Clementina divertia-se, o que, dadas as circunstâncias, era uma outra forma de irritação ou mesmo de preocupação, mas com proveito positivo. Uma desgraça com sinal mais. A sua procura efetiva e diária de emprego estava a revelar-se uma tarefa bastante mais árdua do que ter emprego. Quando se tem emprego, sabe-se ao que se vai, aquilo que se espera de nós, aquilo que, por norma, nos exigem além disso, quais as tarefas agendadas, as metodologias a empregar e os prazos para as cumprir. A que horas chegar e qual o horário de saída. Sabe-se tanta coisa e pode ignorar-se tanta outra, que o resultado é uma clara sensação de segurança. De puzzle completo. De sono tranquilo, ainda que curto. Conhecem-se colegas e hierarquias, os eternos calões e aqueles que se chegam sempre à frente, os perigosamente ambiciosos, os irritantes adeptos do leve rame-rame, os que melhor sabem fingir que trabalham, os que captam, atraem e recolhem toda e qualquer folha de louro, ainda que em nada tenham contribuído para a sementeira. Enfim, havendo meia dúzia de células no cérebro, vai-se sabendo muita coisa. O melhor de tudo é que mesmo que um dia, ou o mês inteiro, corra mal, ou muito mal, no final, o ordenado bate na conta, e duas vezes ao ano, bate mesmo duas vezes. Uma almofada para onde podemos atirar o corpo cansado, sabendo que não cairá no chão da rua. Clementina não falava de cor.

Sabia bem que há empregos que vergam a vontade, o espírito, o nosso brilho interior e um corpo inteiro sob o peso das tarefas ou da toxicidade de patrões e colegas. Não faltam exemplos disso na imprensa, mesmo na cor-de-rosa. Mas também sabe que quando não se tem trabalho, o fim derradeiro é a rua, a indigência, a mais pura miséria. No final, a solidão e sabemos que a solidão mata mais rápido do que o cancro. Não estava lá, ainda. Felizmente, ainda havia subsídio e marido e uma família a apoiar. Até quando teria tudo isso era a sua inquietante interrogação. Clementina não se iludia. Matutava apenas. Demasiado tempo sem emprego, sem contribuir para as despesas, sem ter para onde ir todos os dias de manhã e os olhares que em nós se depositam passam a fazer leituras que já não contemplam as nossas capacidades e competências, os nossos conhecimentos e a capacidade para os aplicar. É como se uma bicicleta deixasse de o ser apenas por estar parada. Clementina sabia que tinha de continuar a pedalar, pelo seu bem e pelo da própria bicicleta.

Entretanto… Bom, entretanto era a loucura, a insanidade mental, a bipolaridade. Sentia-se ora inútil, ora boa demais. Era preciso experiência? Ela tinha. Porém, tinha experiência a mais, e o mesmo é dizer que era quase sempre demasiado velha, quando ainda não tinha chegado aos 50 anos. Pediam currículo e referências, pois também estes não lhe faltavam, mas talvez devessem, já que também eram um entrave. Nunca suficientemente boa para os empregos, mesmo quando aquilo que lhe diziam é que era sobrequalificada. O que é que isso quer dizer? Há conhecimento a mais? De que forma, existindo tal coisa, ele pode prejudicar o desempenho de uma função? Há uma quantidade legal de saber adequado para cada tarefa? Saber mais do que o necessário não será sempre melhor do que não saber o que fazer, ou não saber o suficiente? E quando surge um caso não previsto? Um sobressalto? Uma eventualidade não contemplada nos manuais? Não será melhor alguém que saiba pensar e interligar maior número de conhecimentos? Reinventar procedimentos, mudar o necessário para que o novo fosse incorporado ou expulso, ou evitado, conforme a necessidade? Não entendia. Temiam que soubesse mais do que os chefes e lhes quisesse ficar com o lugar? Receavam que puxasse assuntos demasiado intelectuais à hora do café fazendo todos os outros passar por tolos e ignorantes? Desconfiariam já que os seu seios começavam a descair? Perceber-se-ia que as suas carnes já não seriam frescas por baixo da roupa? Como poderiam saber de verdade? E isso importava para o efeito? Não incomodava o marido, único interessado, pelo que, como poderia isso inquietar contratadores?

O pior de tudo, para Clementina, era a certeza de que nem se preocupavam, não liam ou avaliavam, com ou sem carnes lassas e frouxas, por acharem, simplesmente, que era velha. Velha de mais. Acreditava que era a primeira coisa que liam num CV. A data de nascimento. Talvez mesmo antes de se dedicarem à foto. Quatro dígitos que serviam de escrutinador-mor. Eles separavam o trigo do joio. Ela era joio. O ano de nascimento tinha-se pronunciado e não havia outra instância a que recorrer. Caso encerrado. Precisavam de sangue novo. Sangue fresco. Daquele que ainda pulsa tanto nas veias que não se incomoda com horários excessivos para ordenados diminutos. Gente ciente de que a fase inicial da carreira é aquele período em que se aceita ser explorado, em nome da experiência e das oportunidades que virão depois. Só que depois, quando já se tiver sido bem espremido e se tiver um enorme aforro de experiência e bagagem, nessa altura, já se é velho demais e há sangue ainda mais fresco, novo e ávido para sugar Enquanto o sangue pulsa febril, não sabemos muito bem o que fazer com ele, quando finalmente dominamos todas as possibilidades, gelam-nos o sangue nas veias e forçam-nos a encostar ás boxes, por causa de artroses que ainda nem sentimos. Dizem que a idade está na cabeça. Que só se pode avaliá-la pela energia que sentimos e não pelos anos que temos. Clementina, que nunca se dedicara a tais disparatados aforismos, sabia agora que a sua idade não estava nem no seu corpo nem na sua cabeça ou energia. A sua idade só existia na cabeça dos outros, para quem, infelizmente, era demasiado qualquer coisa para ser empregada.

A cada passo que dava, a cada novo CV ou nas extraordinariamente raras entrevistas, sentia-se como se estivesse perante a árdua tarefa de ter de criar uma password secreta e segura, nunca chegando a conseguir cumprir o requisitado. Criada uma palavra-chave que se julga suficientemente enigmática, mas suficientemente familiar para ser recordada sem necessidade de outra password para abrir uma pasta-cofre onde se armazenam outras passwords complexas, lá vinha uma advertência.

– A password tem de ter maiúsculas e minúsculas

Ok. Adapta-se a sequência inicial.

– A password tem de alternar letras e algarismos.

Compreendia. Deveria vitaminar a sua palavra secreta, para que fosse difícil de violar. Somava números antes, durante e depois das letras, que já existiam e já se ladeavam em caixa alta e baixa.

– A password deve ter caracteres especiais.

Já se começava a aborrecer, mas sem sobressaltos. Afinal, era para bem do segredo, da inviolabilidade, o que também era do seu interesse. Lá ia um = e mais um $ animar a coisa, mas já muito baralhada sobre se conseguiria decorar tudo sem cábulas, o que, por sua vez, deitaria por terra a segurança pretendia desde o início.

– A password tem de ter mais de x número de caracteres.

Porque não começaram por dizer isso? Podia logo ter começado por outra combinação de palavras e de ideias. Repensar. Começar tudo de novo. Mais longa, mais letras capitais e mais letras minúsculas. Não esquecer os números e os caracteres especiais.

– A sua password tem um grau de segurança mediano. Considere alterá-la.

Era neste ponto que lhe apetecia desistir. Começar a caminhar sem destino, até furar os sapatos ou rebentar um joelho. Como que em peregrinação, apenas sem destino, rota ou santo devoto. Só ela e o universo. Cada um a andar para o seu lado. Sem amizade ou amuos. Apenas caminhante. Deu início à marcha, ainda sem saber, e sem nisso ter ainda grande interesse, se acabaria em casa ou se andaria até ao infinito. Começou a magicar se não valeria a pena tirar coisas do CV. Torná-lo uma construção menos fiel ao seu percurso, e mais adaptada ao percurso que todos esperam dela e, até, mais consentâneo com as necessidades do mercado de trabalho, esse ser que olha para nós com rigores escrutinadores, enquanto saliva de desdém ou de desejo. O mercado de trabalho, segundo o perfil elaborado por Clementina, é um velho ressabiado e nojento. Prefere obviamente jovens imberbes, mas já maiores de idade, para fugir ao estigma da pedofilia, até porque o marcado de trabalho tem de si mesmo uma ótima imagem. Vê-se como entidade autorreguladora, idónea e vetusta. No fundo, não passa de um obsoleto burguês, vestido de capital e adornado de poder. Era ainda uma criatura desprezível, ignorando soberbamente qualquer tentativa de Clementina de com ele chegar à fala. Nem a secretária atendia. Também, não precisava. Nunca estava para quem quer que fosse. Apenas silêncio. Ignorância.

Clementina achava mesmo que o seu nome já devia fazer parte de todas as listas de spam do país, caindo diretamente nelas cada missiva que ousasse enviar com o ultrajante CV na janela destinada ao assunto. Clementina era um spam e o seu curriculum uma peça inadequada à tal inatingível password, onde era preciso acrescentar ou tirar coisas e sinais e caracteres. Deveria ela retirar experiências, cursos e conhecimentos? Obliterá-los do seu passado? Estaria a solução na sábia lógia do fazer-se passar por parva? Estar desempregada, a seu ver, já era parvoíce suficiente. Nisto, já devia ter caminhado uns 60 quilómetros, pois achava que já tinham passado dias. Seguia que direção? Estranhava o marido não lhe telefonar. No ecrã do telemóvel, novas indicações:

– Não coloque nomes de filhos ou animais de estimação que possam facilmente ser descodificados.

Lá teria de voltar a alterar a sigla.

– Não use datas de nascimento, sua ou dos que lhe são próximos.

Talvez se as reordenasse…

– Não…

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