Ali, no meio do nada, escondida numa cabana de pastor abandonada, onde o cheiro do campo se misturava com o da urina, com que as paredes pareciam ter sido pintadas, Cachinhos de Ouro não conseguia ter medo. A adrenalina da fuga incendiava-lhe uma nervosa felicidade e colocavam no palanque da sua mente a voz estridente e histriónica do autoelogio. Como era esperta e destemida, temerária e estratega. Não havia pai para si. Quer dizer, haver havia, mas não sabia onde pararia esse moinante. Outro ser errante como ela, despegado de qualquer sentimento, descolado de qualquer afeto. Uma ave solitária e de rapina. Um caçador furtivo com olho para o bem alheio. Um sagaz oportunista. Com ele aprendera os rudimentos do ofício e algumas regras de ouro – nem podiam ser de outro metal – que ainda hoje lhe valiam a total liberdade de que dispunha, não obstante viver de furtos. Furtos será eufemismo, já que aquilo que permitia o seu soberbo nível de vida eram assaltos.

Furtam-se, em caso de necessidade extrema, desodorizantes ou maços de cigarros, em supermercados ou bombas de gasolina, respetivamente, e nada disso constava no seu curriculum, de gabarito internacional. A sua cena eram assaltos. A sua predileção, joalharias. Daí que, entre o louro natural da sua sedutora cabeleira, o aclarado do sol durante os meses de praia, e as madeixas com que reforçava tudo isto e ainda a paixão pelo ouro amarelo, tenha achado por bem conceder, a si própria, o nome artístico –  sim, roubar é uma arte, a oitava, mais concretamente – de Cachinhos de Ouro. Além de que, tal como na história, ursos nunca tinham faltado na sua vida. Começando pelo já referido pai, conhecido no meio como Lourenço das Canárias – não que alguma vez tivesse posto os pés naquelas ilhas espanholas, mas porque tinha roubado uma coleção de canários, em seu entender todos fêmeas, que lhe tinham rendido uma boa maquia e cujo elaborado plano para  conseguir tal golpe era digno de filme, que qualquer Brad Pitt se disporia a protagonizar a troco de nada, apenas pelo prazer de poder fazer de conta que era o lendário Lourenço das Canárias, que acabaria por ser apanhado por culpa de um infeliz jogo de palavras. Reza o ‘diz que disse’ que, na cidade de Olhão, em plena e chiquíssima Côte D’Azur algarvia, quando lhe perguntaram se queria que lhe trouxessem o cardápio, exasperou-se, achando que o empregado lhe chamava larápio, e desbroncou-se todo. Na mesa ao lado daquela onde trincava um pires de tremoços e mais outro de alcagoitas, petiscava um grupo de GNR’s e, o resto é história policial. Foi a partir de então que Cachinhos de Ouro reviu as regras de ouro do pai com esmerada atenção.

Regras de ouro do pai:

1 – Roubar, sempre, principalmente quando não faz falta, já que a ausência de motivo funciona a favor de um gajo

2 – Não confiar em quem quer que seja, nem mesmo em nós próprios quando bêbedos (pedir a alguém exterior que faça essa verificação e rezar para que lhe demos ouvidos)

3 – Trabalhar sempre sozinho, exceto quando é preciso estabelecer sociedades

4 – Bagaço, só nacional

5 – Não confiar em suíços, nem mesmo nos canivetes (a mãe de Cachinhos havia fugido com um belga, mas como as noções de geografia de Lourenço das Canárias eram, como dizê-lo, inexistentes, vá, não gramava estrangeiros que vivessem para lá de Espanha. A isso acresce o facto de ter partido um dente a palitar-se com o palito de um dos referidos canivetes e, tudo junto…).

6 – Não fumar enquanto se espera para fazer o trabalhinho, a não ser que se esteja mesmo muito nervoso, “por causa do ÁDêNê”, costumava dizer

7 – Não comentar com mais de dez pessoas o plano antes de ser levado à prática, nem com mais de 20 após boa execução. É sabido que todos os amigos têm amigos

8 – Não comentar com mais de cinco amigos os lucros obtidos em cada golpe

9 – Usar sempre uma peça de roupa muito suja, para dar sorte

10 – Não usar outras regras que não estas (porque se estava a acabar o papel em que escrevera esta sua bíblia dedicada à filha, num momento de enorme fragilidade emocional: provava a melhor bifana da sua vida, numa qualquer feira de artesanato do país)

Cachinhos de Ouro tinha para si, outras normas:

1 – Ter o cabelo sempre impecável. Uma mulher bem apresentada tem 80% menos de hipóteses de ser considerada suspeita

2 – Nunca sair de casa sem um soutien que condissesse com as cuecas, não fosse acabar a noite a ter de mostrar ambas a um estranho, fosse num quarto decente, num hospital ou numa cela. O desleixo não compensa

3 – Na dúvida, comprar

4 – Nunca andar de gaivota em Sagres, diz que dá azar

5 – Nunca teimar seja o que for durante mais de dois, três dias, cinco no máximo

6 – Jamais confundir felacio com felicidade. O bom domínio do Português é sagrado e muito útil

7 – Não confundir frisa com frisa nem com frisa. A primeira significa ondular, riçar, a segunda é um camarote quase ao nível da plateia, e a terceira é reforçar uma ideia. A primeira emprega-se em cabeleireiros, a segunda no teatro e a terceira onde e quando calha. Gramática é fun-da-men-tal

8 – A pílula do dia seguinte só funciona no dia seguinte. Nunca tomar antes ou depois disso

9 – O tamanho importa, sim senhora, principalmente o tamanho da casa e da unha do dedo mínimo. Tal como importam a altura, o peso, a conta bancária, a cor do cabelo, o hálito, o guarda-roupa, a dentição completa, o seguro de vida, hábitos de higiene, modos à mesa, cor preferida, tipo de preconceitos, número de amigos no Face… Tudo importa

10 – Nunca, mas nunca mesmo, deitar-se com maquilhagem

Esta era a sua infalível check list. A versão básica e abreviada, bem visto, já que muitos outros mandamentos a mantinham à tona de água, assalto após assalto. Guardar todo o ouro que tinha no próprio corpo seria a pedra basilar do sucesso. Não era por acaso que se batizara de Cachinhos de Ouro, e que a parca cabeleira com que iniciara a vida de meliante se traduzia agora em pesados cachos do precioso metal. O que funcionava igualmente bem a favor da sua forma física, já que o peso que carregava no cabelo a mantinha tonificada sem grande necessidade de ginásios ou cenas detox que tanto nojo lhe causavam.

Acendeu o cachimbo, de ouro, como é fácil de imaginar e tirou real prazer daquela primeira baforada. Tinha de encontrar um local seguro para transformar em dreadlocks todo o ouro do assalto da véspera, obtido numa carrinha de transporte de valores, de alta segurança, a troco de algum teatro e dois simples e bastante curtos felácios. Pensava como lhe era útil aquele seu look de cantora pimba a caminho de um qualquer programa da tarde de fim de semana. O bicho homem é mesmo muito básico. É só preciso falar-lhe à cueca e, é ver uma dúzia de barras de ouro a engrossarem a sua farta cabeleira. Tinha-se embrenhado naquele pinhal, onde descobrira o casebre onde pernoitava, porque já tinha debaixo de olho uma casa ensolarada, com tantos anexos que poderia lá passar alguns dias sem ser vista pelos proprietários, cujos movimentos, que observara nas duas semanas anteriores, lhe diziam que teria, agora, três dias de total solidão para derreter as barras e transformá-las em belos caracóis.

 

Experiente na coisa, sabia que a noite não é indicada para entrar numa casa, mesmo que não tenha habitantes. O óbvio é sempre mais óbvio – e esta era outra das suas regras de platina. Entraria pela porta principal, com malas de viagem e o ar mais fresco e airoso que conseguisse, após uma noite a snifar urina de pastor. A quem estiver a ler isto com algum interesse futuro, esqueçam o pé de cabra. Uma pedra é o melhor. Caso se seja apanhada, é-se a prima em quadragésimo grau, e que, após longa viagem, não aguentava para ir à casa de banho e teve mesmo de forçar a entrada, antes de ligar aos tios para que lhe enviassem alguém para abrir a porta.

Na manhã seguinte, já com a exuberante e espalhafatosa cabeleira de ouro sobre a cabeça e ombros – sim, já tinha um apoio de ombros para suportar todo o peso – lá entrou pela porta da frente. Nem precisou de pedra para partir o vidro da metade superior da porta, pois, como faz sempre, meteu a mão ao trinco e, voilá, a porta estava aberta. Como gostava das gentes simples do campo. E que gira que era a casa! Ensolarada, bem decorada, asseada, arejada e mais uns quantos ‘adas’ que já nem se deu ao trabalho de enumerar. Foi ao carro, buscar as valises. De uma delas retirou o maçarico, com que moldava o ouro depois de derretido. Tinha um kit que depois de montado – uma coisa que se montava em três passos e que adquirira no exclusivo e secreto site Thieffes’R’Us – se transformava numa pequena fundição. Dava pelo nome de Áurea e era tão (en)cantador quanto a cantora. Ah, como adorava a vida no campo. Da sua necessaire retirou os produtos de higiene e foi escolher um quarto, para se instalar. Gostava de se sentir em casa e é sabido que tal só acontece quando elegemos uma casa de banho. Uma delas era demasiado grande e, virada a norte, percebia-se que seria húmida e fria. Uma outra, de tamanho muito simpático e uma decoração a-do-rá-vel era, todavia, demasiado inóspita. De tão minimal e com um perfil tão high-tech que preferiu procurar outra. A terceira que encontrou era a sua cara. Nela havia espelhos em número caleidoscópico, banheiras vintage, brilhos de diamante, frisos –  sabem o que são frisos, certo? Porque se param de ler isto para ir ao Google, nunca mais daqui saímos. Aqui fica a explicação: na arquitetura clássica, é um espaço compreendido na parte superior do entablamento, que separa a cornija da arquitrave –, continuando, nela havia frisos de ouro e um permanente aroma de lavanda. Estava mais do que decidido. Aquela era a sua casa de banho. Nem valia a pena procurar outra. Quando uma pessoa se apaixona não se questiona se haverá outro matarruano de que possa gostar mais ou não. Estar apaixonada pertence ao universo das coisas absolutas e não relativas. Não se entra em comparações. Isso apenas acontece depois, quando tudo dá errado. Aí, sim, comparam-se burgessos. Ah, aquele era mais asseado, mas o outro, em contrapartida, não arrotava a cada cinco minutos… Já se percebeu, não é?

Bom, uma vez instalada, lá colocou seu nano-aventalinho de linho arrendado sobre um sólido fato de macaco de látex coleante, máscara de apicultor estilizada e lenço rosa choque a tapar toda a farta cabeleira, para evitar que alguma fagulha lhe derretesse o cofre móvel que era o seu cabelo. Uma rápida avaliação a materiais de construção, isolamento e tom de parede, levou-a a optar pela cozinha para montar o seu estaminé e lá se meteu a fundir aquilo tudo que tinha roubado na véspera. Amiga de trabalhar como poucas, nem percebeu que um jovem garboso – muito ao estilo James Bond, deixem que vos diga –, a observava naqueles preparos de ferreiro, com um certo olhar lascivo. Quando se apercebeu da presença do jovem homem, Cachinhos manteve a postura e, no papel de prima afastada, cumprimentou-o efusivamente dizendo-lhe que, a fim de compensar a estada no solar, já estava a preparar uma das suas míticas fatias douradas em caldeirão quente e infusão de ‘cenas’. Guloso, o mancebo apressou-se a dar-lhe as boas-vindas e a anunciar que estava já cheio, cheio de fome. Mandou-o pôr a mesa a preceito, e recomendou que não voltasse ali antes de passadas duas horas, já que a infusão de ‘cenas’ era tarefa delicada e perigosa, pois metia azoto e mais alguns litros de não sei o quê. Tudo muito volátil, acautelou.

Livre do estafermo, que, lá bem no fundo, agradava a Cachinhos de Ouro, pelo ar de ursinho de pelúcia malvado, continuou no árduo processo de transformação das joias em fios de ouro. Nisto, outro intruso. Desta vez, uma intrusa, a avaliar pela voz aguda e anasalada que já tagarelava junto de si.

– Ah, minha querida, além de fatias douradas também sabe fazer fios de ovos? E no ponto? Mas que prima tão prendada. O menino Adérito já me tinha dito que estava aqui uma prima, apenas não me disse como era prendada e simpática. Ainda bem que aceitou o convite para nos vir visitar. Não sei quem a possa ter enviado, mas foi em ab-so-lu-ta boa hora. Mas continue, darling, continue. Uma vez que já está na sobremesa, imagino que o almoço estará pronto em breve, correto? Vou-me refrescar e desço para o almoço logo que a chérie anuncie. Que me diz, daqui a uma hora, na sala verde, para um porto caliente?

A voz estridente daquela cinquentona desempoeirada era acompanhada por lânguidos olhares que percorriam todas e cada uma das curvas de Cachinhos de Ouro e piscadelas de olho incandescentes. Por qualquer razão que não descortinava, aquilo até lhe agradava. Mas que gente tão ex-tra-or-di-ná-ri-a. Riu-se, pois, tal como ela, também aquela ursa maior sabia separar sílabas, dominava línguas estrangeiras e tinha apreço por um correto português. Estava a ficar enfeitiçada por aquela família e todo aquela à-vontade e exotismo, já para não falar na forma como parecia demasiado fácil passar-lhes a perna, o que até poderia ter de ser literal, mas até isso a excitava, para usar de franqueza.

Nada de distrações. Estava ali com o tempo contado e era preciso terminar aquela extenuante tarefa de fundição, antes de avançar para outros cenários. Ocorreu-lhe ainda que teria ainda de fazer o raio de fatias douradas e fios de ovos para aquela gente, para não levantar suspeitas. Enfim, uma coisa de cada vez. Estava prestes a dar o trabalhinho por terminado quando, atrás de si, percebe o forte pigarrear daquele que deveria ser o pai urso. Já tinha conhecido o filho, a mãe, era chegada a vez do pai. Sabem que mais? Not bad! Not bad at all! Enxuto, bronzeado, um grande físico… Estava encantada com a genética da família. Estava perante um bom ÁDêNê, como diria Lourenço das Canárias. Seria difícil eleger um de entre aqueles três incríveis espécimes, pensava. Quanto ao almoço, ia já descalçar aquela bota.

– Tio!!! – choramingou – queimei a sopa dourada, as fatias douradas e os fios de ovos. Tudo, tudo arruinado.

Terminou a frase já num choro compulsivo que enterneceu aquele grande urso paternal.

– Ó minha querida, mas quem é que está interessado em almoço? Podemos até substituir a refeição por outro tipo de atividade física, gourmet ou não, que lhe parece? Acabe lá com isso e venha cá ao colo do tio, enxugar essas lágrimas. Não queremos pessoas tristes aqui em casa. Pronto, pronto! Mais calma?

Enroscada naquele gigante e fofo colo, Cachinhos sentia-se realmente calma. Aquilo era melhor do que meditação, ioga, reiki e pastilhas gorila tudo num só. Não fora a sua vida aventureira e o seu espírito selvagem e estaria ‘dispostíssima’ (a língua portuguesa que desculpe a liberdade, mas somos por todas elas, como é sabido) a ser adotada por aquela adorável família de gente gira.

– Então, minha pequenina, o colo do tio Adérito Sénior não é aconchegante?

– Por acaso. Estou muito melhor. Deixe-me só recompor-me, retocar a maquilhagem, dar um jeito no cabelo, bochechar com elixir bocal, tirar as cuecas da ‘gaveta’, e jogar um breve solitário de cartas que já me encontro convosco na sala para um aperitivo. Pode ser?

– Claro que sim, douradinha do tio!

E agora? Que fazer? Deixar-se adotar, amornar os seus instintos matadores e aburguesar-se naquela casa de afetos e enorme tensão sexual? Ou partir sem olhar atrás, antes de se envolver mais? A casa de banho era fantástica e ainda lá tinha a necessaire. Mas não seria que lhe estava a ser dado de bandeja tudo aquilo com que sonhara? Partiria. Não podia viver presa fosse ao que fosse, mesmo que fosse bom e desejável. No entanto, não esquecia o desejo do menino Adérito, a lascívia da ursa maior, menos ainda as coxas musculadas de Adérito sénior…

A meio de todas estas dúvidas e incertezas, e já com o kit Fundição de Ouro desmontado e guardado na maleta, não maior do que uma mala de mágico ambulante, entram os três ursinhos pela cozinha, agora já limpa, desimpedida e de volta à sua vocação principal.

– Darling!!!! Sei que está transtornada com o insucesso culinário – gritou mãe ursa.

– Decidimos que a prima merece uma bela refeição, como recompensa por toda a trabalheira e indemnização pelo fracasso. Conheço uma marisqueira fa-bu-lo-sa…

Cachinhos já mal ouvia, tal era o entusiasmo por aquela gente tão ex-tra-or-di-ná-ri-a. Tinham coração de ouro. Aquele priminho, então!!!!!

– Antes, temos apenas de passar pelo escritório. Esqueci-me lá de uns documentos.

O aviso era do ursão Adérito. Estava rendida. Deixaria a vida de assaltante. Via os maiores encantos numa vida com eira e beira e, aquela casa de banho era mesmo a sua cara. Implicaria isso algum nível de libertinagem sexual? Uma coisa comunitária? Não via mal nisso. Nunca fora de falsos pudores ou preconceitos de qualquer ordem. Logo, não via impedimentos a assentar junto daquela boa e sofisticada gente.

– Por mim, vou convosco até ao fim do mundo. –, disse com alarde Cachinhos de ouro num tom de voz que soou a a-do-rá-vel aos ouvidos singelos da família de acolhimento.

– Ótimo, ótimo – avançou o pai urso –, mas não precisamos de ir tão longe, basta que paremos na vila, logo no final da estrada, é onde fica a nossa loja, um negócio que está na família há mais de um século. Já ouviu falar na cadeia de ourivesarias Adérito!?

Mentira!

 

Moral da história:

Abracemos de coração aberto aquilo que a vida nos dá e sejamos gratos. Estou a gozar: o que importa mesmo é fazer pela vida, seja ela qual for, e saber arcar com as consequências.

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