Pode dever-se à cabala ou apenas a uma enorme falta de imaginação, o certo é que, mais uma vez, não conseguimos contornar o número três, dito perfeito por pitagóricos, e mais não sei o quê por outros indivíduos. Nada temos contra o dígito, nem em si, nem fora de si, mas depois dos três porquinhos, das três velhinhas, das três fadas madrinhas, a casa dos três ursos, das três mentiras da avozinha… Ainda bem que os anões eram sete, caso contrário, poderíamos supor que quem inventou todas estas histórias não sabia contar para lá de três, esgotando toda a sua sapiência no ramo criativo. Não tem mal, mas cansa um pouco. Para acalmar ligeiramente os nervos exaltados pela numerologia, passemos antes para os quatro vestidos. Ah, muito melhor! Só de sair de dentro daquele triângulo triunviratical e já nos sentimos todos mais aliviados, não é? Eu cá, sinto-me.

Esta é, então, a história dos três vestidos que passaram a quatro. Uma conta fácil de fazer, mesmo não dando resto zero, atendendo à refrescante trend dos desempoeirados Millennials, vocacionados como nenhuma outra geração para a reciclagem, o reaproveitamento, a reutilização e consumos em segunda e terceira mãos, num claro ‘Não’ ao desperdício. Foi imbuída deste novo mind set, todo ele ‘salvemos o planeta e, já agora, os humanos’, que Patrocínia da Encarnação, um nome demasiado antigo para uma mulher deveras moderna e muito do seu tempo, se aventurou na emergente profissão de trendsetter ou influencer. Não se estava a dar mal. Tinha faro para apurar ‘l’air du temp’, sentir o que estava para chegar e, de entre isso, aquilo que valeria a pena reter e amplificar. Tinha bons filtros e sabia comunicar aquilo que estava para vir nas suas várias contas disto e de mais aquilo. Era instinto e alguma sorte, imprescindível em tudo na vida. E pensar que tudo tinha começado num exíguo provador virtual, um pouco para o mal iluminado. A meio da prova do primeiro de três vestidos que elegera online, a aplicação começa a dar erro, solicita nova atualização para, logo de seguida, simplesmente desaparecer. E agora?, pensou. Como saber se gostava de ser ver? Qual deles escolher? Era impossível comprar assim, sem referências. Logo naquele dia, em que tinha decidido deixar resolvida a questão do look para um jantar muito especial, agendado para daí a dois dias, com um tipo que se adivinhava fantástico e que tinha conhecido num site de encontros para pessoas casadas (apenas para fazer um refresh à sua vida sexual, tão confinada ao modus operandi de sempre com o seu Adalberto do coração. Ele jamais descobriria e ela regressaria a casa com mais ‘escola’ e vontade de o surpreender. Bem analisadas as coisas, ambos ganhavam)…

By Vivian Maier

Ficou fula. Ficou Vêgê. Viu-se forçada a olhar com olhos de ver o seu guarda-roupa e inventar algo novo em apenas dois dias. O que Patrocínia da Encarnação não teria dado para ter os anões da Branca de Neve ou os pássaros e ratos e toda aquela bicharada da Cinderela ou as fadas madrinhas rechonchudas – não vamos cair no erro de as chamar de gordas, menos ainda de obesas, que naquele tempo não havia ‘gordofóbicos’ como agora – da Bela Adormecida a costurarem-lhe de criatividade os seus trapos. Mas não. Nada disso tinha. Tudo dependia dela. Sempre. A toda a hora. Nisto, pensou, então porque não assumo também isto? Não tenho auxiliares, mas também todos sabemos que se queremos algo bem feito, temos de ser nós a executá-lo. Porque não também isto? Estava decidido. Lançou sobre a sua roupa olhares cirúrgicos e propositadamente míopes – o que conseguia semicerrando os olhos –, a fim de tentar captar um padrão, um set de cores e texturas, alguma harmonia que pudessem conjugar-se entre si e, em conjunto, despertar uma ideia, um mix de genialidade… Claro que quem procura sempre encontra e foi assim, entre os glitters, o animal print e o print de animais – tinha muita coisa com gatos e lagartos –, o cabedal e uma ou outra caxemira que tudo ganhou forma na sua fervilhante mente. Nesse momento, sentiu-se completamente designer, restava saber se entraria tão bem no perfil de costureira. Procurou tesoura, linhas e dedal. Não encontrou, mas não seriam meros utensílios, quase acessórios, que a impediriam. Não agora, que já tinha a visão. Não agora, que já desfilavam moldes na sua cabeça. Não agora, ponto. Mais do que decidida, estava determinada. Vestira a capa de missionária rumo à excelência de um look que renderia intimidades, preferencialmente carnais, no encontro que tanto ansiava.

By Robert Doisneau

Na base do projeto estavam três vestidos, umas calças de ganga e uma écharpe de seda que há muito não usava, mas todos de excelsa qualidade. Um dos vestidos era de malha de lã antracite, um de seda selvagem e, por último, um de uma malha de algodão primorosamente colorida com um geométrico jacquard, a lembrar os padrões da elitista Missoni. Estava lançada. Aquele pot-pourri de texturas e complexas padronagens, aquela mescla heteróclita teriam de resultar num retumbante fator Uau! Melhor seria se, retirando daqui e dali, refazendo e remexendo conseguisse não apenas um quarto vestido, como reabilitar os três que lhe dariam origem. Aumentava o desafio e a vontade de meter mãos à obra de arte. Já a conseguia ver. Uma saia curta, retirada de uma longa, umas mangas que virariam corpete, uns jeans velhos agora tornados calções cujos bolsos ainda resultariam numa original clutch… As ideias fervilhavam na sua mente. Sem tesoura, rasgaria o tecido, dando um ar selvagem a todo o processo criativo. Sem agulha ou linhas, agrafaria o conceito e os materiais, e não perderia a chance de usar os seus inúmeros alfinetes de ama de coleção, alguns deles preciosidades de outras épocas. O resultado foi épico. Um misto de hippie-chic e steampunk na sua versão hip-hop, com nostálgicas notas de folk e pura rapsódia peruana. Aquilo era novo. Livre. Isento. Despretensioso. Arrojado. Uma nova gramática estilística. Um novíssimo código do saber fazer e costurar. Iria fazer escola, e em escala. Sentia-o por dentro. Via o futuro naquele seu vestido. Estava de parabéns. Abriu uma garrafa de vinho e ficou por ali, a observar a sua obra, a elogiar a sua mestria. Tinha de começar já um blog, um site, um e-commerce, uma aventura cibernética. Mostrar ao mundo o que acabava de criar. Partilhar com todos a sua exímia genialidade. Tinha de dar início à sua nova profissão e à sua vindoura fortuna. Já ambas tinham um rosto, uma fragrância.

Antes disso, o excitante encontro com um misterioso homem casado. Tinham ambos concordado em não mostrar as suas fotos, no decurso do seu flirt online, numa espécie de gesto de confiança, ato de fé ou apenas parvoíce, que isto de sair com um estranho pode, obviamente, ser bastante perigoso, já para não dizer dececionante. Aumenta, porém, os níveis de adrenalina e aquele tipo de ansiedade positiva que nos tira o sono e a fome e faz o mundo mover-se mais depressa, enquanto parece emperrar os ponteiros do relógio. O seu vestido, uma (re)criação da sua exclusiva autoria, representava tudo isso e estava mais do que à altura de todas aquelas emoções que lhe fervilhavam nas entranhas.

Não era a sua primeira vez naquelas andanças. Já tinha visitado algumas vezes, não muitas, mas algumas, as mal iluminadas vielas da traição conjugal. Não era maldade. Nem falta de amor pelo seu adorado Adalberto do coração, que amava quase a 100%. Era um pequeno escape, para desempoeirar a rotina matrimonial, cujo gráfico, se não se tomassem medidas sérias, seria uma linha vertiginosamente descendente. Pois ela, Patrocínia da Encarnação era mulher de subidas, jamais se pretaria a descer uma colina. Para cima era o caminho. Nada mais permitiria às suas tonificadas pernas, que a descida não tem graça. Pois se já se subiu, até a paisagem é a mesma, apenas muda o sentido. Não tem piada. Entusiasmada com o seu date, verdadeiramente blind, e ainda mais excitada com o seu outfit, não via a hora de alinhar todos aqueles chakras numa noite que antevia memorável, como tudo aquilo que projetava à sua frente. Ao Adalberto já tinha referido uma Clínica de Pensamento Positivo, a que não podia, de todo em todo, faltar, e que, a fim de testar o verdadeiro empenho e compromisso dos participantes, tinha início à hora do jantar e se prolongava pela noite dentro. Ele que apenas a aguardasse para o almoço do dia seguinte. Adalberto do seu órgão cardíaco – em nome da escorreita leitura do texto, há que saber encontrar sinónimos – sossegou-a, pois também ele tinha assuntos de contabilidade para tratar. Aproveitaria o serão para tratar de tudo, no silêncio do recatado lar. Estava, portanto, tudo a postos.

À hora marcada, dando o nome de código combinado – ela era Zulmira Cabrita, ele, Guilherme Escorregadio –, subiu à suite do hotel onde marcada encontro com o seu Adónis anónimo. Jantariam discretamente no quarto e, se o mood o favorecesse, ficariam logo por ali, evitando procuras de quarto de última hora, já que sexo no carro é muito giro quando se tem uma autocaravana, ou um camião de muitos rodados, com uma ampla e bem climatizada cabine, caso contrário… Já não tinha 19 anos, nem se prestava a tudo, além de que a sua pequena escoliose apreciava o conforto das cinco estrelas. Explicado tudo isto, lá subiu Patrocínia da Encarnação, com o coração palpitante e o seu vestido de arrasar qualquer ‘inimigo’. A porta da suite estava aberta, graças a um enorme bouquet de rosas vermelhas que servia de romântico trava-portas. Não adorou. Demasiado cliché, além de que não apreciava flores fora da terra. Entrou sem apanhar o ramo no qual, de resto, limpou melhor a sola das botas campestres que completavam o seu estonteante visual. Era imprescindível eleger um elemento que apenas aparentemente destoasse do resto da indumentária, como ela tão bem preconizava aos seus seguidores. Uma nota em falso, um punctum, uma alfinetada que chamasse a atenção e que fosse inequivocamente reveladora do quanto se entendia da matéria, caso contrário, jamais se arriscaria tal coisa. Só a segurança total, só o domínio de mestre permitia este tipo de ousadias e isso ficava manifestamente claro com as suas botas de campino.

Os seus olhos, expectantes, brilhavam mesmo no escuro, mas logo se tornaram baços ao reconhecer a careca do seu Adalberto que, em nome de uma qualquer imbecil e muito imberbe estratégia de mistério, se encontrava de costas, olhando a janela, como se não tivesse dado conta da sua entrada no quarto. Hesitou. Podia muito bem sair sem que ele soubesse que era ela. Poderia fingir que nunca ali estivera. Podia até armar um enorme escândalo, dizendo que, desconfiada como era, bem percebia como ele andava diferente e garantir que apenas o seguira, para ver do que ele era capaz. Podia inventar que a sua Clínica de Pensamento Positivo decorria naquele mesmo hotel e que, ao vê-lo subir, se encheu de coragem e o tinha vindo confrontar. Como é que ele era capaz de lhe fazer uma coisa destas? A ela, quase sempre tão fiel e dedicada. Uma mulher como jamais encontraria. Amuaria. Choraria. Fá-lo-ia sentir-se pessimamente. Insistiria no divórcio. Exigiria joias e um cruzeiro… A infinitude de possibilidades, as atraentes perspetivas de um desfecho desta natureza jogavam muito a seu favor. Tinha de ser rápida. Ele virar-se-ia a qualquer instante. Podia, também, fazê-lo acreditar que tinha descoberto tudo online, e que se ‘disfarçara’ de parceira ideal, para o apanhar, ou apenas para, num derradeiro gesto de amor, lhe fazer ver que ela também era expedita e sexy e que a tudo estava disposta em nome da relação que tinham juntos. Quantas vezes já o palerma teria feito aquilo? O traste! Grande verme, pensou Patrocínia, que enveredava já, e sem retrocesso, por pensamentos de ódio e vingança. Apetecia-lhe atirá-lo pela janela. O que procuraria ele nos braços de uma estranha que ela não lhe proporcionasse? Grande porco! Estafermo! E ela preocupada em encontrar uma mentira simpática para lhe dar, quando ele nem devia acreditar na enorme e feliz coincidência de ela ter um programa logo nessa noite. Que maravilha! E se fosse ao contrário?, ocorreu-lhe. E se tivesse ele descoberto tudo como ela se preparava para o fazer acreditar? E se… Não teve tempo de concluir nada mais. Adalberto virava-se. Dentro de segundos ficariam frente a frente. O que acabaria por lhe sair da boca, pensava ela? Para que lado penderia a sua mente, o seu caráter? Descobriria em si uma mentirosa? Ou a mulher frontal que sempre se julgara? Abriria o jogo sem pudor, ou esconder-se-ia sob uma carapaça de subterfúgios mais ou menos infantis? Estaria mesmo interessada nesse teste de personalidade? Podia virar-se repentinamente e ele jamais ficaria a saber. Fosse como fosse, já o odiava. Por causa dele não teria sexo excitante e transgressor nessa noite como tinha agendado. Parvo! Porco!

Moral da História:
Ele há cada uma!

By Vivian Maier

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