Ela Era Estranha!?

Ela era… Era… diferente. Não, não era apenas diferente. Ela era estranha. Joaquim aguardava apenas decidir-se sobre se era uma estranheza boa ou má. Positiva ou negativa. Claro que ser diferente é bom. É positivo. Definitivamente positivo. Ser-se diferente é destacar-se dos outros, sobressair-lhes, ser-se mais notório e objeto de observação. Por vezes, certo tipo de diferença suscita mesmo admiração, ou inveja, mas isso depende muito da formação e do carácter de cada um. Diferente é estranheza domesticada. Ser diferente é ser igual com um plus, um twist. Diferente é ser-se normal-mais. Assim, essa diferença funciona como elemento atrativo e não como repulsa. O que via nela, porém, ainda não era preciso e Joaquim fixava-se cada vez mais naquela mulher a fim de perceber, melhor dizendo, a fim de decidir em que categoria a catalogar. Certas coisas, ou momentos indicavam diferença, o que suscita imediata vontade de saber mais, aguça a curiosidade e força a aproximação. É olhar uma safira numa caixa cheia de rubis. Outras particularidades e outros momentos, porém, faziam-no franzir o nariz instintivamente, e literalmente também. Joaquim dava com o rosto franzido e logo o engomava de correção, pois estava sozinho e se não se incomodava que alguém naquele preciso momento também se dedicasse a avaliá-lo, agradecia que o considerassem diferente, mas jamais estranho. Já aquela mulher…

Não estava a ser fácil, mas nisto, a desconhecida dá-lhe a ajuda necessária para decidir um veredicto. Enquanto fala ao telemóvel, reagindo à conversa, ela dá uma gargalhada sonora enquanto a cabeça se entrega a pender para trás, o que eleva a boca e propaga o som da gargalhada para cima e para os lados e, de repente, aquilo pareceu-lhe vulgar. Exageradamente diva e um gesto pretensa e demasiadamente sedutor para encaixar naquele corpo, para resultar numa mulher que era apenas… estranha. Sim, Joaquim já se tinha decidido. Ela era estranha. Tentava já perceber que elementos, em que quantidade e intensidade faziam pender a balança para a estranheza. Havia nela, inegavelmente, uma questão de dimensão. Mais do que isso, talvez mesmo de proporcionalidade. Ela era imensa. Alta, acima do 1,80 m seguramente, larga, de ossatura sobredimensionada, ombros e anca largos, mãos enormes e, a avaliar pelos sapatos, os pés eram ainda mais obscenos. Onde compraria ela os sapatos? Online, por certo. Essa grandeza de tamanho era do tipo embaraçoso. Joaquim não conseguia dizê-lo de outra forma. Constrange. Certo tipo de gigantismo é isso mesmo que lhe causa: constrangimento, quase vergonha alheia. Coitada, que mãos tão grandes, e que pés tão dantescos, e que anca larga e aqueles ombros?! Coitada! Era o que lhe ocorria, era sentir uma certa pena.

É certo que aquilo inicialmente o atraiu, nada de falsidades. Joaquim correu para a novidade e até estremeceu um pouco, pois gostava de mulheres altas. Sem dúvida por conta da missão da avó Carlota, que vivia inconformada com a baixa estatura da família nos últimos dois séculos, uma das que homens mais altos tinha dado ao país, e que era agora representada por ‘nanicos, como lhes chamava, ou, ainda com maior desdém, ‘baixinhos’, pelo que instigava todos os jovens da família, desde cedo, a procuraram parceiros de procriação altos. Na sua versão do mundo, mais valia que se casassem mal, com pobres e gente sem apelidos, mas que fizessem filhos com pessoas altas, do que casarem-se bem e acabarem nos braços de pobres e baixos coitados no período mais fértil do mês. Carlota bem sabia o porquê destas suas teorias e da sua expressa mania de grandezas. Tudo tinha começado com a estouvada da Maria Antónia, antepassada do século XIX, que apesar de se ter casado com um garboso e alto germânico, dono, praticamente, de toda a Vestefália e de um corpo esguio a atirar para os dois metros, adorava meter conversa com o povo durante as ausências do marido.

Carlota achava mesmo que Maria Antónia não tinha qualquer das doenças que afirmava ter e que alegadamente a impediam de acompanhar o marido em todas as suas deslocações, em que o germânico vendia e comprava volfrâmio, e carvão e aço e armas e sabe Deus mais o quê. Alto, inteligente e riquíssimo. Pois bem, dessa união, apenas uma rapariga linda e alta, todos os outros trastes eram ‘nanicos’ com caras de pobres. Sim, caras de pobres, que não é uma demão de sangue bom que disfarça séculos de estrebaria e pão duro. Aberta a porta ao povo, foi ver a família a minguar a olhos vistos, de geração em geração, cada vez mais encolhida e feia. Alguns ramos da família foram-se aguentando bem acima do metro e setenta, mas a maior parte decaiu sem piedade. A salvação eram os primos Mata-Mouros. Oh, que estirpe, que elite soberba. Todos com um brutal déficit de inteligência, por conta da consanguinidade – eram muito promíscuos, mas viviam no campo, desculpava Carlota –, mas altos e lindos como poucos. Não fossem tão boçais, não devessem tanto à iliteracia e quase valeria ponderar uma aliança entre primos, mas aquilo – por aquilo entendam-se casamentos frequentes entre primos direitos e mais do que direitos – já há muito que dava para o torto. Era já patológico. Como eram muito burros, coitadinhos, não se sentiam bem junto de pessoas com cérebro e acabavam amantizados entre si. Ainda assim, a avó Carlota não deixava de mencionar os Mata-Mouros, os seus primos mais queridos.

Todo um preâmbulo necessário na mente de Joaquim, que sempre se sentiu atraído por matulonas, e achava que tudo se devia à doutrina missionária da avó Carlota, que instruía os ‘piquenos’ a casarem-se com gente grande e crescida. Uma tia mais precipitada fez uma leitura enviesada das palavras da avó e ainda hoje se perde de amores por velhinhos, muitos deles baixos, o que duplamente leva a avó Carlota a bolsar sempre que se fala na Tia Vi. Explicada a si mesmo a razão por que se sentiu de imediato atraído por aquela mulher de formas e contornos generosos, Joaquim lamentava tudo aquilo que nela não lhe permitia adorar o seu desmesurado tamanho. O sucesso que não faria quando a apresentasse à avó Carlota. Já conseguia ver os seus olhinhos cinzentos a tornarem-se amarelos como oiro, tirando todas as medidas à pretensa candidata a futuro membro da família e quase salivando de satisfação. O que a avó adoraria esta gigante! Mas algo ali não batia certo. Era grandeza a mais. Tudo demasiado. Tudo em excesso. Joaquim estava convicto de que não seria só a si que ela dava pena. Podia cortar-se meio metro a cada coisa e ainda sobrava coisa suficiente para conseguir uma mulher alta. Proporcionalidade. Joaquim anuiu. Era isso mesmo: pro-por-ci-o-na-li-da-de. Havia ali desproporção. Não havia equilíbrio nem equidade, nem harmonia. Ali havia exagero, excesso e coisas a mais nuns sítios e em falta noutros. Era confuso. Com rigor, era estranho. A cintura, por exemplo, era demasiado estreita para a anca e a caixa torácica que a ensanduichavam num insano desnível. Sapatos, estava visto, só online e roupa só por encomenda. Era impossível encontrar no pronto a vestir pano suficiente para tanto corpo e a correta relação de medidas e proporcionalidades. Joaquim deteve-se na ideia antiquada de costureira. Ir à costureira, como sempre ouviu as mulheres da família dizer, era coisa que já não ouvia há cerca de duas décadas, seguramente. Ir à costureira. Só a manutenção de uma coisa dessas e toda a logística e desgaste… Além de que, onde se compram tecidos hoje em dia? Ainda há lojas de tecidos na baixa? E os tecidos são ‘frescos’ ou tresandam a 1984?

Pobrezinha. Ainda assim, e por ser um homem honesto com os seus botões, a quem jamais contou uma mentira, Joaquim investigou bem lá no fundo do peito, e mesmo um pouco à superfície – a fim de medir bem o pulso a tudo aquilo –, se não estaria a desdenhar por achar que não a conseguiria conquistar – afinal, ela era a sua nova chefe –, ou se realmente ela o desgostava. Por outro lado, achou ainda que deveria avaliar esta necessidade de uma segunda opinião, ou de revalidação da sua opinião primeira. Estaria tão desejoso de levar uma matulona para casa e redobrar o brilho nos olhos da avó Carlota que isso o impedia de aceitar a sua primeira impressão, o seu instinto? Para quê reconfirmar aquilo que a tripas lhe diziam? E é precisamente nas tripas, e não na cabeça ou no coração, que se devem tomar as decisões importante e as outras também, daí dizer-se que se apanha um homem pelo estômago. Claro! Alguém indisposto não pode tomar decisões acertadas. Alguém que passa fome também não. Além de que basta acenar-lhe com um naco de pão retardado e é vê-lo a defender e a sentir coisas que jamais defenderia ou sentiria, caso estivesse de barriga cheia. Há que agir ponderadamente e usar de cautelas e Joaquim gostava do brio com que usava esses atributos: ponderação e acautelamento. Por isso insistia ainda na dúvida, na hesitação, nas reticências entre diferente e estranha, muito embora já tivesse votado claramente na segunda hipótese.

By Robert Doisneau

Foi então que ouviu a voz daquela que poderia vir a ser a neta por afinidade predileta da avó Carlota. Era, definitivamente, estranheza. Um caso agudo e crónico de estranheza. Claro que isso impunha diferença, mas mais ainda estranheza. E estranheza pura também tem o seu quê de repulsa. Porque a estranheza é feia e negativa. Peca por algo. Neste caso, a juntar à desproporcionalidade e a tudo o resto, como eram as desmesuradas extremidades, um outro elemento se lhe juntava. A voz. A voz dela era a mais suave e doce projeção vocal que alguma vez lhe fora permitido escutar. Não sabia, e talvez nunca viesse a saber, como se fala no Céu, ou no Paraíso, mas havia no timbre de voz dela algo de celestial, de irreal. Era como ouvir cá dentro, sem o elemento físico e mecânico de permeio, a levar e a receber som. Como se fosse telepatia, ou magia, ou, lá está, apenas estranheza. Mais um caso de desproporcionalidade, de mau fitting. Aquela voz não podia pertencer àquele corpo. Aquela voz era magra e loura, era delicada e esbelta. Pertencia à classe alta e criava na nossa mente imagens angelicais e sofisticadas. Plumas, suavidade, seda e claras batidas em castelo. Aquela voz era desproporcionalmente delicodoce e suave para aquele corpo de excessos. Não precisava, claro que não precisava, de arrotar ou dizer palavrões, mas ambos surgiriam com maior naturalidade associados àquele corpanzil do que aquela pureza castrato. A estranheza era tal, e a ausência de encaixe entre voz e corpo tão gritantes, que não seria mais surpreendente, por exemplo, se ela fosse um ele e, de repente, abrisse a boca e saísse aquela mesma voz divina, frágil e ultrafeminina, quase infantil. Para Joaquim, aquilo já roçava a bizarria. Já era número circense. Já imaginava a propaganda: ‘A mulher gigante com voz de anã’, ou, ‘Venham ouvir os anjos falar pelo corpo do diabo’.

by Frederick W. Glasier

Coitada. Também não havia como ser discreta ou passar despercebida. Não reparar naquela mulher era atestado de óbito, pois só um defunto lhe ficaria indiferente. Ou isso, ou experimentar-se um episódio de visão em túnel. Cegueira não serve de exemplo, que um cego tem outras formas e apurados radares para detetar estas extravagâncias da natureza. Só mesmo morto ou em plena experiência limite é que se conseguiria ignorar esta mulher.

Joaquim imaginava-a a entrar no Metro, a tentar enfiar-se dentro da carruagem como faria uma girafa civilizada, mas tentando igualmente não ficar travada pela largura das portas, como aconteceria a um elefante. Bom, agora, parece que era ele quem exagerava. Ela jamais andaria de Metro. Não aparentava esse tipo de pobreza, nem esse nível de modernidade urbana. Parecia gostar de umas mordomias, até por uma questão prática. Não deve ser fácil locomover tudo aquilo de um lado para o outro. E como seria a tensão arterial dela? Caso fosse baixa, ela nem deveria conseguir chegar aos 45 anos. Como é que um coração bradicárdico conseguiria, alguma vez, levar oxigénio a toda aquela massa corporal, mais ainda ao cérebro? Seria como colocar uma formiga a subir o Evereste. Mau exemplo. Com a resiliência e expediente de uma formiga, até Marte fica perto. No lugar da formiga, imagine-se antes chutar uma boa de chumbo até ao topo da montanha. Seria o mesmo esforço necessário a um fraco batimento cardíaco para bombear sangue oxigenado às alturas da cabeça dela. Coitadinha. Naquele momento Joaquim só já desejava que ela fosse saudável. Pobre criatura. Nisto, começa a sentir um misto de sentimentos caridosos, quase semelhantes a gostar um pouco daquela mulher e dá por si a querer abraçá-la e acarinhá-la, para que ela não sinta tanto a crueldade do mundo e de incapazes órgãos cardíacos para gente como ela: desmesurada, desproporcional e… estranha. Não devia ter pronunciado tudo aquilo de rajada, quase lhe causava vómitos e bolsar ali não era de cavalheiro.

By Jen David

Nisto, os seus olhares cruzam-se, bem como as pernas dela e Joaquim sente um certo estremecimento. Aterrorizado, acreditando que era um pingo de paixão, agarrou-se firme à cadeira, sentindo a cabeça a andar à roda, como a lotaria que a Zaurinha – na família desde os 14 anos, que o criou toda a vida depois de já ter criado o pai e os tios – religiosamente comprava no quiosque da rua de trás. Acalmou-se e disse mesmo uma breve prece, quando percebeu que o estremecimento se devia apenas à sobreposição das pernas dela. Já se sabe, edifícios antigos, gaiolas e madeiras pombalinas, bicho e caruncho. Cada vez sentia mais empatia pela ‘piquena’, muito embora de ‘piquena’ tivesse zero. Que se lixe, iria fazer a avó Carlota felicíssima. Levantou-se e dirigiu-se decidido à secretária da nova CEO da empresa e convidou-a, olhos nos olhos, para uma tarde de cocktails e padel na quinta de Azeitão. Ocorreu-lhe Azeitão porque a casa tinha sido construída pelo tetravô, quando a família ainda se afogava em dinheiro, e tinha uma sólida estrutura, já que o palacete da Lapa não tinha saúde nem arcabouço para aquela bisarma, a não ser que não saíssem do rés do chão, mas aí teriam de estar sempre a dar de caras com a criadagem… Seria Azeitão.

Ela sorriu, educada e divertida, mas visivelmente estarrecida. Abria e fechava muito os olhos, como fazem alguns míopes, na tola e vã tentativa de verem um pouco melhor. Parecia não acreditar no seu genuíno interesse, ou não compreender o seu convite. Talvez não gostasse de cocktails, ou achasse um programa aborrecido. Podia ter juntado um louco passeio a cavalo pela Arrábida, mas que montada aguentaria o corpo dela? Gostava demasiado dos seus cavalos para sequer ponderar tal homicídio equino. Nisto, levantando-se, com aquela sua voz suave, doce e vinda de outra dimensão que não a meramente humana, e mantendo sempre o contacto visual, ela diz-lhe:

– Adoraria, mas está a ver que não posso, não está?

– Não, não estou. Tem de ser menos enigmática.

– Quantos anos tem?

– 16.

– Precisamente.

Joaquim não queria acreditar que aquela baleia anormal, fruto do cruzamento do pajem do Diabo com uma viscosa alforreca, tivesse a complexa veleidade de se permitir ser arrogante e desdenhar um pretendente. Um Quiroga de Resende Melo e ETC. Quantos mais acharia ela que encontraria? Nem numa feira de horrores. Patega, bonne, bimba, hipopótama, paio de Barrancos. Ele tinha 16 anos, mas evoluiria, já ela, não diminuiria de volume, não perderia osso, não deixaria de ser aquele bisonte disforme. Se bem que, em abono da verdade, ali mais perto, ela pareceu-lhe mais perto da normalidade, ou seria apenas da banalidade? Pior para ela, os cocktails da quinta eram os melhores, pois o tio Felipe só admitia cocktailogistas de primeira.

Joaquim virou-se com dignidade e reparou numa outra estagiária, como ele próprio, em quem reparava pela primeiríssima vez. Estaria a fazer voluntariado como ele? Um ano sabático? Seria necessidade? Olhou-a breve e depois atempadamente, que o serviço, agora não era a sua prioridade – acabara de ter um arrufo com a nova chefe e isso magoou-o um pouco. Não desgostava do que via, muito embora não cumprisse de forma tão plena os requisitos de altura da avó Carlota. Ela era… Era… diferente. Não, não era apenas diferente. Ela era estranha.

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2 Comments

  1. Eliana

    Amei

    • Marina Rocha Ribeiro

      Que bom, Eliana! Muito obrigada

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