A Lebre e a Perdiz conheciam-se desde os tempos de escola, e mais intimamente desde o secundário. Uma amizade cuja engrenagem se ressentia, de quando em vez, por alguns grãos de areia, aqui e ali. Coisa pouca, mas percetível. Ou coisa muita, mas ignorada. Pecava essencialmente pela inveja, a qual conduzia a uma pequena dose de hipocrisia com a qual se escondia a primeira, ou assim imaginavam as envolvidas. Razão pela qual não era perfeita. Gostavam uma da outra, partilhavam alguns gostos, mas nunca chegaram ao ponto de achar piada a emprestarem roupa uma à outra, ou a contarem tudo tim-tim por tim-tim como é aceitável e até expectável noutras amizades, mais ainda nessa fase da adolescência. Mas ambas eram reservadas e tinham lá os seus feitios. Um pouco mais feiinha do que Perdiz, com um pouco menos de graça, mais anafada e malfeita, também mais burra e boçal e ainda cobarde, Lebre tinha o pior dos defeitos aos olhos de Perdiz. Copiava o guarda-roupa desta descaradamente, sem que alguma vez tivesse elogiado à amiga as peças que replicava para si, ou sequer comentado que iria comprar igual por achar tão giro. Por vezes, quando se encontravam na escola ou fora dela, Perdiz perdia a cabeça ao vê-la vestida de igual. Sapatos, mala, óculos de sol, blusa, calções… Incrédula e furiosa, Perdiz atirava:

– Tens uns sapatos iguais aos meus, e um chapéu igual também e essas calças também são iguais às que trago.

A outra, sonsa, ou apenas tola, ou acéfala, achando que podia enganar a outra ou, pior, acreditando já que tinha sido a primeira a comprar aquele look – acima de tudo temos de parecer genuínos perante nós próprios –, respondia com ensaios de enfado:

– A sério? Como é que isso foi acontecer?

Ou:

– Bolas, milhares de pessoas devem ter igual, que o bom gosto não é exclusivo de quem quer que seja!

Reconhecendo, talvez, a sua falta de gosto, ou de apetência para a moda, ou apenas por pura inveja, que a impedia de seguir os seus próprios gostos e as suas mais convictas preferências, ou apenas por preguiça, com a qual também era acometida, jogava pelo seguro e limitava-se a copiar a outra. Para si, tinha como justificação o facto de a outra encontrar primeiro exatamente aquilo que ela própria procurava, logo, não era cópia, era um honrado segundo lugar.

Réplicas e cópias que pioravam ainda mais o humor da outra, ciente de que Lebre era apenas um projeto de espelho seu, no qual não se queria ver. Aquilo incomodava-a e roía-a por dentro, minando todo o terreno pelo qual se espraiava aquela amizade. Uma área que ia mirrando com o tempo, como é fácil de prever. Tudo piorava quando havia pretendentes. Uma balança igualmente desequilibrada, que pendia mais para o lado de Perdiz do que de Lebre. Os rapazes, apesar de menos observadores, sabem reconhecer o brilho genuíno, e esse era mais óbvio em Perdiz. Porque Perdiz voava, tinha leveza e graça e graciosidade, e era original e mais descontraída e a sua plumagem mudava um pouco de cor consoante o sol e a lua. Quando se é genuíno, é-se descontraído, pois não se pensa na pose, nem no que se deve dizer ou fazer, apenas de diz e faz, de acordo com aquilo que se pensa, no momento. E é tudo. Claro que, para isso é preciso pensar, e Lebre era mais preguiçosa. Uma verdade que tinha uma soberba exceção. Lebre era uma exímia atleta. Corria célere como nenhum outro ser vivo. No desporto, inquestionavelmente, era imbatível e superava em muito o desajeitado compromisso que Perdiz tinha com qualquer prática desportiva, modalidade ou atividade física. Ainda que isso não a tornasse nem mais magra, nem mais leve ou fresca do que a outra, é certo que, logo que descobriu essa sua superioridade em relação à amiga Perdiz, dela tirou o máximo partido. Autoelogiava-se a propósito e a despropósito, fazia demonstrações gratuitas dessa sua destreza física e sobressaía sempre que podia. Perdiz exasperava, pois também ela poderia exibir a sua superioridade intelectual, ou a sua originalidade e não o fazia, por entender que não é delicado, menos ainda com alguém por quem se nutre carinho e amizade, ou algo equiparado. Mesmo junto de outros, jamais humilharia propositadamente alguém, pessoa ou animal. Por isso, engolia com dificuldade as tiradas da outra sobre a sua velocidade, a sua destreza física e o garantido trono em qualquer prova física, fosse qual fosse o grau de dificuldade. Era exasperante.

 

Mesmo quando tudo estava bem, havia sempre entre as duas… qualquer coisa. Não sabiam bem se havia uma palavra mais adequada, mas mal-estar ou desconforto serviam o propósito. Se uma tirava uma nota mais alta, se a outra se maquilhava, se uma ia de férias para o estrangeiro e a outra ficava, se uma recebia mais presentes no Natal ou pelo aniversário. A verdade é que persistia sempre uma pequena competitividade, havendo pouco espaço para se orgulharem dos feitos da outra, ou para se incentivarem a suplantar-se naquilo em que cada uma era verdadeiramente única, como é da praxe numa amizade saudável. No cerne desta amizade – por esta altura já entendida enquanto falsa amizade ou mesmo falta de amizade – erguia-se uma razão de peso, perante a qual todas as outras poderiam facilmente tombar, ajudando a melhorar a relação ou, em definitivo, mostrando que não havia lugar para amizades entre aquelas duas personalidades. Essa razão era a falta de frontalidade. Uma escondia-se dissimuladamente na imitação da outra, que obviamente invejava, a outra, não enfrentava a situação, calando ódios em vez de falar abertamente sobre tudo aquilo que a incomodava.

Quem sabe, uma maior frontalidade não teria permitido um positivo avanço na relação, permitindo uma amizade duradoura, que ainda hoje poderia subsistir? Quem sabe, maior abertura de espírito e maior interajuda, não teriam possibilitado a Perdiz ajudar Lebre a encontrar a sua própria imagem com assinatura? Por vezes, uma simples ida às compras… Dizem-nos que não, que Lebre, definitivamente copiaria a outra sempre, em qualquer circunstância. Que era um caso perdido e que o orgulho de Perdiz jamais lhe permitiria perdoar Lebre pela ousadia e pela mentira, por se fazer desentendida e não admitir que tinha comprado igual propositadamente para se vestir de igual a Perdiz. As pessoas são complexas e este nem é um dos melhores exemplos, senão, provavelmente, o mais fútil das relações humanas. O tema não se resume, obviamente, ao gosto que ambas poderiam dedicar ao guarda-roupa, mas antes à falsidade com que cimentavam este relacionamento. De fora, seria talvez mais claro que nada tinham em comum. Um dado que em nada impediria uma boa amizade, mas que, à falta de sentimentos genuínos, de real afeto, não sedimentava solidez suficiente para melhores desenvolvimentos futuros. Ia apenas servindo tanto uma como outra, interesseiras cada uma à sua maneira, até que algo de novo, ou de melhor, surgisse.

 

A meio do segundo período, é anunciado na escola um mega torneio de atletismo, que reuniria todas as escolas do distrito, públicas e privadas. Lebre exultou. Saiu de órbita. Deu três voltas à escola num sprint alucinante, apenas para libertar parte da enorme energia que sentia em cada músculo do seu corpo. Sentia antecipadamente o sabor da vitória, o peso da medalha presa na fita que lhe penderia do pescoço em breve. Primeiro lugar. Sem imitações, sem grande esforço, sem copianços, sem corridas… Riu-se. Com corridas era o mais certo de se dizer. Se o verbo era correr, ela conjugava-o como ninguém, em qualquer tempo ou pessoa, com ou sem condicionais. Apenas imperativo. Apenas pretéritos mais que perfeitos. Venceria. Ganharia. Brilharia. Não sabia bem que equipamento eleger, é certo, mas fora isso, correria mais célere do que todos os outros. Quaisquer outros. Todos os outros sem exceção. Perdiz, entre a inveja e o despeito, colocava pesos nos músculos da ‘amiga’, panos frios na sua exaltada febre de sucesso.

– Olha que alguns alunos são federados. Não será o mesmo do que correr com os nerds da tua turma. Não te esqueças que estamos em humanidades, maioritariamente turmas femininas, classicamente menos vocacionadas para o desporto. Malta dos joggings e não da competição. No torneio vais encontrar os melhores de entre os melhores. Atletas ambiciosos, eventuais profissionais dentro em breve.

Lebre estava surda de ambos os ouvidos e não era por falta de audição. Tinha chegado a sua vez. Aquela vez em que Perdiz não teria a menor hipótese, até porque encaixava na preconceituosa descrição que acabara de fazer. Menosprezara as capacidades e ambições femininas e as competências físicas de alunos apenas por serem de determinada área. Pois ela venceria qualquer área a qualquer hora do dia. Não havia perdigueiro puro sangue ou rafeiro duro de roer que ela não superasse. Não era à toa que se chamava Lebre, precisamente. A outra podia ter asas e criatividade, mas ela tinha pernas e determinação. Seria ela a voar mais alto. Voaria bem acima da troposfera estratosfera, rompendo estratosfera, mesosfera, termosfera e exosfera como um cometa desnorteado, a quem ninguém, jamais conseguiria colocar travões. Entraria na órbita dos campeões e mesmo estes ultrapassaria, com a sua acelerada rotação. Só voltaria à terra para pisar o pódio, erguer a taça e levar a medalha. Tinha encontrado o seu propósito na vida. Apenas não sabia que roupa levar. Deixou de se preocupar com isso. Um campeão impõe modas, não as segue. Isso. Escolheria sozinha a sua fatiota de campeã. Aquela que o mundo escolar passaria a usar, vendo-a como uma sports influencer.

Perdiz ria-se dela abertamente, disfarçando o seu gozo com cuidados de amiga, camuflando o seu regozijo interior com preocupações que só pretendiam evitar frustrações futuras á sua grande amiga.

– Deves preparar-te para o pior. Tu não embandeires em arco. Acautela-te.

Tudo em vão. Lebre, que já tinha ensurdecido perante conselhos, também tinha a visão em obras. Estava focada na vitória.

No dia da prova, sem que tivesse dedicado tempo a treino adequado às circunstâncias, e usando, por fim, um equipamento igual ao que Perdiz usava nas suas aulas de ballet – sem tutu, mas apenas porque não encontrou um no tom exato do de Perdiz, o que foi bom –, Lebre despertou desde logo a atenção de todos. Entre risos e piadas, que não ouvia, Lebre posicionou-se na linha de partida. Deu-se início à prova. Lebre dispara. Sentia-se uma bala, com visão em túnel e um enorme smiley a ocupar toda a sua mente, que não era assim tão espaçosa, pelo que era um pequeno, mas persistente smiley. Lebre termina a prova. Continua aturdida, devido ao esforço físico e mental que agora fazia para perceber porque não gritavam o seu nome, porque não havia medalha no seu pescoço, porque não lhe abriam passagem para o pódio. Tinha ficado em primeiro, disse-lhe Perdiz, mas a contar do fim.

Os esforços de falso reconforto de Perdiz apenas a irritavam ainda mais. Tremia por dentro. Tremia por fora. Queria chorar. Ergueu o rosto para o céu, para evitar que a gravidade acabasse por dar às lágrimas que espreitavam dos seus olhos, o destino que lhe era devido. Fixa os olhos num placard luminoso. Um ecrã LED que ocupa quase todo o topo norte do estádio municipal. Uma blogger/vlogger da moda anuncia os nomes dos vencedores. As imagens no ecrã acompanham a sua descida sobre o estádio, a bordo de um colorido balão de ar quente. Em simultâneo, e para manter ao rubro a sua conta e os seus milhões de seguidores, a miúda vai relatando tudo e mais um par de botas, calçado, de resto, de que é fã. Quando pisa o solo e desce do cesto, Perdiz enrubesce de forma febril, sente cãibras pelo corpo todo. Sente-se perto do desfalecimento. Perdiz tem o mesmo look que a famosa. Veste exatamente a mesma indumentária que a miúda, a qual já tinha anunciado na sua conta na véspera, para evitar o desconforto de imitações e garantir originalidades, apenas não tinha dito onde iria estar, sendo essa a grande surpresa que guardara para os seus fãs. As lágrimas de Lebre desistiram de nascer. Olha para Perdiz e diz:

– Parece que também chegaste em último.

Moral da história:

Um dia, todos somos apanhados.

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