, mesmo rombas. Com elas enfrentava o pescoço resistente de uma galinha em vésperas de ser canja, os tenros caules da couve para o reconfortante caldo que se quer verde, o parafuso que teima em não rodar, a tampa do frasco que decidiu não se vergar… Com elas cozinhava, jardinava, abria rasgos na madeira, serrava pequenos gravetos de lenha… Com uma faca por perto, não havia idade das cavernas que a assustasse ou tarefa que não se sentisse capaz de concluir com êxito. Em relação ao manuseamento, tanto gostava das facas quanto das navalhas, mas em termos logísticos, é fácil de perceber que nada batia uma boa navalha e o seu fecho de segurança. Noutros tempos, era fácil adquirir navalhas. Boas, médias ou más, grandes, regulares ou pequenas, de folha larga, mediana ou estreita. Era só escolher.

Hoje, apenas se encontrava uma de boa qualidade a preços exorbitantes em secções de caça, pesca ou campismo, e tamanho investimento para uma matança de quando em vez, ou, numa base mais diária, apenas para pelar batatas ou podar um pouco o jardim, levavam-na a optar cada vez mais por simples facas. Apesar de estranho e desagradável, sentia falta daquele cheiro meio tóxico, resultado da oxidação da folha das navalhas, quando as navalhas não eram de qualidade superior, nem prestavam homenagem ao aço inoxidável. Era um cheiro familiar, acolhedor. Um cheiro que lembrava casa e colo paterno. A primeira navalha, era um ato de emancipação, um ritual de iniciação à vida adulta. Lembrava-se bem da sua primeira navalha. Pequena, para bem caber na palma da sua mão de criança. Era muito atenta e inteligente, pelo que recebeu a sua muito cedo, como prova e recompensa pela sua já adulta responsabilidade. Tinha o cabo branco e, na folha, estreita mas mediana, não tardou aquele cheiro a ferro envelhecido, aquele negrume cortante, aquela reação do metal de fraca qualidade ao ar e aos líquidos.

Uma faca e um pedaço de pão. O bastante para fazer frente à vida. Com eles o bolso foi, e ainda era, capaz de fazer frente ao mundo. Com eles no bolso, nunca lhe faltou coragem para tudo o resto. Divertia-se ao ouvir o desespero de outros perante um telemóvel sem bateria ou, horror dos horrores, privado de rede. Sorria para dentro. Com o estômago sossegado e o bico de uma faca, ela não receava realidades quanto mais virtualidades ou redes móveis. A sua grande rede, era a sua faca, e a sua fonte de alimentação podia bem ser apenas um naco de pão ou um  livro com uma boa história para contar. Duro que fosse, que o estômago também aprendeu a lidar com isso. Por isso, no meio de uma vida que foi tudo menos fácil, nunca tomou consciência de dificuldades, obstáculos inultrapassáveis ou revezes de maior. Desde que protegida com o seu kit básico, tudo o resto se resolveria. Uma forma de ver o mundo que facilitou o seu tortuoso e íngreme rumo, tornando-o mais plano e seguro, pelo menos na sua mente e é aí que interessa driblar o Diabo.

Isso Só Lá Vai Com o Bico de Uma Faca

Logo que a sua única filha se casou, para Etelvina tornou-se claro e evidente que seria ela a limpar-lhe a casa, que isto de meter estranhos a bisbilhotar todos os cantos da nossa intimidade não é coisa certa. Simplesmente, não é coisa que se faça. Era com enorme satisfação – aquela que se lhe instalava no corpo só de saber que ninguém conheceria o ninho privado da sua Amália – que todos os dias, exceto fins de semana e quartas, apanhava o autocarro até ao centro da cidade e, aí, o metro que a deixava mesmo à porta da filha. O apartamento não era um palácio, mas era desafogado e cheio de luz natural, o que tornava muito agradável todo o ambiente, decorado com o bom gosto da filha, miúda cheia de bom gosto e ideias insólitas que conferiam, aqui e ali, um ar de sofisticação à casa. Uma casa bem diferente daquela onde Etelvina a tinha criado, povoada com uma infinidade de bibelots e recordações das excursões que fazia com as amigas e vizinhas desde que ficara viúva. O seu Adalberto, que Deus o tenha em eterno descanso, era homem demasiado pacato e agarrado ao sofá, para se entusiasmar com viagens intermináveis de camioneta – mesmo as mais modernas, com ar condicionado e frigobar – e visitas a outros cantos do mundo. Canto por canto, o da sua sala ou o que os jogadores marcavam em dia de jogo. Nada mais. Contentava-se com pouco.

Nunca impediu Etelvina de ir sozinha, mas claro que ela, Etelvina, não achava decoroso, sendo casada, deixar o marido em casa e partir para a diversão. Assim, sempre se acomodou ao pouco que a ele lhe bastava, dividindo cantos de casa e pequenas alegrias, como a dos primeiros bons caracóis do ano, que o marido confecionava com esmero e como ninguém mais. A vida dos simples, quando tranquila e em paz com o mundo e os demais, é uma vida satisfatória. Calma. Com a morte do marido, deixou de haver o constrangimento de partir sozinha em viagem e lá começou a conhecer um pouco, primeiro do país, com a clássica ida a Fátima e às grutas e, depois, pé ante pé, sempre incentivada pela endiabrada Amália, uma ida a Madrid, depois ao santuário de Lurdes, mais tarde Paris e, este ano, já tinha agendada uma viagem aos Açores. Seria a primeira vez que andaria de avião, o que a deixava um pouco inquieta, mas, ao mesmo tempo, excitante e expectante. Se bem que, para si, nada se comparava ao romantismo de uma viagem de comboio, não senhor. Isso, sim, era viajar. Sem trânsito, com tempo para apreciar o que se emoldurava nas janelas, e o que por elas passava não passava em mais lado algum, e com espaço para esticar as pernas e até andar de pé com as costas direitas. Nada se igualava, no mundo, a um bom carril.

Longe das pequenas figuras de porcelana, medalhas, pratos e galhardetes onde se podia ler os locais por onde já tinha passado, ao longos dos dez anos de viuvez, a casa de Amália era, nesse sentido, bem mais simples. Umas peças decorativas de vidro, que limpava como se fossem o próprio Menino Jesus, umas esculturas de madeira, umas quantas molduras e muitas caixas. Muito gostava Amália de caixas.

– Deves estar cheia de segredos! – dizia Etelvina para a filha de cada vez que surgia lá em casa mais uma caixa decorativa, arquivadora ou de arrumação.

– Muito tens tu que guardar!

Amália explicava-lhe que a sua cabeça já era um caos pelo que, à sua volta, necessitava de ordem, de arrumação e esmero, para não se perder na sua própria vida. Se cada coisa tivesse o seu lugar próprio, o seu sítio certo, saberia sempre onde procurar. Dizia-lhe ainda coisas extraordinárias como daquela vez em que se saiu com esta:

– As coisas mais à vista, são aquelas que nunca encontramos.

Devia ter razão, já que a Etelvina acontecia, por de mais vezes, procurar os óculos quando os tinha postos. Verdade, verdadinha. Se não falava verdade, que o Diabo a levasse. Nunca levaria, que Etelvina não mentia. Isso sim, ocupar-lhe-ia demasiado espaço na cabeça. Mentir implicaria estar sempre atenta e com a atenção no máximo da sua capacidade, a fim de saber a quem disse o quê, com que fito, o que deveria esconder e o que deveria revelar… Uma canseira que evitava a todo o custo. E o custo, muitas vezes, era elevado, já que nem todos estão preparados para a verdade, preferindo panaceias e paninhos quentes mais ou menos mentirosos e artificiosos, ao invés da água fria, por vezes gélida, da verdade factual. Nu e cru. Sempre tinha sido esse o lema de vida de Etelvina. Só o nu e o cru se mostram na sua total sinceridade e transparência, já que tanto a roupa como a confeção são apenas adjetivos da matéria substantiva que verdadeiramente importa. Aquela que é a real base de tudo o resto.

                                                    

Muitas vezes, Etelvina ainda apanhava a filha e o genro em casa, a tomarem o pequeno-almoço, o que permitia três dedos de conversa e avaliar a felicidade do jovem casal. Faltavam os netos, mas já tinham duas cadelas que eram a perdição de Etelvina. Porque nunca se tinha rendido aos cães? Que criaturas adoráveis. Gostava mais delas do que de muitas das suas amigas, que isto de pessoas já se sabe, se queres fazer um amigo fecha um olho, se o queres manter fecha os dois, como é do conhecimento geral, ou apenas do de Etelvina. Logo que chegava, trocava os sapatos por umas pantufas confortáveis e lavadas – pois não vale a pena ir limpar uma casa e acabar por sujá-la ainda mais –, tirava o casaco e a mala, e punha a sua bata. Tudo isto às claras. O que ocultava sempre da filha e do genro era a navalha ou faca, conforme, a qual, só depois deles saírem, colocava no bolso da bata, para toda e qualquer eventualidade, já que não há nada que não vá lá com o bico de uma faca. Limpar uma casa, então, sem uma faca à mão, não é limpeza. Há sempre uma mancha a tirar do chão, uma gordura mais entranhada no bico de um fogão, o cabo de uma frigideira a precisar de mais atenção, um parafuso mais solto… Amélia tinha, desde logo, advertido a mãe de que não usasse a faca nas limpezas da sua casa, que tinha produtos para tudo e até o genro a ensinou a trabalhar com o aparafusador. Imagine-se, um aparafusador elétrico. A trabalheira. Só de pensar em tirá-lo da caixa onde estava religiosamente guardado, montá-lo, carregá-lo… Com o mesmo tempo e apenas o bico da faca já teria montado uma estante e duas camas da Ikea.

Etelvina lá dizia que sim, lá anuía, mas essa era a sua única grande mentira. Jamais prescindiria da sua faca ou navalha. No início, Amália percebeu que a mãe não tinha desistido do velho hábito da faca, pois foi dando com as suas facas de cozinha com o bico invariavelmente torto ou, prova das provas, com o bico partido. Etelvina dizia não ter dado por nada, que deveria ter sido na máquina de lavar louça, ou que teria caído ao chão… Para evitar chatices e raspanetes de Amália ou meneares de cabeça reprovadores do genro, a solução era simples: trazia a sua própria faca de casa. Não custava, não pesava e, ninguém sabendo, tudo estaria bem para todos. Claro que, de quando em vez, um ou outro risco denunciavam a sua prática corrente. Amália, deixava passar algumas em branco. Noutras ocasiões perguntava à mãe se tinha ideia do que poderia ter causado este ou aquele pequeno dano. Certa vez, quando Etelvina chegou a casa da filha, como de costume, um carpinteiro andava de volta de uma porta de madeira. Parece que aquela ‘sujidade’ que tentara com esforço retirar da porta, era um nódulo natural da madeira. Também não era o fim do mundo e, nisto da higiene, mais vale jogar pelo seguro. Pelo menos, tinham agora a certeza de que não era um pedaço de porcaria que para ali estava a arruinar a porta.

Também Isto se Resolve Com o Bico de Uma Faca

Assídua e pontual, Etelvina jamais falhava. Pelas nove horas, todos os dias da combinação, lá estava ela no centro da cidade, à porta de casa da filha. Mala ao ombro e o saco com a bata e as pantufas na mão. Podia, como tanto insistia Amália, deixar as coisas na sua casa, escusando de andar carregada com o saco. Mas Etelvina não gostava de abusar, nem mesmo em família, que é, na verdade, onde menos se deve abusar, pois são laços sagrados que não convém beliscar com insignificâncias como a de um saco. Além disso, gostava de manter a faca no bolso da bata e a filha, que de si tinha herdado a manina das limpezas, não tardaria a começar a pôr a bata na máquina para lavar e lá ficaria a saber que Etelvina não se separara do velho hábito do bico da faca. Nesse dia, porém, Etelvina não conseguia levantar-se da cama. Logo que erguia a cabeça da almofada, tudo começava a andar à roda, num rodopio que lhe subtraía toda e qualquer possibilidade de equilíbrio. Eram as altas temperaturas do verão e a baixa tensão do seu ritmo cardíaco a darem conta da sua total incompatibilidade. Avisou a filha de que não iria. Que não se preocupasse, que era a sua tensão baixa em pleno quarto minguante. Que ficaria bem. Que o Dr. Romão já lhe tinha receitado um SOS para essas ocasiões. Que no dia seguinte, terça-feira, lá estaria. Etelvina, não obstante não ser um emprego remunerado e sim uma colaboração afetiva, detestava falhar. Não cumprir com qualquer compromisso era, aos seus olhos, inaceitável. Bem sabia que a filha se preocupava mais com a sua saúde do que com a limpeza. Sabia ainda, melhor do que ninguém, que a casa podia ser vistoriada por qualquer obsessivo-compulsivo das limpezas, que passaria o mais exigente dos testes e que um dia a menos não faria diferença. Mas a ela fazia-lhe a maior confusão, um dia que fosse, sem que uma casa de banho não levasse uma lavagem, ainda que superficial. Uma lixívia na sanita, um pouco de detergente para eliminar gorduras da pele no lavatório. Uma aspiradela no chão, por causa dos cabelos e, mais ainda, dos pelos das cadelas…

Era certo que Hortelã e Pimenta, assim se chamavam as suas ‘netas’, como a elas se referia Etelvina, já estavam no canil-hotel, pois o genro estava de partida para uma breve viagem de trabalho e Amália, com o pulso partido, não conseguiria levá-las a passear. Voluntariava-se sempre para pernoitar em casa da filha, mas sempre na esperança que Amália recusasse, pois adorava voltar para a sua casa, único canto do mundo onde se sentia verdadeiramente à vontade e em sossego. Único pedaço de universo que verdadeiramente considerava seu e só sei. “Nada como a nossa casa. Nada como a nossa cama”, repetia Etelvina vezes sem conta. Também por saber disso, e por já se sentir sem jeito com o muito que a mãe insistia em fazer por si, em nome de manter estranhos longe de casa, Amália, recusava sempre mais essa oferta materna, para satisfação interior de ambas.

Por saber que a filha se aborreceria consigo, mas porque apenas assim ficaria com a consciência tranquila, nessa quarta feira, seu dia de folga semanal, Etelvina decidiu compensar o dia de segunda-feira. Até porque a filha estaria já sozinha e, com uma mão quase inutilizada, não teria como colocar as coisas em ordem, como ela tanto necessitava. Assim, uma hora mais tarde, para não se cruzar com Amália, Etelvina lá estava a abrir a porta de casa. Sentiu falta da explosão de felicidade com que Hortelã e Pimenta a costumavam vir receber, mas tanto melhor. Assim, nem os vizinhos dariam por ela, se é que havia vizinhos em casa a essa hora do dia, num edifício de gente jovem.

Cumpriu o seu ritual, de trocar de sapatos, vestir a bata ou apenas colocar um avental, de levar a mão ao bolso tranquilizando-se com o toque no cabo da faca – essa semana era uma pequena faca de cabo de madeira e com a folha já suficientemente puída e gasta como Etelvina gostava. Já estava feita a si e às suas necessidades. Uma faca assim, não tem preço. Já de pantufas calçadas, no maior silêncio, e dando por falta de duas molduras na mesa da entrada – com as suas fotos preferidas tiradas aquando do casamento da filha –, entra no quarto de dormir, a fim de puxar as orelhas à cama, como gostava de dizer, mas já com um pressentimento de que algo não batia certo. Uma sensação que se adensava a cada passo que dava. Algo estava errado e percebeu-o ainda com mais clareza quando entrou na suite. O casaco de um fato que não conhecia como sendo do genro caído no chão, umas meias a meio do caminho para o WC privativo… Etelvina sabia bem o que fazer. “Isso vai lá com o bico de uma faca”, repetia a sua mente em loop e total silêncio. Nisto, um vulto escuro sai da casa de banho. Não percebeu se era um homem preto nu, ou um branco com um roupão negro. Foi tudo muito rápido. Foi tudo muito assustador. Etelvina já de faca em riste, num punho cerrado e forte. Onde estaria a filha? Ter-se-ia o gatuno cruzado com ela ou esperado que ela saísse para roubar sem ser incomodado? Não era sua intenção imediata atacar o homem, previa mais defender-se, mas o homem foi ágil e saltou para cima de si e assim ficou. O homem não mais se mexeu. Caiu com o estômago em cima do punho de Etelvina. Caso arrumado, pensou a prática Etelvina, ainda a tremer. Ligou para a polícia. Ligou para o genro. Finalmente, já mais calma, ligou para a filha. Tinha apanhado um ladrão lá em casa. O homem tinha tentado atacá-la. Tinha matado o homem. Do outro lado, Amália nada dizia. Silêncio total. Silêncio de palavras, já que a respiração ofegante se assemelhava à de um cavalo de corrida em final de prova. A ausência de perguntas, o choro contido que conseguia, agora, perceber revelaram a Etelvina o que jamais havia suposto. O homem, afinal, não estava ali para roubar. Claro que não, se assim fosse porque pararia para tomar um duche? Deixou cair o telefone. Enfiou a mão no bolso da bata, ainda com a faca presa no punho cerrado, ainda em sangue, enquanto, entredentes, murmurava uma única frase: “Também isto lá vai com o bico de uma faca”.

Partilhar