Priscila Soraia Vanessa – de agora em diante apenas PSV, acima de tudo por uma questão de economia de espaço virtual e mental – fervilhava de emoção. Havia brilho nos seus olhos cinzentos. Tanto brilho e excitação que se pintavam de um impossível azul, como as águas de todos aqueles locais maravilhosos e exóticos, onde a Natureza se exibe em vaidades descomunais, servindo-se de cores, cheiros e sons que desconhecemos e que julgávamos improváveis. Agora, duas lagoas de bilhete postal chegado do outro lado do mundo e da imaginação, os seus olhos iluminados anunciavam uma descoberta interior, um trilho pessoal, um momento Eureka. Pela sua carapaça de tartaruga irrompiam duas pequenas asas.

Sabia agora aquilo que queria fazer da vida, a profissão e a carreira, o rumo e o lugar para onde rumar e como lá chegar. Na televisão, aquele homem que corria, enquanto descrevia o cenário de guerra, o número de feridos, as baixas mortais, a estratégia de ataque, a surpresa desarmada dos atacados, e ainda falava com quem atirava e com quem morria, e ainda fotografava e filmava tudo aquilo, para ilustração e memória futuras, e ainda relatava tudo com genica e a voz moldada pela adrenalina, aquele homem na televisão era exatamente aquilo que ela queria ser: repórter de guerra. Um tudo em um: jornalista, fotojornalista, operadora de câmara e heroína da atualidade. Como seria emocionante e gratificante, pessoal e profissionalmente, ser tudo aquilo e ainda ser admirada pelo mundo que acompanhava as suas movimentações e relatos. Quão gratificante seria poder ser de tal forma útil, dando conta de injustiças, reportando o que acontecia no mundo em tempo real, correndo riscos em nome de algo maior e mais significativo do que a mera existência e um inócuo e estéril trabalhinho na função pública, cheio de privilégios e sindicalismos. Ainda sem cerrar cortinas sobre os dois lagos azuis, cada vez mais húmidos, com que olhava o mundo por aqueles instantes e embarcou na aventura. Os pais, umas vezes babados, outras nem tanto, apoiaram com entusiasmo, feitos patos bravos, excitados, entre outras coisas, com a real possibilidade da filha, finalmente, deixar o lar paterno, ganhar asas e mundo e partir por aí. Felizes, antes de mais, pela possibilidade da partida.

De malas feitas, lamentavelmente ainda com bastante mais do que o meramente essencial – mas estava a iniciar-se na vida de repórter de guerra, teremos, por isso, de ser tolerantes com Priscila Soraia Vanessa, ou apenas PSV, como já havíamos decidido –, passaporte renovado, cabelo cortado à escovinha, como o agora colega de profissão que tanto a inspirou, para aligeirar higienes básicas em territórios inóspitos, e uma vontade inabalável, lá partia.

Ao entrar no avião, com a cor dos olhos a regressar já ao tom cinza das nuvens daquele dia de outono, sentiu-se maravilhada com os conhecimentos técnicos de todos aqueles que colocam tal aparelho no ar, com particular comoção por pilotos e engenheiros aeronáuticos. Aquilo, sim, era conhecimento técnico e especialização, rigor de cálculo e exatidão de procedimentos. Uma vida invejável e invejada, sem tantos riscos e até com um certo e inegável glamour, não obstante o low cost, as aeronaves a assemelharem-se cada vez mais com carruagens de metro malcuidadas e as fardas muitos furos abaixo do uniforme do senhor dos gelados da sua infância. Outros tempos, outros voos, o que não podia ser diminuído ou objeto de qualquer demérito, era o inegável conhecimento e capacidade de todos aqueles que sabem pilotar. Elevar nos céus um prédio de metal, orientá-lo pelos perigos da intempérie, assegurar as vidas dos passageiros, acautelar descuidos a cada segundo, verificando extensas e complexas checklists, das quais as vidas de todos dependiam. Não era apenas tudo isso, era ainda permitir que um pai abraçasse um filho, possibilitar o reencontro de dois amantes separados por continentes, levar medicação urgente para lá dos mares. Pilotar era conectar, tornar mais próximo, ligar, unir. Era juntar pessoas e coisas. Voar é facilitar e também amar. Um gesto benemérito e abnegado. Era prescindir de estar com a família longos dias, para poder conectar outras famílias e gentes de outras paragens. Que bom seria, ainda, visitar tantos países, conhecer tantas pessoas, andar por aí, a vaguear pelo mundo e pelo céu. Tão pertinho de Deus. Os seus olhos, humedecidos por este voo poético-filosófico, eram agora verdes e esperançosos. Estavam ávidos e seguros de que o caminho era, afinal, outro. Aprenderia a voar e seria ela a transportar o intrépido repórter ao seu destino de aflição e a recolhê-lo, depois, para o entregar são e salvo nos braços de quem o aguardava com um ramo de amor e saudade. Tiraria a formação necessária, treinaria em terra e no céu, simulando já uma vida de aventuras e pés no ar. Os pais, inchariam de orgulho, como bem imaginava. Tiraria o brevet e em breve, logo que o avião aterrasse. Curiosamente, isso aconteceu bastante antes do previsto, devido a uma urgência médica. A prontidão do piloto, capaz de dar resposta expedita e atempada a uma grave ocorrência foi exemplar, mas em muito suplantada por uma mulher que seguia a bordo.

By Josef Hoflener

– Sou cardiologista. Deixem passar, por favor.

A mulher dizia-o e repetia-o e disse-o e repetiu-o até conseguir chegar perto da vítima, socorrendo-a servindo-se apenas de muito saber, experiência clínica e vontade de salvar. Tinha entrado em modo de missão e não descansou enquanto o coração que calcava com as suas mãos não retomou o passo, enquanto a boca para onde soprava não voltou a absorver tanto oxigénio quanto conseguia. Tudo aquilo que PSV via era matéria divina. Aquilo eram passeios de Deus pela Terra. Dando sopros de vida aos moribundos, ressuscitando os mortos, dando alento a um avião apinhado de gente boquiaberta, distribuindo fôlego e inspiração. Ela queria muito ser aquilo. Todo aquilo. Começaria pela medicina, afinal, que se apresentava como um voo bem mais humanista e esmagador do que a pilotagem de aeronaves, e logo se via se chegaria a Deus. Além disso, nada ou ninguém impediam um médico de também saber pilotar e, caso conseguisse reunir os dois diplomas, não estaria a chegar mais perto dos Céus? O que pensariam os passageiros, se tivesse sido o próprio comandante a largar momentaneamente os comandos do aparelho, entregando-os sabiamente ao piloto automático, e a salvar o passageiro em agruras vitais? Com que olhos veriam aquele ser celestial, que, entretanto, já seguiria de novo para a sua cabine, a fim de a todos levar a bom (aero)porto? Era coisa para estátua. Uma medalha do presidente. Nome de rua ou mesmo de avenida, que aeroportos temos poucos. Aquilo era heroico em qualquer língua ou dialeto, em qualquer superpotência ou terreola. Os pais abençoaram tão nobre vocação. Como poderiam não fazê-lo? Medicina era um conhecimento seguro, sinónimo de emprego garantido, de estatuto social, de inveja da vizinhança e de bom dinheiro mensal, com o qual a sua menina poderia comprar casa e sair de baixo da sua asa. Deus e eles próprios se encarregariam que assim fosse.

Enquanto procurava na internet boas faculdades de medicina, algumas mesmo em Espanha, por sugestão dos pais, que por ela não sairia de Lisboa, PSV foi bombardeada com insistência por uma escola de atores, que sugeriam uma vida de sonho no mundo da representação. Logo, logo, todos aqueles pop-ups apenas a irritaram, ansiosa que estava por encontrar a sua universidade onde cursar matérias que salvavam vidas. Mas logo se dedicou a perceber aquilo que os anúncios lhe diziam. Eles diziam muito e diziam-no bem, tão bem que entrou no site da escola. Foi a revelação de uma vida. Porquê ser apenas uma coisa quando poderia ser todas elas e ainda ser reconhecida por isso, com Óscares, Globos que são de ouro e outras tantas e prestigiantes distinções? Um ator tanto pode ser médico numa telenovela, como piloto numa peça de teatro, como repórter num outro dia. Na verdade, um ator nunca sabe em que papel vai acordar e isso é de uma riqueza absoluta. Estudar cada papel, a fim de melhor o interpretar, é capacitar-se de conhecimentos de qualquer área do saber, de todas as áreas. Um ator é tudo e todos, à vez ou em simultâneo. Porquê dedicar-se e concentrar-se numa única especialização, quando a vida da representação lhe permitia ser todas as pessoas do mundo? Era de tal forma lírico e inspirador, entusiasmante e apelativo… Além disso, era o criativo e transformador mundo das artes. Só a arte muda de verdade o mundo e as mentalidades. Só a beleza nos eleva e comove, nos impele à mudança e nos transforma, nos melhora, nos projeta para o futuro e nos lança à aventura. Só a arte nos coloca questões para as quais ainda não temos resposta. Só ela nos faz pensar e repensar, a vida e todos os porquês e correr atrás de soluções. Nem a ciência é tão eficaz na mudança de mentalidades. Uma pessoa com o seu entendimento do mundo e abertura de espírito… Como é que só agora percebia que ela era matéria artística? Ela seria o vaso recetor de vidas alheias, de sentimentos, experiências e pensamentos de outros. De tantos outros que se tornaria sábia e entendida em tantas matérias quantos os papéis. Imaginava-se no palco, à boca de cena, ou no set de um filme, que levaria Cannes às lágrimas e Berlim ao delírio. Deixaria Veneza e Sundance para depois. Os jornalistas disparariam perguntas e os fotógrafos flashes, e os fãs mimá-la-iam para logo a cansarem com as suas exigências e indiscrições. Aos pais pediria que jamais falassem da sua vida, porque todos sabemos como funciona o sensacionalismo. Os seus olhos estavam castanhos de tanto delirar com o seu futuro sucesso mundial. Ia inscrever-se naquela janela de aventura, naquele mundo de espetáculos e sortilégios. Tudo nele lhe inspirava magia e encantamento. Candidatava-se já quando…

By Rone – Graffiter

Moral da história:

Sonhar faz bem a tudo, mas, pelo meio, não se esqueça de viver a sua vida, na sua pele, com as suas condições. Morrer numa ilusão, não deixa de ser morte. Já agora, a felicidade implica paixão, esforço e dedicação. Sem correr a pista e bater as asas, não há quem levante voo. Sem mergulhar na água fria e agitar as barbatanas, não se aprende a nadar.

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