A cigana olhou para a criança e sorriu de forma entristecida. O que via agradava-lhe. Era-lhe por demais familiar. Era um rapaz de olhos negros e fundos e cabelo cor asa de corvo. Podia ser um dos seus. Podia ser do seu sangue. Não era. Mas poderia ter sido. Inclusive, poderia ter sido seu. Todos os seus filhos tinham esses mesmos olhos infinitos e insondáveis e o cabelo, se lavado com a frequência deste pequeno, seria da mesmíssima cor e brilho. Um quase cigano. Se numa qualquer noite, o miúdo se sentasse na roda, em torno da fogueira, ninguém daria por ele. Ninguém se questionaria. Alguém acharia que era seu filho e por ali poderia ficar. Para sempre. Em Família. Junto dos seus, mesmo não sendo um deles. Chamar-lhe-iam qualquer coisa Garcia, ou qualquer coisa Quaresma. Apaixonar-se-ia, bem cedo, por uma prima de nome Samara ou Carmen e ninguém se questionaria com o que quer que fosse.

By Robert Doisneau

Mas o sorriso da cigana não era feliz. Não era preciso saber ler o futuro na palma da mão, ou fazer de conta que se é letrado na arte da adivinhação, para chegar a tal conclusão. Não era sequer um sorriso de circunstância, de quem se agarra à palma de uma mão em busca de algo que ajude a pagar o jantar ou umas novas argolas de ouro, que as ciganas são vaidosas. Também não digam que era apenas enigmático e distante. Sem significado. Isso é que não era, mesmo! Era aquilo que se poderia chamar de sorriso interrompido. Um início de sorriso a que algo invisível aos demais pôs um inesperado e abrupto travão. Um quase qualquer coisa. Jamais um sorriso completo. Genuíno e acabado. Por concluir estava igualmente o que teria feito os lábios da cigana mudarem de rumo, de direção. De uma linha arredondada que ameaçava elevar os cantos dos lábios para um tenebroso franzido de rugas miúdas nuns já quase inexistentes lábios. Apenas uma forma de afligir os pais, que já quase arrancavam o braço da criança, para que esta deixasse de estar presa ao encanto da cigana. Para que soltasse a pequena mão agrilhoada aos dedos de pele trigueira da mulher, que começara por dizer: “Que lindo futuro te espera…” para, logo no instante seguinte, deixar um longo e preocupante silêncio a pairar no ar quente daquela tarde. Um silêncio mais espesso do que qualquer imprecação. Mais ameaçador do que uma praga rogada numa tirada de ódio e vingança. O miúdo não arredava pé. Dir-se-ia que eram os seus enormes olhos negros e sem princípio nem fim quem mantinham os da cigana sob feitiço. Era aquele projeto de homem quem controlava a situação. Pés enraizados na pedra do passeio, olhos acorrentados aos da cigana.

By Antonio Mora

Qualquer tentativa parental, qualquer esforço humano, não serviria o propósito de separar aqueles dois naquele instante. Algo tinha de ceder, de se partir, para que cigana e criança se separassem, se desligassem. Entre eles, mais do que um encantamento, uma compreensão. Entendimento. Reconhecimento. Eram da mesma estirpe. Para lá da lógica e da razão. Eram da mesma massa. Unia-os o indizível. Palavras que se escreviam com um alfabeto ainda por inventar. Significados que só eles abarcavam, com os seus olhos negros sem fim nem princípio, com as suas peles morenas que se uniam como ímãs. O enleio manteve-se mais tempo do que o espectável. Bastante mais do que o razoável. Excessivamente mais do que o desejável para um encontro furtuito com a sina. Os pais impacientavam-se já. A criança fixa naquele instante ainda. A cigana a saber coisas que não dizia, que jamais diria em nome de umas moedas para a ceia, em nome de umas novas argolas de ouro, maiores e mais grossas do que as que usava. O que via não mereceria, por parte dos pais, mais do que medo e fuga. O que a cigana sabia não lhe pagaria o jantar e isso também ela sabia. Escrito nas linhas da palma daquela mão em formação estavam textos… de aflição e perdição, amor e êxtase. Caminhos estreitos, trilhos sinuosos e penhascos com vista para os mares da…

– Sorte rima com morte. Sorte rima com morte.

Sem palavras, sem sons ou movimentos, isto era o que a cigana ia dizendo à criança. Sem palavras, sem sons ou movimentos, isto foi o que a criança ouviu repetidamente.

Para acalmar os pais – já em histeria, puxando o braço da criança e empurrando o da cigana –, para pôr cobro ao desconforto, para ela própria se libertar do olhar hipnótico do pequeno, para poder procurar moedas noutra palma qualquer, a cigana procura calmarias naquele mar agitado e diz, agora para que todos ouçam:

– Esperam-te muitas coisas. Muitas coisas belas e espantosas. Todas se dirigem a ti. Todas te procuram. Vais tê-las a todas, pois que são todas tuas. Só tens de te preocupar com uma coisa: foge do poço branco, que tudo consome e tudo devora.

Ainda que sem dar crédito às palavras da cigana, a mãe do pequeno lembrou-se de imediato do poço que existia na quinta dos pais. O velho e majestoso solar, casa secular da sua família materna, ostentava um magnífico poço, num dos jardins de acesso ao pomar de citrinos. Obras de reparação recentes, acabaram por determinar novos acabamentos na estrutura circular do poço, o qual acabou, pela primeira vez na sua já longa história de vida, por ser pintado de amarelo após toda uma existência vestido de branco. Na vila contava-se um caso, perdido no tempo, mas não na memória, de uma criança, filha de um dos trabalhadores rurais, contratados à jorna por altura das colheitas, que caiu ao poço. O facto não tardou a ganhar contornos de lenda e são vivos ainda os muitos que garantem ouvir, ainda hoje, o choro da menina vindo das entranhas do poço. Um lamento fundo e doloroso, sentido mais pela alma do que pelos ouvidos. A menina, por artes do Diabo, chamava-se Branca.

Em tempos de seca, difícil seria convencer o pai a mandar tapar o poço, preciosa fonte de vida por aquelas bandas e quase um milagre da Natureza, pois nele nunca faltava água, por mais seco que fosse o estio. Ocorreu-lhe, então, uma situação de compromisso: forrar o poço de pedra. Poderia alegar apenas menos custos de manutenção, já que a pedra é duradoura, e, assim, ocultar secretamente o seu verdadeiro propósito. Deixar-se-ia enganar a sábia da providência com meros retoques estéticos? Não reconheceria, ainda e sempre, naquela goela aberta para o centro da terra, o velho poço branco? Um poço secularmente branco onde caiu uma criança chamada Branca? Discretamente, aquela extremosa e receosa mãe foi espaçando igualmente as visitas a casa dos pais e, no verão, o filho passou a ser encaminhado para campos de férias, ao invés de partir deleitado para a casa dos avós, onde experimentava uma total liberdade. A mãe cuidou de fazer o que achava melhor e mais acertado, porque nestas coisas do destino, mais vale prevenir do que remediar. O miúdo era esperto, também ele pensou no poço do avô ao ouvir as palavras da cigana. Mais do que esperteza, a criança reconhecia a atração bizarra que o fundo do poço exercia sobre ele quando se prostrava no cimo da sua boca, a tentar ver-se no seu reflexo, bem lá no fundo daquela garganta aberta à aventura e à desgraça. Também ele juraria, se preciso fosse, que muitas noites houve em que ouviu o murmúrio triste de Branca. Um gemido lamuriento e resignado, quase um uivo, que o chamava até lá, nas mágicas noites em que, com o avô, acampava pela quinta.

– São cigarras. – Assegurava-lhe o avô. – São cigarras. Ou algum lobo lá ao longe. Não tenhas medo.

Também seriam, pois claro, mas não seriam apenas cigarras ou algum lobo, como bem entendia o pequeno.

– Cigarras e grilos e as aves noturnas também. É a vida no campo!

Com os sossegos do avô, lá adormecia, sonhando sempre que caía no poço sem fundo para salvar Branca daquele já demasiado longo e tenebroso destino.

A vida aconteceu. O poço deixou de ser preocupação e o episódio da cigana perdeu-se no tempo, esquecido no passado longínquo. Nem sequer um caso anedótico que se contasse à mesa de Natal. Apenas um apagão, até na memória da mãe zelosa, por onde uma borracha de demência ia limpando ocorrências, sensações, recordações e até inquietações. O próprio esqueceu Branca, a menina que gritava em seu socorro, nas abafadas noites de verão ou nas enevoadas manhãs de inverno. Apenas o uivo de um lobo, talvez. Apenas o vento, por certo. Nada de mais, seguramente.

Nunca mais tinha recordado a cigana nem o presságio de uma possível queda num poço branco. Nunca até àquele momento em que se preparava para mais uma linha. Para mais uma dose de energia. Para mais um gesto fruto do hábito. Sorriu, brincando ainda com o cartão de crédito – de crédito zero –, apenas já e tão somente uma ferramenta de consumo diário, para cortar e aparar o pó, para o orientar numa linha sempre torta. A cigana a todos disse a verdade, mas todos se deixaram enganar, por conta de lendas e leituras literais. Aquele era o poço branco e sem fundo da sua vida. Ou estava apenas baralhado? Na superfície espelhada da mesa onde se debruçava, viu o rosto de um velho desdentado que se lamuriava com a voz que em tempos atribuiu a Branca, a menina presa no poço dos seus avós. Seria seu aquele rosto? Sua aquela voz de cana rachada? Não se recordava de não ter dentes, mas a fase da heroína tinha-lhe deixado marcas profundas, isso reconhecia tenuemente. A barba por fazer… O cartão de crédito – de crédito zero –, a linha torta, um risco branco e puro. Um poço sem fundo, um uivo que bem podia estar a vir-lhe do estômago, a linha que virou traço largo e a cigana a repetir ao seu ouvido:

– Sorte rima com morte. Sorte rima com…

Moral da história:

Mantenha a linha ou, então, fuja dela.

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