Encontrou o melhor e o pior do mundo logo no primeiro ano de escola. Uma galáxia de coisas para aprender e a vontade, o desejo e a determinação obsessiva de tudo querer absorver e dominar. Tudo saber. Não tudo, claro. Não tudo. Também isso aprendeu. Podia apenas aprender uma ínfima parte. Teria de ser seletiva e escolher bem. Isso teria ainda de aprender. A escolher. Enquanto não o fazia, o espanto. A maravilha. Tudo à sua frente. Uma estrada aberta de infinitas vias. Terem-lhe apresentado o mundo foi o melhor presente da sua vida. A posterior tomada de consciência de que jamais abarcaria todo o conhecimento do mundo, já que o universo está em expansão e tudo com ele, não esmoreceu a sua ânsia de conhecimento. A sua enorme aflição por aprender. Sentava-se à frente. Porque era a mais pequena da turma e porque queria ser a primeira a ouvir as histórias que o universo tinha para contar. Uma árvore genealógica que incluía o casamento da física com a química, da matemática com a lógica e dos seus inúmeros números primos, direitos e afastados, parentes das equações nos seus variadíssimos graus que também se diziam centígrados. Da engenharia com a arquitetura, que reunia o melhor do saber fazer com o saber sonhar. A biologia e a psicologia dos seres, as artes e as línguas, vivas e mortas, e as suas palavras com as suas várias famílias, que tudo diziam, tudo explicavam e até tudo inventavam, nas suas diferentes sonoridades, sobre as galáxias do céu e as profundezas dos oceanos. A história de tudo isso e até a história do conhecimento, onde havia lugar para alquimias e magia, astrologia e astronomia, culinária e jardinagem.

A par de tudo isso conheceu o Francisco, inicialmente apenas o filho da professora, mais tarde, o filho do Diabo. Não tardou a que a professora entendesse que o melhor lugar para o Francisco era a seu lado, nas carteiras da frente. Talvez ao lado de uma aluna quieta, sossegada, calada e desejosa de tudo aprender, o demo saísse de dentro do pequeno estafermo em quem ninguém tinha mão, nem mesmo a mãe, quanto mais a professora. O ambiente tornou-se pidesco, sufocante, irrespirável. Com a falta de ar vieram as dores de estômago e de barriga, os pesadelos e o medo. Traziam por companhia a cegueira seletiva da professora, que tudo fazia para não ver nem perceber. Era preferível fazer de conta que o rufia do filho não puxava as tranças da colega de carteira, que de tão calada chorava para dentro, do que ver e ter de o castigar diariamente. Claro que não eram inéditas, ainda que manifestamente insuficientes, as vezes que as punições físicas, incluindo disciplinares reguadas em frente de toda a turma, eram exemplarmente infligidas ao diabrete. Nesses dias, sabíamos que era a mãe e não a professora quem punia. A professora fá-lo-ia de forma mais regular e até talvez mais branda. Apenas uma mãe, ainda que uma mãe obviamente fria e insensível, se esforçaria tanto para fingir não ver tanta coisa. Apenas uma mulher má e sádica, como ela era – isso intuiu-o então, mas apenas anos mais tarde o saberia expressar como agora o fazemos – permitiria, sem intervir, o exercício diário de um cruel bullying por parte de um dos alunos sobre um dos elementos mais fracos da turma. Uma rapariga que a única coisa que queria era aprender e cujas tranças acabariam cortadas, para não mais puderem ser puxadas até que caísse ao chão. Só uma mulher cruel teria a fibra e o desplante necessários para ainda exercer outro tipo de tortura sobre a pobre pequena e boa aluna, criticando-a e repreendendo-a por ser tão ‘sensível’.

– Porque não te acalmas? Tens de aprender a viver.

Conheceu o melhor e o pior do amor aos 15 anos. De tudo o que tinha aprendido na escola, de tudo aquilo que se dispunha a imaginar – e fazia-o com mais frequência do que o desejado –, nada poderia explicar o borbulhar esfusiante de um sentimento correspondido, a enxurrada de coisas sem explicação que ocorrem no pequeno espaço de um peito feliz, na lotada caixa de um coração que asfixia em coisas boas para as quais não há palavras nem gestos, nem imagens ou sons. O seu amor já tinha uma eternidade, seguramente quatro anos, o que, aos 15 anos é quase um quarto de vida, ou seja, é muito tempo. Um amor antigo, portanto, puro, logo, só poderia ser eterno e maravilhoso, como sempre fora até aí. Dizem que um mal nunca vem só, mas a sua experiência de vida contava-lhe tudo ao contrário. Um amor nunca vem só. O seu veio de todas as formas que conhecia. Um namorado e um coração extra que já batia na sua barriga. Enquanto na escola aprendia coisas de espantar, na arrecadação do pavilhão desportivo aprendia as inúmeras coisas que podem juntar e unir duas pessoas, dois corpos, duas almas apaixonadas. Ele dizia-lhe coisas que ela não supunha serem ditas. Mesmo quando o que era dito a embaraçava – pouco habituada a elogios e inexperiente no enlevo da paixão, que tudo exacerba e agigante –, ela rejubilava de felicidade, somando tijolos e argamassa na periclitante construção da sua autoestima, que nesta idade se faz de avanços e recuos. Ele encantava-se com tão pouco que a comovia e encantava. O cheiro do seu cabelo, as covas que surgiam nos cantos da sua boca quando sorria, a cor dos seus lábios, o tremor do seu queixo quando ria, a linha das suas coxas e outras tantas coisas que se envergonhava de repetir, nem para si mesma, nem quando sozinha e em silêncio. Ele falava-lhe de coisas nas quais nem ela reparava, em quem ninguém jamais teria reparado, não fora aquele sentimento que os unia, aquela avalancha que os expulsava da vida comum.

Chegou o dia em que disto falou. Não de tudo, claro está. Apenas o essencial. Um rapaz. Um bebé. Um dia que pintou de cores absurdamente escuras aquilo que ela tinha desenhado com brilhos e sorrisos de vibrante luz, claridade e algo mais que não se explica, mesmo querendo. Talvez fosse purpurina, não sabe bem. Num outro dia, roubaram-lhe o filho, cuja vida mal tinha chegado a sentir. Num outro, aquele amor que era eterno, aquele rapaz que seria sempre seu saiu da sua vida, enquanto na escola se explicavam fenómenos como o eclipse lunar. Entendeu perfeitamente a que se referiam. Num segundo brilha, no seguinte apaga-se. Extingue-se para sempre. Sim, os eclipses pessoais são sempre mais dramáticos e enigmáticos do que qualquer fenómeno da física. A fusão do átomo não voltaria a trazer energia ao seu peito. Não mais se produziria energia suficiente para trazer de volta a luz plena que um dia presenciou. Chorava para fora quando lhe disseram.

– Porque não te acalmas? Tens de aprender a viver.

Conheceu o pior e o melhor dos seres humanos enquanto aprendia coisas novas que muitos receavam, mas que ela abraçava com a curiosidade dos desesperados. Coisas que funcionavam como ondas magnéticas que a puxavam sem piedade. Sonhou mundos novos em verdes prados de erva e haxixe, escalou as íngremes montanhas brancas da cocaína, no topo das quais ergueu ilusórias bandeiras de bem-estar e sucesso pessoal. Mergulhou, depois, sem hesitações ou receios, no negrume de profundos lagos caldosos, na ebulição vulcânica e brutal de um espaço e um tempo inventados em delírio, e de onde sabia que não emergiria heroína, porque de lá quase ninguém sai com algo a que se possa chamar vida. Mas ela já não desejava heróis, nem bravura, nem vida. Aventurava-se temerária, sem rumo ou propósito. Objetivo primeiro e único: partir. Partir sempre. Partir, a horas ou com atraso. Partir, mesmo sem sair do lugar, mesmo sem tempo ou bilhete. Não seria mais indicado falar de fuga do que de partida? Nesta fase, ela já não dava tanto valor às palavras, nem se emocionava com métricas poéticas ou veias artísticas, exceto aquelas onde ainda podia espetar mais uma dose de falso ânimo, para mais uma volta no carrossel, para mais um apagão na sua memória. Nesta corrida para a falsa demência, era mais fácil de suportar a dor, o vazio, a ausência, os homens que a forçavam e aqueles outros que a recusavam, a mão enfiada nos contentores, o lixo enfiado na boca, o sono enfiado no chão. Era mais fácil. Uma vez transparente, os outros não importam, nem nós importamos aos outros. Vivemos sem espessura, sem carne e sem ossos. Para lá de nus, transparentes. Apenas veias, como as que se mostram naqueles quadros de anatomia, nos quais, um dia que já vai distante, se perdeu de espantos. Foi cuspida e vomitada. Ignorada e ostracizada.

Foi também tempo de dolorosas partilhas. Entre gente transparente como ela. Gente com nada que com ela partilhou o tudo que não tinha. De forma abnegada e desinteressada. Uma colher de sopa, um pedaço de cartão, um meio sorriso desdentado, a gota de limão, um abraço de alento e de calor, uma seringa, uma gota de sangue, um pingo de morte, um pedaço mais de qualquer coisa. Houve ainda gente que apostou nela. Uma conversa amiga. A possibilidade de um tratamento. Uma casa. Uma comunidade. A saída. Outra. Mais uma fuga. Faltava-lhe força. Faltava-lhe vontade. Faltava-lhe futuro. Um pouco de tudo isso encontrou naquela noite inesquecível. Naquele rosto familiar. Viria à sua procura? Quereria levá-la de volta para casa? Para a cama onde sonhou? Aproximou-se. Humilhada, envergonhada, mas antecipadamente agradecida. Um rosto que amava ainda. Aproximou-se mais. Que fazia ele ali? Como a encontrara? Acenava-lhe com uma sandes, como se faria a um cão de rua. Falava coisas ordinárias com aquela voz que ela idolatrara, naquela sua outra vida. Não foi isso que a fez procurar ajuda. Foi antes o facto de não ter sido reconhecida por aquele homem que lhe solicitava a boca, a ‘mão amiga’, aquele homem, o seu próprio pai, que, escandalizado com a recusa daquela “grande cabra miserenta”, daquele “pedaço encardido de não-gente” ainda lhe atirou:

– Porque não te acalmas? Tens de aprender a viver!

By Lee Jeffries

Ela aprenderia, finalmente, a viver, a ganhar carne, a recuperar ossos e a esquecer as veias, ou quase. Apenas a sair e não mais a fugir. Especializou-se em pequenos assaltos. Coisas sem importância, de pouca monta e menor pena em caso de azar. Uma carteira aqui, uns brincos de ouro ali. Um computador meio esquecido numa esplanada, uma casa ou outra sempre que se sentia mais confiante. Um part-time.  Apenas uma antecâmara de ar fresco, que lhe permitisse recuperar um pouco de humanidada, para, depois, deixar o atalho por onde se metera e retomar a estrada de alcatrão. Voltar a ser mais uma e não menos uma. Não queria voltar a sentir aquela claustrofobia com que todas as suas anteriores prisões lhe tolhiam os membros e a razão. Não ambicionava a riqueza. Não tinha sonhos. Não tinha ambições. Não queria ter o que quer que fosse, exceto uma certa sensação de liberdade e leveza, que vidas gordas não fazem bem à saúde nem ao planeta. Encontrou um quarto, um meio emprego a descascar batatas, uma espécie de amor, um lugar mais quente e quase acolhedor. Melhor de tudo: foi adotada por um cão vadio. Não tão vadio quanto ela, mas suficientemente vadio para que se amassem de verdade. Quase um presente. Quase um futuro. Aprendeu ainda a esquecer e a lembrar. A esquecer o pior, a recordar o menos mau. Inventou a sua nova droga. Pedaços de algo muito próximo a sorrisos de verão, a despreocupação e areia quente. Pequenos estilhaços de luz e de amarelo, de morango e caju. Coisas da quais achava que tinha gostado e um único som, o daquele pequeno coração que um dia, ou pouco mais do que isso, chegou a bater na sua barriga, agora estragada, danificada para a vida. Nos piores dias, repetia para si própria:

– Porque não te acalmas? Tens de aprender a viver.

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