O juiz olhava-a agora nos olhos. O atraso na sua respostas levou o altivo homem, de voz enfadada e inesperadamente aguda, a olhá-la fixamente. Percebeu que talvez estivesse a sorrir. Estaria? Talvez estivesse e fosse isso que exasperava agora o juiz.

– Jura dizer a verdade?

Percebeu que talvez já lhe estivessem a perguntar isso há demasiado tempo. Não aceitavam a demora na resposta, ou talvez apenas não compreendessem o seu dilema. Culpava o colega de trabalho por toda aquela confusão. Testemunha de quê? Porquê? Porquê ela? Talvez isso fosse fácil de entender. Para si era. Sentia-se, sem grande esforço de subvalorização ou de autoelogio, a pessoa mais cínica do escritório. Provavelmente, hipócrita seria o mais adequado. Nunca nada do que dizia teria de ter total correspondência com aquilo que se poderia aceitar como sendo a verdade, nem aquilo que lhe diziam era aceite, por si, como sendo verdadeiro ou correto. A verdade não era singular. Era plural. Apenas peças de um puzzle em constante mutação, que cada um ia limando de maneira a melhor encaixar noutras verdades e reproduzir a imagem que se supunha ser a correta naquele momento, no tom exato ou aproximado. Nada mais do que isso. Nada menos do que isso. Apenas sobrevivência social. Somente alguma honestidade pessoal, mas apenas por parte dos mais corretos e conscienciosos. Era disso que se tratava. De que serve a verdade? A quem interessa realmente? Porque é tão valorizada? A verdade é apenas aquilo em que cada um acredita e, assim senso, também não ultrapassa, em grande medida, aquilo que cada um julga e deseja que ela seja. É pura lógica matemática. Qualquer equação de segundo grau chegaria ao mesmo X que ela.

Se diria a verdade? Qual delas? A sua? A do colega? A de outros? Qual seria a verdade do juiz? E qual a verdade que o colega a trouxera ali para ser dita? Tinham tido sexo. Uma única vez. Inconsequente. Ambos casados. Ausência de paixão ou expectativas. Apenas a ocasião. A mera oportunidade. Um certo frisson. Nem sabe bem o porquê. A razão. Ficava a faltar-lhes o móbil para o seu crime, para o seu devaneio. Haveria necessidade de um? Do episódio recupera apenas o tom decadente. O desespero. Uma certa sordidez. Nem era prazer. Nem desejo. Apenas o brutal sexo. Nu. Cru. Cinco minutos? Ainda que tivessem sido cinco dias. Acharia ele que por essa lamentável memória ela lhe devia algo? Mais ainda Justiça? Que se sentia compelida ou até obrigada a ser testemunha abonatória, para que ele calasse tudo aquilo que sabia, tudo aquilo que tinham feito? Acharia que ela tinha sido forçada e não a autora do delito sexual que ambos envolveu? Pensaria que eram íntimos? Que partilhavam um segredo que nenhum deles quereria exposto, menos ainda ela, por ser, obviamente, mulher? O seu casamento era tanto mentira quanto o dele. Não publicitara o caso. Não gostava de falar de si ou da sua vida, menos ainda se questionava ou sentia curiosidade pelas misérias dos outros. Não obtinha consolo nelas e a natureza humana era devidamente experienciada na primeira pessoa, não necessitava de vicariato. Mas também não escondera o adultério. Jamais. Apenas ninguém queria saber e o marido não perguntava. Logo, porque dizê-lo? Porque dizê-lo quando, na verdade, já o esquecera quase por completo? Só o recordava agora, devido às circunstâncias. Quereria ele que ela explicasse perante o juiz que ele era boa pessoa? Um homem íntegro e honesto, incapaz de assediar uma colega de trabalho? Mas em que mundo é que ele vivia? Era assim tão mais avaliador do caráter dos outros? O predador mais idiota, pensou, é aquele que nunca se imagina no lugar de presa. Coitado. Seria isso? Demasiadas perguntas.

Recuperou o alento. Pois bem, perguntavam-lhe se jurava dizer a verdade. Logo a ela, exímia nas falsas verdades, com que enchia o seu manual de procedimentos. Nunca lhe ensinaram outra coisa que não inventar verdades e acreditar nelas. Nesse sentido, mentiria ainda assim? Disseram-lhe que uma amizade forte acaba em amor. Ensinaram-lhe depois que um amor falso pode ser feliz. Que uma traição só o é se descoberta. Que um roubo apenas é crime quando chega a tribunal. Que um criminoso só alcança esse rótulo depois de condenado. Que tudo necessita de provas, caso contrário, somos inocentes até perante nós. Explicaram-lhe ainda que os filhos tudo curam, que o amor que se sente por eles é absoluto e incondicional, feito de uma qualquer massa divina… Parou. Essa teria sido a maior mentira que lhe disseram. Era também aquela que jamais desmentiria. Até para se manter à tona. Até para se sentir gente, nem sequer gente aceite. Apenas gente. Humana. Como admitir que jamais gostara dos filhos acima de qualquer outra pessoa? Acima dos pais e dos irmãos. Acima de si. Nunca alcançou tal feito. Desejou-os bastante mais do que aquilo que os amava. Foi maior a curiosidade do que o afeto. Claro que gostava deles, mas não sempre. Nunca todos os dias. Eram pesados grilhões atados com grossas correntes de ferro oxidado à sua garganta. Ao seu coração. Não apenas retardavam os seus passos, cada vez mais cansados. Asfixiavam-na a cada movimento, a cada pedido, a cada grito e a cada aflição. Recriminara-se por não gostar deles. Por não gostar deles como uma mãe deve gostar. Como é que uma mãe deve gostar dos filhos, alguém lhe explica? Como forçar o amor no peito de alguém? Logo que pariu o primeiro, percebeu que tudo estava errado. Muito errado. A criança era feia, trabalhosa e ela nada entendia do que se lhe exigia. E exigiam muito. Demasiado.

Só queria voltar atrás. Regressar à sua vida anterior. Má, mas autónoma. Livre. Os livros e os médicos falaram-lhe de baby blues. Uma depressão pós-parto. Isso foi verdade. Acompanha-a até hoje e o pós-parto é eterno até que uma mulher morra, logo, isso é verdade. E essa seria a sua maior mentira. Fingir. Fingir. Fingir que amava as crianças – apenas duas e nenhuma delas verdadeiramente planeada, ainda que a primeira fosse desejada. Fingir que amava o marido e a sua preguiça e os seus afazeres. Fingir que amava a família dele e as férias de pulseira no pulso com tudo pago. Fingir que gostava do emprego e dos colegas e das viagens rotineiras até lá e das compras de supermercado e de cozinhar e limpar a casa e do cinema nos sábados à noite… Claro que a culpa era sua. Todos podemos alterar as circunstâncias. Deixar tudo para trás e correr numa outra direção. Para o outro lado do mundo e do coração. Virar tido do avesso e buscar coisas que abram sorrisos, em nós e nos outros. Amava de verdade a sua cadela. Não podia deixar esse elo afetivo de parte. Tudo o resto foram apenas circunstâncias, coisas que foram acontecendo nem sabe muito bem por que ordem ou por vontade de quem. Sim, podia ter mudado tudo. Pôr um basta na sua vida. Criar as suas próprias alternativas. Derrubar obstáculos. Abandonar cenários. Mas nada disso é tão fácil quanto fingir. Fazer de conta que está tudo bem. Que a vidinha é boa e as crianças vão bem, e que o marido é amigo, e que todos são felizes e têm sucesso e vivem do que, e que as preocupações desaparecem com a conchinha que se faz à noite debaixo dos lençóis.

Agora, ousavam pedir-lhe a verdade. Não apenas isso, mas que jurasse. Jurasse em nome da verdade. Qual delas? Por conta de um colega empertigado, misógino e indecente pediam-lhe agora, com tom autoritário, que deixasse de ser quem toda a vida lhe ensinaram a ser e jurasse verdades. Coitados! Não sabiam que já não tinha verdades para jurar? Que tudo era já mentira? Mas que queriam eles agora? Tudo por culpa daquele traste que julga ter todas as mulheres sob controlo. Po-bre-zi-nho. Por ele, diria a verdade, não se preocupassem. Menos ainda ele. Não só ouviriam a verdade como ficariam a saber o tamanho liliputiano do seu pénis. Um tudo em um que iria animar aquele sisudo tribunal. Procurou a mulher do traste na plateia. Por exclusão de partes percebeu quem era. Coitada. Outra mentirosa como ela própria. Também ela habituada a mentir e a ludibriar os outros. Números de ilusionismos para um público fácil e desejosos de ser enganado com brilhos e artimanhas. Bastava mantê-los ocupados a olhar para a mão errada, para o sítio luminoso onde nada se passa. Suspensos no engano o tempo suficiente até a ilusão estar completa e a levarem para casa com magia pura. Apenas queriam ver coelhinhos brancos a sair de cartolas. Nada mais. Ficariam satisfeitos com uma ou outra pomba a sair da manga. Nada mais. Não lhes levemos a mal.

Sempre se sentira única no mundo. Sozinha contra o mundo. Solitária em contramão, enfrentando o trânsito em hora de ponta, com a sua pesada pasta top secret aferroada no peito, para que ninguém desconfiasse. Ela era a mulher que sabia não amar os próprios filhos. Isso também dói, e muito. Dói tudo. Leva-nos a alquimias que conseguem enganar-nos e levar-nos quase, quase a acreditar que se mudou a face da verdade. Mas também a mulher do réu deve estar a par destes números diários, mas não tantos nem tão intensos quanto os seus. Ainda assim, reconhecerá os bastidores desta arte. Talvez lamentasse um pouco pela mulher do estafermo, mas, mais uma vez, não o suficiente para se incomodar. Quem não se importa consigo mesmo tem pouco consideração por terceiros. Além de que, uma mulher capaz de gostar daquele imbecil, merece um bom número de magia. Pois ele estava prestes a acontecer. Iria dar início ao circo que tanto desejavam, mas com um número de primeira, pouco habitual naquelas paragens de província.

Meninos e meninas, senhoras e senhores (rufam os tambores), preparem-se para o grandioso número da verdade absoluta (apagam-se as luzes), tal e qual a grandiosa ilusionista a entende, e por vezes entende-a como sendo a mentira pura (ilumina-se o palco). Excelentíssimo juiz e jurados (para a música), eis a extraordinária, a inigualável, a inimitável, a indomável, a incrível e absolutamente fantástica artista. No arame. Sem rede. A única no mundo a dominar a proeza das verdades que são mentira e das mentiras que são verdade! Bem-vindos ao maior espetáculo do mundo: a vida.

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