A reunião que tinha agendada para as 15h dava-lhe um pouco mais de duas horas para almoçar, já que não regressaria ao escritório. Claro que não se podia esticar. Sabia bem que uma hora bem organizada rendia mais do que duas sem disciplina. Assim, desceria ao centro comercial e aí comeria, mas podia sentar-se para variar. Escolher um restaurante com esplanada, já que apesar do dia estar frio, o sol estava desavergonhado. A ideia fê-lo sorrir. Era importante que descomprimisse, pois a reunião da tarde exigiria tudo de si. Dela dependia uma conta importante para a sua empresa e não estava em altura de falhar.

By Robert Doisneau

Poderia perfeitamente não se ter cruzado com ela, caso tivesse entrado pela porta costumeira e seguido pelo corredor de sempre. Não sabe muito bem porquê, mas variou. Entrou pela entrada mais a Norte e acabou por fazer um caminho diferente do habitual. Podia até ter-se cruzado com ela e não se terem visto, naquele vai e vem de pessoas em hora de almoço num concorrido centro comercial da cidade. Podia até ter sido visto, mas não a ter visto, ou vice-versa, e cada um deles manter o passo, sem se deter com saudosismos, e seguir em frente. Mas, porque há coisas que são mesmo do Diabo, tudo parece ter acontecido propositadamente para que se cruzassem. Ele, um pouco antes da sua hora de almoço e seguindo um trajeto que fugia ao carril de todos os dias. Ela, numa rara incursão por aquela zona da cidade, onde parece que mantinha a modista, o dentista e outros ‘istas’ da sua vida, mas onde nunca se detinha mais tempo do que o necessário.

Foi assim que, em plenas Amoreiras, colados à hora de almoço eles se cruzam. Se olham diretamente nos olhos, o que implica ausência de escapatória delicada, e acabam parados um frente ao outro, o que impossibilita vistas grossas ou outras grosserias. Sorriem, primeiro em silencio, cada um deles avaliando como será a reação do outro e se deverão, ou não, expandir o sorriso, mostrar um pouco dos dentes, proferir palavras e que tom deverão estas ter. De forma espontânea, e incentivada pelo reflexo do que viam um no outro, soltaram-se rugas e sorrisos, houve um certo brilho nos olhos e palavras de reconhecimento e felicidade, ou perto disso, talvez palavras apenas simpáticas. Depois de um divórcio não muito amigável, de alguns azedumes violentos e de vidas que jamais se cruzaram, eles ali estavam, um frente ao outro, percebendo por dentro aquilo que os tinha juntado e que, provavelmente – não fora todo o passado vivido a dois – poderia voltar a uni-los, caso aquele fosse um primeiro encontro, e congratulando-se interiormente por, afinal, serem um ex-casal civilizado, como aqueles que parece que só se vêm nos filmes (os de Woody Allen à cabeça). Perceberam até, de parte a parte, um certo charme, como se fosse importante voltarem a seduzir-se um pouco, talvez na arrogante ou ingénua tentativa de mostrarem, um ao outro, o quanto tinham perdido. Uma tentativa de provocar alvoroços cardíacos? Ciúmes pela vida que cada um tinha continuado sem que o outro dela soubesse? Infantilidades? Atração sexual ainda? Não interessa bem o quê, já que nenhum deles estava verdadeiramente interessado em repisar aquela uva. Já tinham produzido todo o vinho que poderia ser extraído daquela relação. Sabiam-no bem. Sem dramas ou ilusões. Tudo tinha sido destilado. Era um caso que estava bem enterrado. Luto feito e novas felicidades conquistadas. Ainda assim, aquela coisa morna e sedutora, atraía-os e satisfazia-os. Uma espécie de congratulação mútua por ainda conseguirem esse nível de respeito e entendimento. Uma réstia de inesperada faísca, que lhes permitia a vontade de quererem ainda saber um pouco um do outro. Tudo isto subentendido, muito menos do que isto dito e acabaram a almoçar juntos. Uma quase inevitabilidade, até porque ambos se dirigiam ao mesmo restaurante. Deixemo-nos de explicações, pois que nada temos a ver com o assunto e continuemos o relato.

By Saul Leiter

Ele no papel de cavalheiro, que, de início, tanto a tinha paixonado. Ela encantadora e de olhares intensos, curiosa em saber tudo sobre a vida atual do ex. Novos amores, novos amigos e até novos empregos. Havia filhos, sim, de lado a lado. Mostraram-se fotos, falou-se de viagens e bebeu-se algum vinho. De fora, parecia um almoço de recém-enamorados. Apenas os próprios sabiam que tudo estava, finalmente, resolvido. A meio da refeição, apesar da simpatia e bom ambiente, cada um voltou a perceber no outro as razões da separação. Ele era um bocado convencido, e lá ia forçando a ténue, mas presente ideia de que os seus filhos eram seres especiais em relação a todos os restantes filhos do universo, e ela impacientava-se quando via as suas ideias confrontadas, pois se ela tinha decidiu que também as suas crianças seriam vegetarianas, ninguém tinha o direito de fazer julgamentos. Não deixaram que a coisa azedasse e investiram na cordialidade, mas não deixaram que o almoço se alongasse, cientes de que as suas vidas os aguardavam noutro lugar que não ali.

By Antonio Mora

Num último despique, tentando perceber que tipo de homem e de relação é que ele tinha, ela atira, de rompante:

– Vais contar à tua mulher que me encontraste?

– Como?

– Tu ouviste a pergunta. Podes ganhar o tempo que quiseres e podes até não responder, mas não preciso de repetir, certo?

– Não tenho porque lhe esconder.

– Mas vais de imediato contar-lhe quem encontraste à hora de almoço e com quem acabaste por almoçar?

– O que te importa o que eu faço ou não com a minha mulher? O que lhe conto ou não? Achas que não a amo, ou que sou um crápula que lhe esconde assuntos?

– Não tornes o assunto íntimo. Nem precisas de responder, se não quiseres, como bem sabes. Só tenho curiosidade, nada mais.

– Gosto de limitar as minhas conversas aos factos importantes e o nosso almoço não é assim tão importante.

– Já percebi, não te aborreças.

– O que pretendes?

– Talvez estivesse apenas interessada em perceber se ainda mentes. Se fazes o de sempre ou se és um homem mudado, mais direto e sincero. Disparate meu, não te apoquentes. Olha, dividimos a conta, faço questão.

O atrevimento, pensava ele, recordando outras conversas do género e percebendo que a pergunta não tinha sido ingénua. Ele tinha-a traído, era verdade. Ela não encontrou perdão. Ele aceitou – que outro remédio tinha junto de uma mulher tão intransigente em matéria de honestidade e fidelidade – e cada um seguiu o seu caminho. Eram mais novos. Seriam ainda, de facto, as mesmas pessoas? Ou já outras? Não novinhas em folha, mas moldadas em função das vivências, talvez? Achou que ela estava mais direta, mas talvez isso se devesse à ausência de ligação afetiva entre ambos. Quanto a si, estaria ele diferente? Com honestidade, se se tivesse atrevido a responder com frontalidade, o que diria? Sabia bem que jamais entraria em casa dizendo: “Querida, nem imaginas o que me aconteceu hoje! Tive o mais agradável almoço com a minha ex. Muito civilizado e esclarecedor. Deu para perceber que estou muito melhor contigo do que com ela. Não ficas feliz?” Não era o mais intuitivo dos homens, mas sabia que a coisa podia azedar para o seu lado. Que se tivessem cruzado, ninguém o poderia evitar. Que se tivessem cumprimentado? Tudo bem, são pessoas civilizadas que partilharam anos de vida em comunhão de afetos. Mas que tivessem parado para almoçar juntos e esmiuçar a vida de cada um? Qual a necessidade? Isso já implicava vontade, desejo e curiosidade. Isso poderia ter sido evitado. Devê-lo-ia ter sido evitado, pensaria a sua mulher. Não pensaria ele o mesmo se fosse ao contrário? Se fosse a mulher a almoçar, toda dengosa, com o seu ex?

Quanto à sua ex, sempre tão vegetariana e colorida e alternativa… Provavelmente, teria uma daquelas relações ‘abertas’ – como se abertura ao exterior não contrariasse, em certa (grande) medida, a própria noção de relação – e começaria logo por aí a conversa com o atual marido, logo que entrasse em casa. Talvez até com o propósito de semear um certo ciúme e acabar por ter sexo mais aceso nessa noite, à conta do almoço com o ex. Quem sabe? Ele não, por certo, nem estava interessado. Nisto, repara nas horas. Tinha de sair já, se queria chegar a horas à reunião.

A tarde correu bem. Muito bem, mesmo. Terminada a reunião, já quase perto das seis, decidiu seguir direto para casa, de onde responderia aos e-mails e, assim, por uma vez, poderia ajudar nas tarefas de fim de dia, sempre tão extenuantes, é certo, mas sentia-se com vontade de agradar. Levaria um bom vinho para o jantar, queijo e uvas. Quando ela chegasse a casa, com os miúdos, surpreendê-la-ia com as entradas e algum romance. Sentia-se bem e leve. Feliz, na verdade. Satisfeito com a vida e consigo mesmo e estava com saudades dos miúdos, mesmo da sua hiperatividade. A surpresa, todavia, foi sua. A mulher já estava em casa e os miúdos já faziam os TPC num misterioso silêncio. Ela devia estar com enxaquecas. Eram frequentes e muito limitadoras e um dos melhores corretivos para manter as crianças sossegadas, que se assustavam com os olhos enlouquecidos da mãe quando gritavam, pelo que se mantinham em silêncio, ou quase.

Deveria ter adivinhado, mas não era dado a adivinhações, pelo que nenhuma luz vermelha se acendeu no seu tranquilo cérebro. Poderia apenas ter estranhado, mas há muito que deixara de tentar adivinhar os humores da mulher. Pensando um pouco sobre o assunto, talvez devesse ter-se mantido apenas alerta, afinal, o mundo é uma ervilha e tudo é bem mais transparente do que gostamos de acreditar. Assim, tranquilizado com uma possível enxaqueca, amolecido com o seu próprio bem-estar, entrou no quarto. Sentou-se na cama, sussurrando carinhos e cuidados. Tudo normal, pensou. Ela pede que ele não acenda a luz. Ela pergunta pelo seu dia e ele lá desbobina a versão abreviada do sucesso da reunião. Ela pergunta pelo almoço e ele avança sem dramas, sem alertas, sem sinalizações de perigo.

– Almocei com o Ricardo no Central, para variar.

Ela acende a luz, estende-lhe o telefone onde uma foto dele com a ex numa risota pegada ocupa o visor, e pergunta-lhe se o Central se mudou para as Amoreiras e se o Ricardo, agora, se veste de mulher.

Ele, mudo. Ela, assassina. Ela a acreditar que é o fim. Ele a regressar ao princípio e a tentar perceber quem poderia tê-lo fotografado e ter feito tamanha sacanice. Ela a odiá-lo e à ex. Ele a odiar a ex e a sua própria estupidez e mais ainda o cretino que se dera ao trabalho de o fotografar e enviar ‘provas’ à mulher. Ela expectante e em fúria. Ele apalermado e sem palavras.

Ainda bem que tinha trazido um bom vinho.

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