Príncipe do Mar. Não precisou de ouvir mais. Estava tudo dito. Tudo esclarecido. Falaram em príncipe. Juntaram-no a mar. Que mais se poderia acrescentar? Nada mais. Não para si, que sempre procurara um príncipe entre os homens. Não para si, Mar-Ia, que já trazia o mar e o verbo nome, e sempre que o mar ia ou vinha, ela ia e vinha com ele. Maré acima, maré abaixo, como o bater do oceano que vivia no seu peito. Ora bravo e assustador – porque assustado –, ora calmo e lânguido – porque preguiçoso. A sua mente vestia-se e rendilhava-se de poesia e príncipe do mar tinha toda a métrica necessária ao seu verso. Com ele poderia fazer rimar todas as alegrias e felicidades do universo. Se estaria interessada em conhecer o Príncipe do Mar? Pois se toda a vida o aguardara, como não galopar pela areia ao seu encontro numa sôfrega ansiedade? Como deixar para mais tarde, se tarde já ele era? Tardou a chegar o entardecer desse dia, mas não o vestido amarelo que decidiu usar. Este estava mesmo ali, na porta da esquerda do seu roupeiro. Mesmo ali, ao lado do vestido laranja e do outro, o vermelho, lado a lado também com o branco e turquesa. Mas seria o amarelo, da cor do limão e do Smiley e dos dias felizes e soalheiros que moravam no seu, nem por isso curto, calendário. Nos pés umas sandálias fáceis de calçar e descalçar, para, depois, molhar os pés na água salgada do mar do príncipe, e paná-los, depois, na fina areia da praia que seguraremente andará por perto. Ao pescoço uma longa écharpe, para esvoaçar em horizontalidades ondulantes atrás deles. De ambos. Um cortejo de cor e esperança. Um rasto vivo daquilo que sentia por dentro.

Ele perceberia tudo isso e outro tanto. Apenas de a ver, ele saberia que era ela. Sorriria como o faria um amante que está de regresso. Que reconhece o vestido e o seu propósito. Como alguém que antecipa o reencontro. Que anseia pelo seu sorriso. Nem eram precisas palavras. Um abraço. Forte e verde, como todos os bons abraços. Regenerador. Um abraço-primavera. As faces coladas aos pescoços. Os olhos fechados de tanto ver. Demorariam no aperto. Alongariam o momento. Atrasado ficaria o igualmente aguardado olhos-nos-olhos. Talvez nariz com nariz, dependia da intimidade e do humor. Logo chegaria o beijo azul, como todos os bons beijos. Um beijo que é céu e água, longe e perto, profundo e marinho. Em nome desse beijo agendado não pôs batom. Queria pele com pele. Nada de bálsamos pelo meio. Nada de cores outras a esborratar o azul do beijo. Nada de colarinhos brancos sujos de um qualquer tom de fruto do bosque. Queria poder cheirá-lo sem receios. Roçar os lábios na sua barba que despontava, no tecido de linho ou algodão da sua roupa. Quanto a isso não tinha absolutas certezas. Ele tanto lhe surgia tecido em algodão como em linho. Preferia, talvez, mas sem grandes certezas, o primeiro cenário. Algodão é um clássico. Doce, suave, duradouro, seguro e fiável. Perfeito ao toque. O linho, podendo ser igualmente tudo isso, é um pouco mais áspero, texturado, e sugeria um homem mais blasé, ou seja, um tudo nada mais confiante, talvez mais viajado e descontraído, quem sabe mais mulherengo. Fazia sempre lembrar-lhe videoclips do desesperadamente sedutor Iglesias, um género de charmant de outras eras, que lhe eriçava os pelos de uma séria alergia à misoginia e à pirosice. Por outro lado…

Não, linho era mais campo. Algodão era mais mar, ainda que muitos acreditem exatamente no contrário, que linho sugere praia e algodão um prado. Queria mesmo que ele se tecesse de algodão. Podia ter uma mistura, imagine-se, de 70%-30%, desde que a percentagem menor não incluísse elastano. Gostava de fibras estanques, que não se esticam para lá dos limites da sua área exata, que não se movem além do corpo, que não se exercitam sobre este. Fibras seguras. Sem surpresas. Se por acaso acontecesse linho, o que faria? Ficaria dececionada? Pararia nesse detalhe? Ultrapassaria o facto no mesmo segundo? Sim. Foi a resposta que deu a si própria. Achava sinceramente que sim, que nada alteraria. Ah, mas se for algodão… Então, não restarão frestas na sua enorme certeza. Nem a luz conseguirá penetrar a estanquidade do perfeito sólido, em nada geométrico, que já era o seu amor por ele.

Estava pronta. Aguardava um toque no telemóvel. Sinal de que poderia descer. Que os amigos já estariam na rua, à sua espera. Estaria, então, mais perto do seu príncipe do mar. Não foi um toque. Foi uma mensagem que a fez disparar para fora de casa. Vestida de amarelo e esperança. Não era dia de elevador. O coração precisava de iniciar o exercício, para melhor reagir ao muito que se lhe exigiria em breve. Para melhor se preparar para o baque do amor. Correu pelas escadas, onde as sandálias rasas e de tiras sacudiam chláp-chálps degraus abaixo. Era o típico som que agrada quando a sua autoria nos pertence e que irrita solenemente quando vindo de outro autor, ainda que conhecido. Juntou à sinfonia, o som da franja de missangas da sua cesta, que deixou que roçasse sobre o mármore dos degraus. Aquilo era felicidade. Só a felicidade permite brincar com a vida, dando-lhe mais vida e sonoridade. A depressão é mais surda de ouvido. Mais irritadiça e cheia de ruídos que abafam a musicalidade das coisas. Sim. Aquilo era felicidade. Expectativa, também. Uma agradável ansiedade perante o muito que se adivinhava lá fora, na rua, junto do Príncipe do Mar.

Seria o quinto elemento do carro amarelo-torrado que a aguardava. Gostou da cor. Parecia escolhida para coordenar com o seu visual. Mais um bom presságio. No carro, risota, conversa música e dois estranhos. O irmão e um primo de uma das amigas. Não prestou muita atenção. Toda ela ansiosa pelo rosto do Príncipe do Mar. Perguntou, discretamente sobre ele. Apenas uma breve curiosidade. De forma calculadamente descuidada e despreocupada, como se não fosse tudo aquilo em que ocupava, de forma exclusiva, a mente desde que alguém juntara aos seus ouvidos as mágicas palavras Príncipe e Mar. A última coisa que queria, principalmente perante as desinibidas e perspicazes duas melhores amigas e, mais ainda, na presença de dois estranhos, dar a entender o descompasso do seu batimento cardíaco, a sua expectativa de romance com alguém que ainda nem conhecia, mas para quem caminhava guiada por uma espécie de instinto ancestral. Quase uma ordem visceral e animalesca. Rumava ao encontro do seu parceiro de vida.

– Já vais ver. É a tua cara.

Por momentos, aquela curta resposta parecia esconder algo mais. Seria um ‘arranjinho’? Isso é que não. Por amor de Deus, isso é que não! Além de lançar a sombra do desespero na vida amorosa de ambos os envolvidos, era sempre mais penalizador para as mulheres. Os homens, em termos de protótipo, claro está, são mais dados à conquista, a cirandar as redondezas das míticas e já inexistentes, porque obsoletas e despropositadas, fortalezas femininas. Ou seja, um solteirão não está tão intrinsecamente associado ao fracasso afetivo. Pode ser apenas um tipo com menos skills guerreiras, nas andanças da conquista de terreiros alheios, ou apenas com o foco de atenção numa qualquer carreira de nerd.

Encontram-se sempre múltiplas explicações, até inconscientes, para não olhar um trintão como um pobre desamado. No caso das mulheres tudo é bem diferente, mesmo para os pretensamente muito emancipados tempos de agora. Uma mulher solteira que tenha ultrapassado a tenebrosa barreira dos trinta anos ou é frígida e detestável, ou demasiado fácil, ou complexamente difícil, ou tem múltiplos problemas que homem algum se atreve a resolver… Nunca se encontram justificações simpáticas para o celibato no feminino, nem se contempla a saudável hipótese de ser uma consciente opção de vida. Por isso, em caso de blind date, ainda que ambos ‘encalhados’, para dar algum uso à linguagem e mentalidade de antiquadas avós, a mulher parte sempre em desvantagem. Esse seria o seu caso. Por tudo isso e tanto mais, por favor – pedia interiormente –, que aquilo não fosse apenas um encontro às cegas, com alguém que consideravam poder vir a ser o seu match. A sua cara. O que é que isso queria verdadeiramente dizer? Que eram parecidos fisicamente? Que coisa horrível! Só lhe soava a incesto ou algo equiparado, mas de igual mau gosto.

Chegámos, disse alguém no banco de trás. Olhou desconcertada para o lugar ermo, no cimo de um penhasco, de frente para o bravo Atlântico. Apenas um princípio de corrimão de madeira, meio oculto pela escassa vegetação costeira, salpicada com alguns pinheiros, denunciava presença humana, que tudo o resto era de Deus. Colados à encosta, por ela serpenteando, já em semiobscuridade, iluminavam-se uma infinidade de degraus. Uma pequena luz por cada um, numa grinalda de luzes que não parecia ter fim. Agora, sim, tinha mesmo de valer a pena. A paisagem era deslumbrante, mas desnecessária quando os olhos e o coração se fixam noutros desejos, não tão significativos para a humanidade, como uma bela paisagem bem preservada, é certo, mas bem mais pertinentes e vitais para a sua sobrevivência individual. Era momento de egoísmos, não se recriminava por isso.

Desceu em sonora musicalidade, replicando o tema que estreara nas escadas do prédio. Ali, sobre a madeira, os seus instrumentos ganhavam um timbre étnico. Muito adequado. Com o avanço do esforço, as conversas escasseavam, numa clara poupança de fôlego. Nisto, num misto de alívio e enorme desapontamento, um elegante letreiro de madeira, iluminado com uma luz quente como a de velas, anunciava o que não esperava e, ao mesmo tempo, a única coisa que deveria ter esperado se fosse uma pessoa de lógica dita normal: um restaurante-barra-tasca de praia. Sem querer baixar o agradável frenesim da espectativa, que a alimentara até ali num extasiante bem-estar interior, imaginou que seria o dono o seu príncipe e que tudo se mantinha igual. Havia mar com fartura e haveria o seu príncipe. Reorientou o seu foco para essa possibilidade. O restaurante era uma preciosidade conhecida apenas por alguns, mas já começava a sair do anonimato, para infelicidade dos habitués. Exultantes, já sobre o areal, por onde seguia, em linha reta, uma larga passadeira debruada com as mesmas luzes que as da encosta, que agora, vista de baixo, lembrava o contorno de um gigante veleiro de madeira em noite de festa, todos falavam em búzios e percebes, e nas melhores ostras do mundo. O seu apetite não estava no estômago, mas no peito. Ansiava chegar e ver o príncipe que, de uma forma estranha, sabia que lá encontraria. Por si passou, assobiando um tema que ela adorava, o irmão da sua melhor amiga, a que insistira numa visita ao Príncipe do Mar – nome que ela colou a uma pessoa. Nem reparou que ele se tecia de puro algodão  branco. Que a sua barba começava a despontar. Que os braços dele eram verdes e que de azul se pintavam os seus lábios.

Moral da história:

O perto que se faz longe é a pior das distâncias.

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