A fase Bela-Feia

Sempre gostara de chuva. Era o fenómeno mais próximo da pura magia, da quase feitiçaria, que alguma vez lhe foi dado a conhecer. Água pura que desce dos céus. Limpa. Cristalina. Fria. Lágrimas das pesarosas nuvens. Recados dos deuses. Nunca se cansava de chuva, nem mesmo quando as cheias ocupavam capas de jornais ou horas infinitas de telejornais. Era água, senhores. E água é vida, mesmo quando também pode ser morte. Atente-se no caso de Noé. Os não crentes que baixem já os dedos que colocaram no ar, que os ensinamentos aprendem-se em qualquer pedaço de história, assim se queira aprender. Assim se deseje saber mais e melhor. Não havia quem conseguisse retirar magia ou encanto à cadência das gotas de água que trazia notícias do céu. Antes essas, as da meteorologia, do que as que se faziam anunciar, de forma sub-reptícia e dissimulada, em tudo aquilo que não era dito ou feito. O ordenado que não era pago, a falta de explicações coerentes para tal facto, as dívidas à banca, ao fisco e outras, que já se acumulavam. O advogado que nem aconselhava nem desaconselhava, preso que estava ao papel que habitualmente atribuímos aos terapeutas, repetindo-lhe aquilo que a lei contemplava quando ela queria apenas saber o que fazer. Saber o que surtiria mais efeito na demanda de fazer cumprir a lei, de obrigar a empresa a cumprir a sua parte do contrato.

By Robert Doisneau

Em desespero de causa, lá lhe sugeriu a suspensão do contrato de trabalho, ao cabo de 15 dias sem pagamento de ordenado ou explicação razoável ou data possível para tal pagamento. Descobriu que a suspensão de um simples contrato de trabalho, coloca toda uma vida em suspenso. Não apenas o emprego. Pode solicitar-se o fundo de desemprego, a fim de fazer frente à falta de dinheiro. Pode ainda procurar-se emprego, a fim de suprir as carências financeiras e a falta de atividade profissional decorrentes da suspensão, mas apenas se pode procurar trabalho numa área que não seja tida como concorrente à da empresa à qual ainda se pertence. Ou seja, não se pode procurar seriamente uma atividade, na medida exata em que apenas somos apetecíveis ao mercado de trabalho, partindo do princípio que o somos, por aquilo que melhor sabemos fazer. Não podendo concorrer com essas mesmas apetências e capacidades, do que se pode, então, ir em busca? De uma mera ocupação temporária? Expressamo-lo assim, dessa forma? “Querem-me, mas apenas por agora e apenas para fazer algo que nunca fiz antes e o mais certo é que não o faça bem ou com a rapidez desejada?” Ter um contrato de trabalho suspenso, percebeu-o, é ter toda a vida suspensa. Até o humor e o bom feitio metem suspensão, adiando bem-aventuranças para data posterior. Fica tudo agendado para depois. Para um dia. Lá mais para a frente. Qualquer possibilidade de leveza ou felicidade ficam irremediavelmente comprometidos. Essa sensação de vida suspensa, que em nada dependia da sua vontade ou ação, era-lhe insuportável. Razão pela qual não hesitou em rescindir o contrato de trabalho por justa causa no primeiro dia em que a lei lho permitia, ou seja, ao cabo de 60 dias consecutivos, o que correspondia a três sufocantes ordenados em atraso e um rasto de caos instalado em todos os recantos da sua vida. As primeiras dívidas sérias na vida de uma pessoa deixa marcas indeléveis e um aperto constante no coração. Uma taquicardia na tranquilidade dos dias. Um sopro na paz do quotidiano. A luz que, não obstante ser etérea, pode ser cortada, a ansiedade antes de abrir uma torneira, achando que pode bem já não ter ordem para pingar, o seguro do carro que já não segura, o pagamento da renda da casa que se finge, mas muito mal, esquecer, a escola dos miúdos, o supermercado onde já não se vai…

Mais do que a suspensão, o sufoco. A falta de ar. A respiração curta e ofegante. O oxigénio que não chega. Nunca mais chega. Um gerente que se emoldura em mentiras descaradas, daquelas que nos coibiríamos de dizer a crianças de quatro anos, e com as quais ele julga remendar as dúvidas dos empregados. Nunca julgou que houvesse mentiras boas e más, mas elas existem. Há um ranking que ordena as mentiras. Mentiras más, por um lado, têm o efeito de dizer aquilo que pretendem desmentir, já que são tão fracas que ninguém nelas acredita e fica o esclarecimento feito. Por outro lado, quando são mesmo más, deixam clara a falta de respeito do interlocutor e a ausência de fé que coloca na nossa inteligência. Nem de uma peneira se serve para tentar ocultar o sol. Acreditam, o crápula e todos os sócios, que um simples vidro transparente nos pode iludir e isso é revoltante. Tão ou mais revoltante do que a conta bancária, que teima em crescer para valores negativos, como um cancro financeiro. Não fosse aquele sinal de menos antes da verba e nunca teria tido tanto dinheiro na sua conta. Mas aquele era um sinal inequívoco e subtraía ilusões e projetos à sua vida. Retirava-lhe possibilidades. Apagava-lhe sonhos. Comprometia toda uma carreira feita de sacrifícios, serões roubados à família, fins de semana não cobrados em nome do seu empenho e fidelidade à empresa, sapos engolidos e elefantes vomitados. Era uma profissional sólida e fiável. Alguém em quem confiavam conflitos extremos e a resolução de casos difíceis. Era estimada e temida, pois tinha uma capacidade de trabalho e tal independência perante as diferentes fações da empresa que não sofria influências. Decidia sempre em função do que achava melhor. Era aquilo a que por ali chamavam de Bela-Feia. Era sólida e respeitada, tomando decisões difíceis se entendesse que eram as certas, mas era honesta e agia, com justiça, em nome do bem maior, nunca agradando, está bom de ver, a todos.

Do que lhe servia tudo isso agora? Pediam-lhe paciência, mais uns dias para resolver a situação, colocando sempre o prazo numa data adiante: uma decisão do tribunal prestes a ser tomada, um cheque que estava para entrar, um credor que jurava cumprir pagamento dentro de dias… Para a semana. Daqui a quinze dias. Sempre a empurrar com a barriga para a frente. Percebeu a índole dos superiores. Entendeu o seu mau caráter. Decidiu em conformidade com aquilo que lhe ditava a cabeça e o coração, como sempre fizera, apenas agora decidia a sua própria vida. O seu destino. Suspensão. Rescisão. Desemprego. Por esta ordem de ofensa e desespero. Ainda que tudo isto soasse e fim de linha e a um recomeço que em tudo poderisa ser penosos e doloroso, não hesitou um segundo. A sua índole não lhe permitia aceitar incumprimentos. Ela tinha feito a sua parte, tinha cumprido com a sua metade do acordo, aguardava que do outro lado fizessem o mesmo. O seu empenho e dedicação eram totais, tal como totais e incontornáveis eram o seu desapontamento e exigência que do outro lado agissem em conformidade. A própria lei estava do seu lado, mas há muito que percebeu que nada defende um trabalhador da lata de um empregador. A ACT não age, o parlamento não reage, exceto quando há dividendos políticos favoráveis a alguma fação, os tribunais estão cheios de coisas iguais ou piores… Estamos por nossa conta. Vale a solidariedade entre iguais, quando ela existe, e o apoio da família, quando disponível, e a derradeira capacidade financeira para recorrer a um bom advogado – se não for bom, nem vale a pena –, que avance que nem cão de fila em busca do nosso dinheiro, daquilo a que temos direito, a fim de repor alguma tranquilidade à liquidez das nossas vidas e restaurar alguma normalidade e paz de espírito à pessoa que agora somos e que é bem distinta daquela que éramos antes. Sim. Tudo muda e nós com tudo mudamos.

By Robert Doisneau

A fase Feia-Bela

Na qualidade de recém-desempregada, pela primeira vez em toda a sua vida de quase meio século, estava longe de imaginar o muito que ainda teria de mudar. Ou não. A ver se verá. Num primeiro momento, o enorme alívio por ver pelas costas a imunda escumalha que dirigia a empresa, sem rumo à vista, mas com métodos ilegais, a que, com enorme impunidade, se arrogavam o direito. Uma gigantesca sensação de leveza, de votar a ser dona da sua vida. De pensar naquilo de que realmente gostava e que verdadeiramente gostaria de pôr em prática. Magicava mil e uma maneiras prazenteiras, satisfatórias e felizes de encarar o resto de futuro que lhe cabia ainda. Imaginava cenários de enorme realização pessoal, fazendo apenas aquilo que melhor sabia fazer e aquilo que mais prazer lhe dava. Acabar-se-iam os fretes. Projetos e aventuras atropelavam-se, na ânsia de se colocarem em primeiríssimo lugar numa ainda imberbe lista de preferências, de atividades e carreiras futuras que todos os dias alinhavava com mais ou menos ímpeto.

O primeiro stress ocorreu quando demorou a ser aprovado o seu subsídio de desemprego, para o qual contribuía assídua e implacavelmente há quase 30 anos, sem um único dia de baixa ou leviandade. Ao cabo de algum tempo, lá surgiu no site da Segurança Social Online o tão desejado ‘Deferido’. Seria pago. Sabia até a quantia diária que receberia. Comparativamente ao ordenado que auferira até então, era uma miséria, quase um quarto, mas era uma boa boia a que se agarrar na turbulência daqueles dias de incerteza em que se afundava em preocupações. O que ainda não sabia é que seria também uma âncora.

Por defeito, o desempregado é alguém em quem os serviços não confiam. É, à partida, um mandrião, a viver às expensas do Estado, um pendura que obriga a constantes e inauditas vigilâncias, um sobrinho da indigência e afilhado da preguiça. O desempregado é mal visto por todos, incluindo por aqueles que, alegadamente devem o seu emprego à função de zelar pelos desempregados. É tudo muito bizarro. Ainda não tinha decorrido uma semana e já tinha de fazer a sua primeira apresentação, junto de um gabinete que fazia a ponte, numa relação de proximidade, entre o Instituto do Emprego e Formação Profissional e os perigosos desempregados. Esses meliantes, peritos em esquemas para beneficiar de um subsídio. Começaram por lhe dizer e repetir vezes de mais do que as necessárias, até porque a seu ver uma única vez já era excessiva, que o desempregado merece respeito e deve ser tratado com dignidade. Como assim? Esse não é um garante de qualquer indivíduo nos ditos regimes democráticos defensores dos direitos humanos mais básicos? O que distingue um desempregado de qualquer outro ser vivo à face do planeta, para suscitar tal ressalva? Não querer estigmatizar o desempregado com este tipo de afirmações produz o exato efeito contrário. É esfregar-lhe na cara que essa é uma cedência de gente civilizada perante pessoas que podem não suscitar o mesmo impulso nos restantes beneficiários, os adoráveis ‘trabalhadores’. É explicar-lhes que estão à margem, MAS que, mesmo assim, num gesto de incomensurável humanidade, seriam tratados da mesma forma. É mentira. Não são tratados de igual forma e esse primeiro sinal de indignação que sentiu naquela sala cheia de desempregados foi apenas isso mesmo, o primeiro de muitos sinais vermelhos. Pior do que cometer um crime é estar desempregado. Esqueceram-se de acrescentar uma pulseira eletrónica ao tornozelo de cada um dos desempregados daquela sala – deve ter sido por esquecimento –, já que termo de identidade e residência já eram uma realidade, ainda que encapotada e não claramente assumida. Que outro nome se pode dar à modalidade de vigiar todos os nossos passos e de saber a cada segundo por onde andamos?

O desempregado, ao contrário de inúmeros criminosos julgados e condenados, não pode ausentar-se do país, sem aviso prévio de cinco dias. Ficou estupefacta. Quer dizer, se quiser ir a Badajoz – não se resiste ao cliché, quando ele é certeiro –, tem de avisar com cinco dias de antecedência. Tem de verificar o correio duas vezes ao dia, pois não acorrer célere e bem disposto a uma qualquer intimidação dos serviços competentes para estar dia tal às tantas horas é mais do que suficiente para lhe retirarem o subsídio, o que, à segunda, será mesmo de vez. Férias? Sim. São concedidos dias de descanso ao reles do desempregado. Terão de ser marcada com 30 dias de antecedência e ser gozadas todas de uma assentada que isto de estar dependente, obriga a algumas prepotências. Recusar ofertas de trabalho? Poder, pode, mas à segunda nega diga adeus ao subsídio. Justificações plausíveis para faltar a uma convocatória? Apenas uma: urgência hospitalar. Nesse ponto, ocorreu-lhe outra, a morte do desempregado, mas percebeu que não havia sentido de humor naquele grupo de desempregados, menos ainda na figura daquela senhora nervosa e falsamente calma, que tentava encorajar retirando coragem. Toda ela colada aos serviços e de frente para as cegas obrigações dos desempregados. Quase feliz, ao debitar as obrigações e os deveres, resumindo os direitos dos coitados presentes ao benefício de poderem e deverem também eles, os desempregados, ser tratados com decência. Vejam lá como os serviços centrais são clementes. Até respeito e um mínimo de dignidade concedem aos desempregados. Os desempregados, considerou, sãos os novos leprosos. Indivíduos que merecem alguma atenção, mas que devem ser mantidos longe do olhar dos outros, dos dignos trabalhadores da sociedade, em colónias, talvez, ou cursos de formação profissional para que se mantenham ocupados e não contagiem a sua preguiça aos demais. Desanuviavam o pesadelo que tudo aquilo era, lembrando que este era também um tempo de reflexão, quando, a mais pura realidade, é que não concediam nem tempo nem espaço mental para que tal acontecesse. A não ser que se referissem a um tempo de reflexão para os serviços centrais, que necessitariam de espaço de manobra para decidir o que fazer com cada um dos infelizes.

Alucinava. Tinha de arranjar emprego rápida e urgentemente. O pior tipo de vigilância, a mais tenebrosa e brutal, é aquela que nos coloca no lugar do vigilante de nós mesmos. É perdermos o sono pensando se fomos ao correio e se verificámos que a caixa estava, de facto, vazia. Teria a carta ido parar ao correio de algum vizinho a quem jamais ocorreria devolvê-la, estando por estes dias uma convocatória/intimidação a servir de forra na gaiola do Piu-Piu lá de casa? Estaria a ser verdadeiramente ativa e pró-ativa na busca de emprego? Não estaria já a acomodar-se escandalosamente à vida boa do subsídio? A resposta a esta última pergunta surgiu-lhe célere. Claro que não, ainda não tinha sequer recebido uma única mensalidade, pelo que falar de hábito era um genuíno e gigantesco exagero. Resumindo, colaram ao seu pensamento uma pergunta persistente e macabra: seria, de facto, digna de tanta complacência? De tamanha generosidade? Não seria uma abusadora nata? Duas semanas e ainda sem conseguir novo emprego? Era altura de nova convocatória. Receava o pior. Que a forçassem a embarcar num emprego onde jamais seria feliz ou no qual não teria capacidade de mostrar quão boa era naquilo que sabia fazer. Que a impedisse de usar de brio e rigor por conta de não dominar uma matéria ou de odiar o que fazia. Ela tinha um emprego, um bom emprego, não se limitava a trabalhar apenas para levar algum para casa. Tinha havido estudos, investimento, uma carreira… Podia ainda dar-se o caso de quererem mantê-la apenas ocupada, uma mulher da sua idade, e sugerir-lhe um curso de costureira ou de culinária. Sim, mulher que se preze deve saber fazer uma bainha e ter mão num arroz de pato no forno. Onde já se viu o contrário? Não admirava que dois dos seus colegas em iguais circunstâncias denunciassem já sinais óbvios de depressão. Estar desempregado é ter um emprego mal pago.

Não estava para que tal lhe acontecesse. Desempregada e deprimida seria o jackpot dos azares acumulados. Elaboraria um plano sem falhas ou mácula, para criação do seu próprio emprego. Um negócio de nicho, mas certeiro. Dispensaria a escala em nome de um serviço útil para determinado tipo de clientela. Aconselhou-se com marketers e contabilistas. Desenvolveu um estudo de mercado. Envolveu o tal gabinete de proximidade com aquela senhora falsa calma a querer ajudar, mas derrubando ideias atrás de ideias. Teria de ser algo à prova de críticas. Algo nunca pensado. Que envolvesse pouco risco e quase zero investimento, mas que demonstrasse a sua vontade de regressar em força ao mercado de trabalho. Já que insistiam em que não teria de ser na sua área de atividade, ela escolheria a sua, não deixaria que o fizessem por si. Uma nova carreira. Uma nova vida. Agendada a sessão de aconselhamento, com contabilistas presentes e créditos pensados. Anunciou o seu plano de carreira. Era o nascer de uma nova era. Quem sabe, mesmo, a criação de um novo trend.

– Vou abrir o meu próprio negócio: Feia-Bela no Varão para Amblíopes. Com a luz certa e as dioptrias erradas, a coisa talvez ainda possa dar dinheiro. O que me dizem? Imbatível, certo?!

Moral da história:

Mais vale acabar no varão do que na corda-bamba.

Partilhar