Do género pragmático, racional, organizado e ambicioso, Eduardo viu-se um dia numa estranha encruzilhada. Perdera-se de amores e encontrara-se de desejos por uma curiosa criatura, um quase alienígena, uma alma desgarrada, presa a um universo fixo e ficcionado, como aquele que os livros e a história nos dizem ter existido no século XIX. Tão preso a coisas que ficaram lá atrás como o telefone com fios. Claro que funciona, que confere segurança, que aquece o coração com compressas de nostalgia e conforto, que atrai, com o seu design vintage e as certezas de outrora, mas não é exatamente isso que se procura quando se procura um telefone. Na verdade, não se procura isso. Procura-se mobilida e aventura. Desassossego e sofreguidão. Aconteceu apenas que com isso se cruzou e estava complicado com isso descruzar-se, já que, absurdamente, lhe dava prazer e se apresentava exatamente como aquilo de que necessitava, sem que jamais o tivesse percebido. Sentia no peito o frémito do descobridor, daquele que encontra algo de absolutamente raro. Tinha nos olhos o brilho do garimpeiro ao sentir no bolso a pepita, de tamanho e qualidade tais, que mudará a sua vida para sempre. Para melhor, claro. O seu cérebro exultava, como o matemático que descobre a teoria que explica todo o universo e o amor também. Para sempre, na sua vida, haveria um antes e um depois dela. Não era apenas uma namorada, uma mulher, era aquela pessoa que reconhecemos bem lá dentro, ser a nossa pessoa. Aquela. A única capaz de somar coisas boas à nossa conta pessoal.

Porém, como podia isso ser possível? Ela vivia de emoções, aceitando como dádivas tudo aquilo que a vida colocava no seu tabuleiro, sem juízos de valor, sem quantificações ou qualificações. Engolia tudo aquilo que a vida lhe vomitava para cima, sem exigir, sem atalhar, sem ripostas, sem se aventurar na descoberta, na procura consciente daquilo que queria. O que queria ela, afinal? O que pretendia da vida? Da sua vida? Aí, parecia residir o maior enigma. Ela nada queria ou desejava. Ela limitava-se a existir e a sorrir a tudo, como uma tola, ali bem no limiar da idiotice. Por vezes, Eduardo preocupava-se. Podia, de facto, ser um caso clínico, funcional, mas patológico, e ele simplesmente não conseguisse fazer o devido diagnóstico. Ela era como um peixe que, tão somente por preguiça, seguisse apenas a orientação dos ventos e das marés, jamais fazendo uso das barbatanas para seguir um pretendido rumo, para chegar a um certo lugar desejado ou apenas imaginado. Seguia a corrente, jamais supondo ser possível o esforço sazonal do salmão. Seria falta de energia física? Anímica?

Mas como ela era feliz. Não havia dicionários capazes de contemplar palavras com o devido significado para nomear e descrever a pura felicidade em que ela vivia. Não havia escalas que se alongassem o suficiente para abarcar o seu positivismo. Era contagiante. Lá está, parecia uma criança ou uma tola. Sempre a suspeita crónica de uma psicose ou limitado quociente de inteligência. Sempre uma sombra. Um incómodo, talvez, que não o largava. Um constante sobressalto, que o atormentava sempre que ela não estava fisicamente presente. Na presença dela, tudo era tão simples e encantador, despreocupado e estupidamente feliz que não havia espaço para duvidar do que quer que fosse que suscitasse o risco de a perder. Mas logo que virava costas, ainda antes de chegar à porta do elevador e já o seu cérebro se questionava. Que caos de casa. Sempre tudo desarrumado, sempre roupa por todo o lado. Livros que não se acabam de ler, pratos que nunca regressaram ao armário de onde um dia tinham saído. Velas que se colavam aos coutos das anteriores, num mesmo copo ou vaso. Uma máquina da roupa onde se exercitava um coelho vigoroso, e por cujo tambor nunca outra coisa correra, senão as pernas musculadas do roedor. Um eterno cheiro a laranjas e chocolate, absolutamente inebriante e sedutor quando se chega a casa, mas que ganha traços de enjoativo e bafiento logo que o fresco da rua limpa as narinas. Aquilo funcionava como um feitiço. Havia a bela vida de quando Eduardo estava ao abrigo da presença dela, das suas coisas, da sua magia e dos seus sortilégios. E havia a vida lá fora, onde voltava a encontrar os seus pares. Gente como ele. Que corria a descobrir e a desbravar o seu caminho. Que na máquina da roupa lavava roupa e que não brincava com o fogo, nem mesmo o das velas. Gente de quem o mundo dependia para seguir o seu rumo progressista, para ganhar dinheiro e pagar as dívidas. Gente que não misturava laranja e chocolate, ou que lavava as mãos sempre que o fazia. Seria ela louca? Como podia qualquer coisa bastar-lhe? Como podia tudo ser perfeito? A perfeição é já uma impossibilidade, o que tornava ainda mais absurda a forma de estar dela perante as inúmeras possibilidades do universo. Como não chamar algumas a si? Como não procurar? Apenas estar não basta. Não chega. Como contentar-se com um universo de janelas contemplativas, sem possibilidade de sair e agarrar?

Marta olhava-o num misto de amor desmedido e preocupação. Um amor onde cabiam todas as idiossincrasias e aberrações de Eduardo. Uma preocupação crescente para o desnecessário desperdício de energia que ele dispendia nos aspetos meramente acessórios da vida. Se ao menos ele investisse tanto no coração, este não explodiria diariamente com arritmias e descompassos impróprio à sua natureza. O nosso coração foi feito para correr livremente no peito de outra pessoa. O coração foi desenhado para amar. Não para se preocupar. As únicas ralações que devemos enfrentar são as afetivas, tudo o resto passa, mesmo que masoquistamente se insista em por lá ficar, preso a uma preocupação. Tudo nele era exatidão e ângulo reto. Ansiedade e velocidade. Folha de cálculo e pauta geométrica. Não havia espaço a rimas soltas e livres, que reinventavam palavras e reorganizavam destinos. Sem abertura para a vida, a vida não acontece. Limitamo-nos a ensaiar planos paralelos à existência saudável e despreocupada. Eduardo não era livre. Vivia agrilhoado a esquemas, ordens e ditames tolos. Planos e restos zero. Nada lhe chegava. Tudo estava ainda por ver, fazer e acontecer. Estava sempre de partida para um qualquer lugar. O mundo dele era feito de portas de saída. Ficar também podia ser uma aventura. Se ele, ao menos, compreendesse. Não era desprovido de inteligência, pelo que como poderia não ver como se afundava em desperdício? Em banalidades? Para ele, uma carreira, o sucesso, a felicidade eram aquilo que os outros entendiam por isso mesmo e não aquilo que o fazia vibrar e rebentar de orgulho por dentro. Nele, tudo era por fora. Visível. As suas definições eram proferidas pelos demais, também eles perdidos em dicionários comuns e generalistas. Sem a liberdade do poeta, do inventor, do revolucionário, do descobridor como se poderia falar, sinceramente, de liberdade? Ele deixou-se espartilhar nos seus fatos em série, pintados de preto, cinzento ou azul-escuro, únicas três cores do seu guarda-roupa, onde algumas camisas brancas eram a refrescante exceção. Não era o único, na verdade. Eduardos pululavam o planeta. Gente empertigada, que chamava a si todos os louros e méritos do progresso, confundindo este com dinheiro, sucesso pessoal e estatuto social. Eram tão infantis, que por todos eles Marta nutria uma sincera afeição. Um genuíno carinho. Uma espécie de enleio maternal. Sentia-se na obrigação de tomar conta de todos eles, de os aliviar do seu fardo imaginário, das suas homéricas e ilusórias responsabilidades, as quais existiam apenas nas suas mentes frenéticas e enfermas. A maleita parecia contagiosa, mas ela lá se mantinha imune.

Amar um dos Eduardos do mundo era, para si, uma bizarria. Nunca imaginara que fosse remotamente possível, já que os olhava com alguma soberba, que logo autorrecriminava, mas que, ainda assim, impedia que os visse como seres completos e finalizados. Eram processos, construções inacabadas, pessoas que não se tinham cumprido ainda. Que não se cumpririam jamais, possivelmente. Havia demasiados Eduardos, razão pela qual, de certa forma, se sentia agradecida por ter acabado nos braços de um. Sempre era um que verdadeiramente poderia ajudar. Queria muito que o seu Eduardo se completasse, que tornasse inteiro, uno e indivisível todo o seu potencial. De nada adianta ter uma vida profissional extraordinária e gratificante, se em nome disso, nada mais se conseguir. Marta tinha uma visão harmoniosa, equitativa, das várias facetas da vida. Entendia que atingir o topo de apenas um dos picos não permitia abarcar paisagem suficiente do universo. Apostava nas várias frentes, com o coração na dianteira. A vida, em seu entender, era demasiado curta para que se centrasse exclusivamente na busca de dinheiro, como se houvesse tempo para gastar fortunas. Não podemos esgotar um único prato, pois podemos nunca chegar à sobremesa, como costumava dizer. Também não se pode recusar todos os pratos anteriores, na ânsia de chegar ao doce. O açúcar é apenas uma falsa energia, que jamais substituirá a proteína ou as fibras.

Neste seu esquema de partes iguais, Marta sabia não ser entendida e que sonhadora e infantil eram os melhores adjetivos que granjeava perto de todos os Eduardos e Eduardas desta vida. Sabia também que só muda quem sente necessidade de o fazer e que qualquer processo de mudança é longo e, por vezes, penoso. Ninguém gosta de perceber que todo um passado ou história terá sido tempo perdido, um marcar de passo, enquanto não se encontra o caminho certo. Sabia ainda que não há caminhos certos se não nos conseguirem fazer felizes. Logo, haverá tantos caminhos válidos quantas possibilidades de felicidade individual. Não queria impor o seu caminho a Eduardo, queria apenas mostrar-lhe todo o sol que brilhava no seu, por oposição às inúmeras tormentas por que Eduardo passava diariamente, vivendo na sombra, junto de pessoas que mal tolerava, resolvendo falsos problemas que em nada contribuíam para o bem maior, nem sequer para o bem individual, e que quando chegava a casa não precisava de se apressar a proteger a mesa com bases para copos, como se a mesa não fosse competente nessa matéria e como se a marca de um copo não fosse uma desejada aliança numa mesa a que chamamos nossa.

By Peter Lindbergh

Não deixava de haver arrogância em ambas as rotas, mas Marta entendia que cumprir diariamente tarefas absurdas não contribuíam para a sua felicidade e que a cama poderia sempre estar desfeita que o mundo não acabaria. O mundo de Eduardo, por seu turno, colapsaria ainda um pouco mais se, ao regressar a casa, esta não estivesse em ordem, pronta para o receber no seu melhor. No meio de tudo isto, a impossibilidade de se cumprir um amor real, genuíno e raríssimo. Quadros mentais em que não encaixavam. Um demasiado amplo para prender, outro demasiado estreito e confinado para permitir oxigénio suficiente para dois.

Onde ele via falta de ambição, existia um gigantesco amor. De tipo e dimensão desconhecidas para si. Aquele calibre de amor raro, que todos desejam e procuram, tantas vezes em vão. Ela entendia a voracidade dele, em manter a passada larga e o ritmo frenético, como ausência de afeto puro e verdadeiro. E nessa cegueira residia a grande diferença entre ambos. Ele queria ir mais longe. Ela queria chegar mais perto. Ele não se importava de ir sozinho. Ela apenas contemplava a caminhada a dois. Ele não percebeu que ela era, afinal, salmão, a única que ousava rumar em sentido contrário ao da corrente. Ela não viu que ele apenas precisava que ela mantivesse o mapa ao contrário, aparentando estar de costas voltadas para a nascente, e que, assim, com as coordenadas viradas do avesso, ele tê-la-ia seguido até à nascente do fim do mundo. Ambos não viram tudo aquilo em que eram primos e que os fazia transbordar de felicidade: o amor recíproco. Ainda que o tivessem visto, seria isso suficiente?

By Robert Doisneau

Partilhar