Há algo de absurdamente doloroso e intolerável na última vez. Exulta-se tanto a primeira vez, e nada se diz sobre a última. Não aquela última vez que só a posteriori percebemos ter sido a última vez. Como quando recordamos que vimos sicrano nas últimas férias e estávamos longe de saber que nunca mais estaríamos juntos, ou beltrano ainda ontem e mal sabíamos da impossibilidade de novo encontro. Não. Essa última vez não dói na carne porque passa por ser apenas uma vez. Uma vez mais. Não a última de todas. A derradeira. Essa última vez é fraquinha. Magra. Impercetível. Dela damos conta sob a doce distância do tempo e do espaço. É óleo de fígado de bacalhau envolto em mel e frutos do bosque. É dor que analgésico ameniza.

Há algo de insuportavelmente absurdo e doloroso na consciente e bem-sabida última vez. A última em que preparamos o teu agora prato favorito. O único na verdade que o teu estômago aceita ainda. O último prato de massa com frango assado que te preparo, cujo cheiro já não suporto e que ficará para sempre na minha memória olfativa, misturado com o azedo do vómito e o ácido da urina, da náusea que não controlas e que já não voltarei e testemunhar e das fraldas que não mais te trocarei. A última vez que enfio os dedos na tua garganta saturada dos meus dedos determinados em garantir que a droga passa para chegar onde deve. A última vez que sei ser a última vez que faço algo por ti. Na certeza triste de que é mesmo a última vez que acontece. Como quando passo os dedos cansados, tantas vezes esgotados e outras tantas irados de exaustão, pelos teus cabelos suaves que penteio, ainda assim, como se não fosse a última vez. Há loucura nesse derradeiro tempo. Há dor absoluta e tudo se sente já como se afagássemos a morte em pessoa. Como se acariciássemos o pretérito perfeito de um passado imperfeito. Uma pessoa que é minha ainda. Que é vida ainda, mas não suficientemente vida que permita repetição do gesto, do ato. Há crueldade nessa vez que é a última.

By Josef Koudelka

Há algo de profundamente contranatura na certeza da última vez. Saltam lágrimas ao desbarato, recriminações angustiantes por todas as vezes que, ainda não sendo a última, me exaltei e desesperei pela dura repetição de procedimentos, pela constante preocupação que em ti se deposita sem tréguas. Pela estupidificante replicação do gesto e do cansaço, cuja pilha parece enlouquecer, esquecendo-me até de que é por infinito amor que o faço e que exatamente por isso não me deveria cansar. Mas cansa. Cansa tanto quanto me dá vontade de que me volte a cansar em dobro, quando entendo e sei que não haverá próxima vez.

Há algo de inconsolável na última vez, pela certeza de que não teremos mais vezes e que para nós não há esperança de próxima vez e de que jamais haverá para nós possibilidade de primeiras vezes. Haverá Eu depois de Nós? A última vez é uma merda!

Talvez a dor insuportável da última vez, aquela que é consciente e sabedora do seu estatuto derradeiro, venha a ser amenizada por essa outra loucura que já se adivinha e que já prevejo, e que já sinto aproximar-se da próxima primeira vez. Para mim, amanhã será um somatório de primeiras vezes em carne viva. A primeira vez que acordarei sem tarefas urgentes concernentes à tua higiene, ao teu bem-estar, ao teu almoço de massa com frango assado, ao esvaziamento paulatino da enorme caixa de medicação ordenada por um desesperante e repetitivo Manhã, Tarde e Noite que se alongavam até ao infinito dos dias. Será a primeira vez sem cheiro a azedo, sem um tacho de massa ao lume, sem frango para desfiar, sem a medicação das sete e das onze e do almoço e da tarde e da noite. Sem gotas de dois tipos diferentes e para olhos diferentes quatro vezes ao dia, mas estes, os dias, sempre iguais. Um amanhã sem sobressaltos noturnos, quem sabe até sem insónias ou cansaço. Como será isso? Como será viver sem o peso da tua dolorosa presença? O que farei nesse tempo livre de preocupações, mas carregado de saudade? O que se faz quando se tem pouco para fazer? Saberei como ocupar-me?

By George Digalakis

Será a primeira vez que, distante do teu hálito quente e nauseabundo de tantos químicos, perceberei a crueldade do meu mau-humor em dias de exaustão extrema. Do modo rude com que te virava na cama, te puxava ou empurrava, te abria a boca ou desesperava ou mesmo enfurecia sempre que simplesmente viravas a cara para o lado, em silêncio, recusando apenas o que te era oferecido, sem uma palavra. Vou, seguramente, achar estoico o teu esforço em permanecer só mais um dia, só mais uma hora, perceber a bravura na ausência de queixumes, delicadeza no modo como apenas rodavas a cara recusando o que te era oferecido, sem ofensas, sem palavrões, sem mau-humor. Apenas delicadeza e cuidados. Sinto já saudades tuas, quando ainda aqui estás, nesta última vez que nos é cruelmente concedida. São já saudades, sim, e isso é estranho. Todas as minhas próximas primeiras vezes serão sem ti. Farão ainda sentido? Tudo aquilo que me acontecer a partir de amanhã a esta mesma hora será para sempre vivido sem ti, e será sempre a primeira vez para mim. A primeira vez de tudo sem ti. O meu primeiro banho que não terá já de ser à pressa, a primeira vez na farmácia sem a nossa lista habitual, a primeira vez que almoçarei sem ter de preparar dois almoços. O que farei para o almoço? Massa com frango assado, seguramente. Já sai mecanicamente e trazer-te-á de volta a mim e a casa. E depois? Começo a ler um livro. Serei ainda capaz de tal imersão no silêncio interior? Terei ainda capacidade de concentração para tal? Saberei ler ainda? Posso apenas ficar a ver o mundo pela janela. Há tanto que já nem pela janela espreito o mundo lá fora. Conseguirei ainda perceber o que distrai as pessoas à janela?

By Lee Friedlander

Talvez organize, finalmente, as nossas fotos. Poderei transformar de novo a sala em sala e o quarto pequenino em escritório ou quarto de visitas. Isso. Um quarto de visitas. Não para ti. Para ti esse lugar já existe no meu coração, para quando me visitares em sonhos. Fá-lo-ás, certo? Não o faças já amanhã. Deixa-me dormir até mais tarde. Acho que preciso, mas se tiver de ser, vem, sem problemas. Não terei o quarto pronto, mas já dará para ficarmos juntos como sempre, na antecâmara do desassossego, enquanto tudo não sossega. Vou finalmente emoldurar a tua raqueta de ténis e pendurá-la por aí. Arejar a casa, sem dúvida, numa corrente de ar épica, capaz de me levar também pelos ares ou, pelo menos, de me reoxigenar o peito poluído pela dor. Depilar-me, talvez… Não. Odeio depilar-me. Marimbo para os pelos.

Com o treino que já tenho, poderei fazer voluntariado, o que te parece? Falo ainda para dentro, recriminando-me por o meu pensamento se adiantar às horas. Ainda aqui estamos, a viver as nossas preciosas últimas vezes, não devia desperdiçá-las em futurologias insanas e precipitadas. Como se me fosse urgente avançar no tempo e deixar já tudo isto para trás. Este presente é já tão doloroso e passado que a mente, voraz, imagina já o amanhã. Um amanhã sem nós. Apenas eu. Que estupidez! Ainda temos a última vez. Vamos aproveitá-la. Será mesmo possível? Tentamos? E se dançássemos uma última vez? Deitados, lado a lado, pois claro, pela última vez! Consegues? Tens vontade? Podemos permitir-nos isso, com uma das nossas músicas, ou apenas com elas na cabeça e um suave trautear na língua. Queres? Podemos tentar. Podemos chorar agarrados também. Fingir que o toque dos nossos hálitos é um beijo. Que o teu stock de sopros vitais é infinito ou recarregável. Podemos…

A última vez dói demais. Será mais ou menos dolorosa do que a primeira vez depois dessa última vez? Será mais doloroso este último momento contigo, ou o primeiro sem ti? Amanhã saberei.

 

 

 

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