A Carochinha ou a Agarradinha e o João Ladrão

CAROCHINHA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

Aqui há atrasado, Júlia ainda se recordava, tinha tido uma vida. Não era bem uma coisa em pleno, mas uma simpática aproximação daquilo que, por norma, se considera a existência humana. Havia uma família, pais, amigos, uma casa, a escola, roupa lavada, escova de dentes, telenovelas que se seguiam avidamente… Uma vidinha, vá. Na altura, era apenas sofrível para o seu espírito inquieto, menos do que isso para o seu coração palpitante, desejoso de aventura, ansioso de perigo, e um verdadeiro zero para a sua mente ávida de prazeres sintéticos. Tudo começou na primária, com uma fixação nas aulas de trabalhos manuais. Não que tivesse o menor jeito ou aptidão para manualidades, mas vibrava com o cheiro da cola. Não dos sticks de cola para papel, mas das bisnagas amarelas e letras pretas, que ainda nem sabia soletrar, e cujo odor tóxico a deixava louca. Por essa altura, os pais acharam que deviam levá-la ao médico. Um psicólogo, porque “a menina tem um amigo imaginário”. Ahahaha. Um? Tinha milhares! Por segundo. Ninguém entendia que vivia sob a influência dos seus tubinhos mágicos. Eram a sua verdadeira… coca-cola. If you know what I mean. O apelido ‘Agarradinha’ surgiu então. Uma ternura da avó, que se enternecia com a avareza da sua ‘netinha predileta’, já então uma deusa na arte do surripianço. Todas as moedas eram poucas para a maldita da cola, mas que a avó achava ser para o porquinho mealheiro, o qual a cândida menina ia enchendo de gravilha. Tinha o peso necessário e fazia um som equivalente ao do metal, o que alimentava os delírios financeiros da avó. Depois disso? Bem, foi um tirinho até aos sintéticos mais elaborados. Nada contra a Natureza, mas Júlia tinha um fraco pelo artificial. ‘Cenas’ hiper-processadas, cristalizadas, sintetizadas, hiperbolizadas. Essas, sim, eram as suas heroínas. O tempo da cola durou o tempo que tinha de durar e o que colou mesmo foi o nome ‘Agarradinha’ e a crença familiar de que tinham um anjo em casa. Até pela forma religiosa, quase beata, com que tomava a medicação que o médico, nesta fase, já um psiquiatra, lhe receitava devido a questões de dupla personalidade. Claro: personalidade 1, Júlia sem droga; personalidade 2, Júlia sedada.

CAROCHINHA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

O destino não podia ter tecido melhor enredo para o seu lado. Os pais, cujo amor e credulidade eram os maiores aliados de todos os seus vícios e mais um par de botas – Júlia era louca por botas, de verdade –, apenas se tinham empertigado ao conhecerem o primeiro e único namorado que lhes apresentou. João Ladrão. O Deus da cola, o rei do sintético, o autor de todas as suas ilusões. Insurgiram-se. Que era tatuado. Que era porco. Que era o diabo a sete, vezes nove. Júlia não era boa a matemática. Saiu porta fora para nunca mais voltar. Perguntou a João Ladrão se queria casar com a ‘Agarradinha’, ele grunhiu qualquer coisa que soou a um enorme e emotivo Siiiiiiiiiimmmmmmm. Provavelmente, foi mesmo um sim, pois só mesmo ‘Agarradinha’ entendia as complexas cadeias de raciocínio de João Ladrão. Casariam. O pior é que, agora, sem a almofada financeira parental, ‘Agarradinha’ sentia-se perdida. À sua maneira desprendida, João Ladrão só tinha olho (no singular, pois perdera a visão do olho esquerdo num dia de má trip) para ‘Agarradinha’. Ainda se recordava dela à janela da casa dos pais, garantindo a cada transeunte do sexo masculino que com ele casaria em troca de apenas 20 euros. Não era assim tão caro. Uma pechincha, na verdade, tendo em conta a beleza e bondade de Agarradinha. Claro que se voluntariou de imediato, não obstante ter de lhe pedir que aceitasse apenas cinco euros, que ele já lhe traria o restante. Por isso, apercebendo-se do estado de alienação e tristeza constantes da amada, desde que tinha abandonado o lar paterno, João Ladrão elabora um inédito e surpreendente assalto. Tinha tudo planeado ao detalhe. Conhecem aqueles artistas de rua que pintam o corpo e a roupa, de forma a camuflarem-se com a paisagem urbana, ou outra? Pois bem. João Ladrão tinha visto um desses artistas no youtube, disfarçado de fruta num supermercado e logo planeou a fuga para uma reforma em grande, e aos 25 anos apenas. Enfiar-se-ia numa mala de viagem, magnifica e maravilhosamente pintado de maneira a confundir-se com milhares de pacotes de heroína colombiana – havia que ter em atenção a origem da droga, por causa da cor. Não queria deitar tudo a perder por causa de um tom abaixo ou acima na pureza do produto. ‘Agarradinha’ faria a entrega e, logo que ela recebesse o dinheiro da compra, ele tinha apenas uma tarefa a cumprir: tomar um bom banho e pôr-se a milhas, ou seja, apanharia o autocarro ali no Arco do Cego. Sabia a quem interessa sempre droga em quantidade, conhecia os meandros do nobre métier… Nada podia falhar pelo que, nada falharia. ‘Agarradinha’ tinha-o olhado com adoração, quando João Ladrão lhe contou o estratagema. Como ele era inteligente e criativo. Como ele a amava. Não via a hora de ser a Senhora de João Ladrão. Sua esposa, como ele tanto gostava de lhe dizer ao ouvido.

CAROCHINHA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

Com a aproximação do ‘fecho do negócio’ os nervos apoderaram-se deles, mas nada que João Ladrão não controlasse nas calmas. Vamos ser ricos e nunca mais precisaremos de ninguém. Esta ideia era o seu alimento por esses dias, nos quais a droga se resumia aos mínimos olímpicos e ambos se entretinham com a medicação de ‘Agarradinha’ a dividir por dois. Como era má a matemática, resultava que ora ressacava um, ora ressacava o outro. Mas ‘tá-se bem, mimavam-se amiúde. No dia X, à hora tal – que nisto de planos, João Ladrão sabia bem como o segredo era a alma do ‘sócio’, pelo que mais não diremos – lá estava ele, todo dobrado e pintado como embalagens de droga em dia de entrega, em pleno Arco do Cego. ‘Agarradinha’, exemplar no seu papel de ‘correio’ ainda hoje não entende como é que os descobriram. Ela própria, que não via à sua frente outra coisa que não apenas o seu J. L., quase não o reconhecia, assim como estava, cheio de papel pardo e atilhinhos e foto adesiva… Ah, se calhar era fita e não foto. Também nunca foi muito boa a Português, a bem da verdade. Abreviando, que o serão já vai longo: ela lá conseguiu fugir aos tropeços, sabe Deus como. Para usar de rigor, Deus mandou dizer mais tarde nada saber e não estar a par de coisa alguma. João Ladrão, incrédulo e absolutamente convicto da infalibilidade do seu disfarce, nem na esquadra saiu do seu papel, o de papel de embrulho, precisamente. Só quando o mangueiraram, para grande humilhação sua, percebeu que tinha sido descoberto e tudo o mais posto a nu. Mas como é que eles tinham percebido? A nova polícia está muito bem preparada. Essa é que era essa. A nova sede da Judiciária já estava a dar frutos. Resignou-se. Apanharam-no a ele e ao Zé Manguito, o comprador, que, para a polícia, era, já há anos, apenas um nome fantasma que farejavam em pistas que culminavam sempre em becos sem saída. Felizmente, ‘Agarradinha’ estava a salvo e com a mala do guito. O que eram ótimas notícias. Quanto a si, João Ladrão optou por uma pose seráfica, fosse lá isso o que fosse, e privilegiou o silêncio. Porém, a dada altura, João Ladrão começa a perceber uma espécie de padrão na linguagem do adversário. O polícia que o interrogava não parava de usar uma espécie de código que ele tentava a custo decifrar.

CAROCHINHAPOR MARINA ROCHA RIBEIRO

– O que tu queres, sei eu! O que tu queres, sei eu! Isso é que era bom! Isso é que era bom!

Nisto, fez-se luz no enevoamento do precário sistema neurotransmissor de João Ladrão. O polícia citava canções da Dina. Ó pá! Tinha vindo ao sítio certo. João Ladrão sabia na ponta da língua todo o repertório da cançonetista. O interrogatório já estava no papo.

– Sr. Agente – disse em tom confidencial, semicerrando os olhos –, “Peguei, trinquei e meti-te na cesta. Ris-te e dás-me a volta à cabeça.” Hã? Que me diz a isto? E digo-lhe mais, “meu amor de água fresca”, hoje estou “Dinamite” – acrescentou com um piscar de olhos. Excitado com a descoberta da sua inteligência, em tom sussurrado, ainda rematou: “Teu corpo a dançar à luz do luar põe-me louca assim, lálálá, Pérola, rosa, verde, limão, marfim.”

– Então, estamos entendidos? – Perguntou ao agente com um segundo piscar de olho.

Em menos de meia hora estava frente a uma junta médica. Avaliavam, seguramente, as suas capacidades intelectuais, sobre isso não lhe ocorria a menor incerteza. Por esta não esperavam eles. Um tipo aparentemente simples que além de um original plano ainda desmontava em três tempos, ou menos ainda, enigmas e códigos encriptados que as academias ensinavam em segredo aos seus pupilos. Deram-lhe tudo aquilo de que precisava. Tinha-os na mão. Ele foi remédios, metadona, consultas… E, ‘bandeja’ no topo do bolo, para o esborrachar de vez: estava livre. Correu para os braços da sua ‘Agarradinha’ e viveram felizes em dias alternados até… um dia. A ele voltaremos mais tarde.

 

Moral da história: É sempre melhor ser-se inteligente e culto do que não e há que ter sempre uma ou outra estrofe da Dina pronta. Nunca sabemos quando vamos precisar de uma.

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1 Comment

  1. João

    Gostei bastante!
Para ajudar à festa, aqui vai (apenas para quem sabe decifrar códigos e assim…)
‘Eras terra cinza, lava ardente o fogo em mim …’
    Alguém sabe quem escreveu?

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