No dia em que, regressado de um ano semi-sabático pela vasta galáxia do estrangeiro, Gustavo Cipriano aterrou no aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, estava um calor abrasador. Para cima de 40º C, pareceu-lhe. Ainda que não chegasse a tanto, sobravam graus de calor para as botas de montanha que trazia calçadas. Um hábito de viajante do qual já não conseguia ou desejava livrar-se, além de que lhe dava aquele ar misterioso e muito cool, de aventureiro sem terra ou destino. Eram a sua imagem de marca. E quanto mais gastas, mais charme lhe conferiam. Gostava disso. Não era o único.

Bem percebia que a sua imagem era uma bem-sucedida chave de aposta múltipla na mesa de jogo da atração sexual, e em todas as direções que os caprichos do Cupido almejassem. A vida tinha-o ensinado a não ser esquisito, preconceituoso ou intolerante, nem a perder tempo a escolher. Isso ia bem com a sua natureza experimentalista e com aquela capacidade, típica dos mais desenrascados, de conseguir tirar partido e o máximo de prazer de tudo o que cruzasse o seu caminho. Esta a versão romantizada. Bem mais prosaica e boçal era aquela que encontrava justificação no seu desmesurado ego, na sua colossal egocentricidade, incapaz de aceitar que alguém no planeta, homem, mulher, ou qualquer outra opção de permeio não pudesse desejá-lo.

Uma vaidade galvanizada no propício terreno da autoajuda, uma cartilha onde tinha encontrado fertilizantes que, em pouco tempo, o tinham transformado no guru do momento. O deus do ame-se a si próprio… desde que pague entrada para me ouvir. O mestre do marketing pessoal. Debitava frases feitas e ocas à razão de 253 por minuto. Não é um número ao calhas, Gustavo Cipriano tinha já cronometrado e o número dava mesmo título a um dos inúmeros livros que já publicara sobre a autoconstrução do eu pós-moderno, numa era de vazios e virtualidades. Chama-se o bestseller: ‘253 Frases Num Minuto de Lucidez que Mudarão a Sua Vida’. Quanto à vida dos leitores, não há estudos credíveis, mas quanto à vitalidade financeira do autor, o livro foi o ponto de viragem da sua conta bancária, cujo saldo, que de altamente negativo passou a estupidamente positivo, num qualquer destino financeiro paradisíaco.

À conta daquela que era já considerada a bíblia da banha da cobra, Gustavo Cipriano corria, agora, o mundo. De palestra em palestra, sempre com camisas de xadrez desabotoadas, à laia de casaco, t-shirts invariavelmente brancas ou azul-escuras, jeans e, claro, as suas botas. Salas lotadas de baixa autoestima, divorciadas on fire, mancebos gay ou apenas malsucedidos no amor ou no trabalho… Um filão que, alegre e impunemente, desbravava, no meio de uma feroz concorrência. Sim. Parece que o negócio das botas desportivas e look cool, bem envoltos em frases feitas por outros, nulas de conteúdo ou real propósito, apenas bolsas de oxigénio temporário para gente triste – e o mundo está tão cheio de gente triste –, era um métier muito concorrencial, na medida em que, num universo nonsense, as gentes deste planeta andam sequiosas de coisas com sentido e nisso acabam por incluir até o que não tem sentido.

Parece complexo, mas não chega sequer a ser complicado. As gentes estão estupidificadas ao ponto de já não distinguirem aquilo que é estúpido. O próprio Gustavo Cipriano não era um iluminado. A única luz que tinha era a da app gratuita de uma lanterna, a qual poupava por lhe sugar demasiada bateria ao telemóvel de última geração, ou algo equiparado. Também não se pode dizer, sem falhar a verdade, que fosse completamente desprovido de inteligência, ou, melhor, de um seu sucedâneo muito mais eficaz: esperteza. Era engenhoso e ludibriador. Com meia dúzia de golpes certeiros viciava as suas vítimas na droga que melhor sabia vender: o faz de conta que podemos ser felizes não obstante a insignificância. Um feito miudinho quando comparado com as técnicas de igreja e outro tipo de andarilhos da humanidade, em nome dos quais, é a mais pura verdade, se cometem as maiores atrocidades. Assim, em termos de barbárie, a sua quota parte não era sequer maléfica. Apenas um esquema para ganhar dinheiro.

Por tudo isto e mais um par de botas, o seu par de botas, Gustavo Cipriano amava-se. Idolatrava-se. Era servo de si próprio. Devoto da sua imagem e sucesso. O Deus do autoconhecimento do Homem e sua contemporaneidade. Por vezes, nem ele próprio entendia ou escutada, sequer, aquilo que dizia, mas o prazer que lhe dava ouvir-se chegava a suplantar o das babadas audiências. Recipientes vazios que enchia de nada até transbordarem de coisa alguma. Que maravilha de receita. Que chorudo negócio. Todos e cada um deles crente de que lhes mudava a vida. E para melhor. Se assim era de facto, em meio caso que fosse, de que se podiam queixar as autoridades morais e as outras por arrasto? Isso mesmo. Igualmente de nada. Por isso, de nada se queixavam. Apenas criticavam. Apenas desprezavam. Acreditava Gustavo que apenas invejavam. A sua sorte. Não terem eles próprio chegado lá antes, lá onde Cipriano reinava. Mas com isso vivia bem Gato das Botas, como o apelidaram no criativo Brasil. Gostou do epíteto. Registou-o como seu e só seu.

Também ele vivia bem sem substrato, apenas com estas bolsas de oxigénio. Estes pedaços de idolatria. Além de que, que outra forma existe de medir ou validar o sucesso, senão pelo número de haters? Há coisas que não mudam. Esse tipo de bitola era uma delas. Eles que falem mal, mas eles que não se calem, que não parem de falar mal de mim. A seu favor e contra si, este Gato das Botas da auto(com)paixão tinha um único fator: a mentira. Estava-lhe de tal forma entranhada nos mais ínfimos redutos e interstícios da sua personalidade que era já um modo de vida, uma forma de verdade. O outro lado da coisa vivido em plenitude. De tal forma que, não raras vezes, e sem motivo específico, saiam-lhe da boca as maiores barbaridades, sem que o pudesse evitar. De início, por vezes, questionava-se sobre o porquê de ter dito isto ou aquilo, como quando referiu que era campeão europeu de triatlo. Um disparate pegado que facilmente seria desmascarado com uma simples busca no senhor-google-sabe-tudo, mas que não conseguiu deixar que lhe saísse boca fora. Valia-lhe a pouca exigência dos seus interlocutores, gente perdida nas suas próprias loucuras pessoais. Por conta desta diarreia mental, isenta de filtros ou qualquer outro controlo, vivia no maior corrupio familiar que se possa imaginar, com uma mulher em Lisboa, um amante-barra-marido em Espinho, uma amante semifixa em Abrantes e ainda, em Buenos Aires, uma porto-riquenha com quem tinha dois filhos e três enteados.

O espaço mental para organizar esta louca teia de afetos era obra e exigia dele homéricos esforços físicos. Lamentava apenas que as suas botas não fossem de sete léguas, para melhor e de forma mais rápida se organizar. Valia-lhe a sua agenda eletrónica bem organizada e pejada de auxiliares de memória, que lhe ia recordando nomes de sogros, tios, amigos e criançada da sua trama poliamorosa. O maior perigo vinha das redes sociais, às quais se dedicava com cuidados de neurocirurgião, a fim de não dar cabo de uma qualquer sinapse vital. Fotos, apenas das suas palestras, rodeado dos seus acólitos e fiéis seguidores, nada de fotos de comida no restaurante X com o amigo Y. Isso poderia representar o fim da grande e feliz mentira na qual tinha tornado a sua excitante vida. Também não permitia que os seus parceiros oficiais seguissem as suas páginas profissionais, alegando princípios éticos, não fosse dar-se o caso de cruzar amores em comentários que acabassem por ser reveladores de algo mais e, assim, comprometer o seu paraíso amoroso. Forreta como era, ainda teria de começar a pagar rendas de casa ou pensões de alimentos, coisa a que se furtava airosamente, referindo que todos os lucros que obtinha eram totalmente canalizados para caridade. Enternecedor, mas tão falso.

Agora que pisava o solo da grandiosa capital lisboeta, e já acionada a cábula que lhe recordava todos os detalhes da sua vida nestas paragens, ia-se congratulando por tanta perícia e argúcia. Ao entrar no táxi, e atestando o facto do planeta ser uma ervilha, dá de caras com um dos cunhados porto-riquenhos, e logo aquele que tinha ligações aos cartéis de droga colombianos, de quem se dizia ser um ‘estafeta internacional’, ou seja, um dos que fazia o produto chegar além-fronteiras. Entre o choque da sua presença em Portugal, mais ainda ao volante de um táxi, o receio de lhe dar a conhecer a sua morada e a necessidade de se mostrar feliz e radiante com a presença de Pablito – assim se chamava, como rapidamente descobriu na sua agenda dos aflitos –, Gustavo não resistiu a um enfarto do miocárdio.

Graças aos céus, pois assim foi encaminhado para o hospital de Santa Maria sem ter de revelar desconforto nem ter de inventar uma falsa morada. Quando abriu os olhos, em plena hora de visita, Pablito olhava-o entre o enternecido e o irritado. Afinal, contava com Gustavo para criar um disfarce blindado em Portugal, sob a asa de um conhecido orador de cenas que o porto-riquenho desprezava, não apenas por achar que nada diziam ou acrescentavam, como de nada serviam para pôr pão na mesa da irmã. Melhor eram as suas drogas. Sempre alienavam quem as consumia e enriqueciam quem as vendia. Era uma situação win-win, como lhe explicaram os seus recetores norte-americanos.

Mais assustado por ver Pablito do que por tomar consciência de que não era imortal como sempre achara, Gustavo Cipriano, reinventou-se ali mesmo. Disse a Pablito que tinha de lhe confessar algo. Que ele tinha de lhe prometer que o que ali seria dito ficaria entre os dois. Que era um elemento da CIA. Que tinha sido recrutado por ser o filho secreto do anterior rei butanês, cuja fortuna herdaria quando revelasse a sua verdadeira identidade, deixando o atual rei na miséria e sem trono. A CIA dispunha-se a ajudá-lo a repor a verdade política e familiar dos factos no Butão, caso ele cooperasse no desmantelamento internacional do grande cartel de Chelas, com quem Pablito tinha negócios. Gustavo percebeu rapidamente que estava a perder Pablito e percebeu que tinha de lhe explicar a diferença entre Butão e botão.

Fez bem, Pablito já não ria a bandeiras despregadas. O enredo, que nem Agatha Christie regada a gin teria conseguido acompanhar, prosseguiu. Pablito, estarrecido, escutava-o pela primeira vez, tentando avaliar se deveria forçar, ali e agora, um segundo AVC ‘natural’, ou se valeria a pena aguardar pela fortuna do Butão. A avaliar pelo nome, deveria ser um país bem pequeno, já que nem merecia o nome de fivela, mas sendo da zona árabe, com petróleo e tudo isso… Aguardaria. Nisto, entra a sua mulher lisboeta, esbaforida, pelo quarto adentro.

Esta es mi contacto portugués de la CIA – explicou entredentes ao cunhado.

– Qual quê?! Sou a tua mulher. Não me reconheces?

– Não entendes que estou combalido? – replicou Gato das Botas, sem perceber que tal observação jamais deveria vir do próprio. A Pablito disse baixinho, que o ‘casamento’ era o disfarce entre ambos, para evitar suspeitas de maior. Pablito já pesquisava Butão no seu motor de busca e saiu do quarto, para falar com o seu cartel. A mulher de Gustavo, enternecida com a história de um taxista com coração que tinha acompanhado o marido naquela hora de aflição, saiu no seu encalço para recompensar o homem.

Nisto, o marido de Espinho entra pelo quarto a gritar pelo seu homem, todo ele Chanel e Hermès, pois um dos seus melhores amigos estava de banco no hospital quando reconheceu Gustavo e avisou o dedicado amante. Gato das Botas, perto da apoplexia sentia-se sem forças, mas lá foi mentindo sem travões. Disse ao amante que não gostava que ele o visse em tal estado de dependência. Que queria ser para ele o herói de sempre e que não suportava a ideia de ele o ver numa cama de hospital. Ele que aproveitasse estar em Lisboa e fosse finalmente ao Finalmente. Isto entusiasmou o marido de Espinho, que logo saiu para ir comprar uma toilette mais adequada à saída noturna, já que lhe faltava a dose certa de glitter. Ainda voltou atrás para, com dramatismos de viúva, meneando a cabeça para trás, enquanto encaracolava a écharpe que trazia ao pescoço, anunciar que brindaria ao amor de ambos, não apenas no Finalmente como também no Trumps.

Gustavo, aterrorizado, pensava para si que só faltava aparecer a de Abrantes. Não faltava, ela surgiu de cadeira de rodas, com um bebé nos braços. Tinha acabado de dar à luz o primeiro filho de ambos, uma surpresa que tinha guardado para o regresso de Gustavo a casa. Surpresa era dizer pouco, dadas as reais circunstâncias, mas essas ela desconhecia. Logo que ouviu nas notícias que o guru Gustavo Cipriano estava no mesmo hospital, para onde tinha sido encaminhada devido a complicações no final da gestação, tudo fez para chegar a ele. Gato, num rasgo de desespero, fingiu desmaiar. Vieram médicos e enfermeiros, que logo afastaram a parturiente, ralhando que ali não era o seu lugar, nem sequer o seu piso. Que aquele não era sítio para um recém-nascido… Assim que percebeu que a de Abrantes já lá não estava, Cipriano começou a planear a sua fuga. Pediu que chamassem a sua mulher de Lisboa, que deveria estar no corredor. Tinha de ir para casa. Lá, logo montaria o seu plano de fuga, agora que todo o seu mundo estava colado com cuspo, preso com alfinetes que nem sequer eram de ama.

Acontece que todos se encontravam ainda no corredor, em amena cavaqueira, suscitava pela enorme coincidência de todos terem um familiar em apuros no mesmo quarto. Foi então que perceberam, todos menos o marido de Espinho, que apenas havia um paciente naquele quarto.

– Quer dizer que somos todos da mesma família? – perguntou o de Espinho.

– Quer dizer que todos herdarão a fortuna do Butão? – questionou o de Porto Rico.

– Quer dizer que Gato não é o pai do meu filho? – indagou a de Abrantes, ainda atordoada por causa da anestesia geral da cesariana.

– Quer dizer que todos estão presos – afiançou a de Lisboa, anunciando-se como espia internacional de alto gabarito.

Todas estas questões soavam ainda no ar quando Gato das Botas surge no limiar da porta do seu quarto, armado até aos dentes com algumas das suas melhores armas: banha da cobra, mentiras e ar de guru de chalupas.

– Não percebem que o caminho se faz caminhando? Que quem quer ir rápido vai sozinho, mas que quem quer ir longe vai acompanhado e que vocês foram a companhia que elegi para chegarmos todos mais perto dos nossos sonhos? Quero que percebam que os reuni propositadamente aqui, hoje, para vos dizer o quanto vos amo e dependo de todos e cada um de vocês?

A de Abrantes descartou-se logo, dizendo-lhe que apenas estava com ele por ter descoberto que estava grávida e não ter ideia de quem era o pai. Apenas a viver do rendimento de inserção, tinha-se agarrado a ele por saber que era totó suficiente para acreditar que a criança era sua. Mas se era para começar com histórias complicadas e de bradar aos céus, mais ainda se tinha de levar com ele a tempo inteiro caso se refugiasse em casa com medo de ser preso ou morto, por Deus, preferia estar só.

O de Espinho, homem do Norte, foi avisando que nada nem ninguém interferiria numa tarde de compras inesperada, pois daí resultam sempre os melhores achados, além de que começava a interessar-se soberanamente pelo másculo Pablito.

Pablito informou que apenas estava em Lisboa para receber a droga que o idiota trazia na bagagem. Estratégia que tinha montado com a falsa irmã – na verdade, sua mulher há mais de uma década e mãe dos seus cinco filhos (sim, nenhum era de Gustavo Cipriano) – há já três anos, uma vez que o idiota das botas de montanha, por ser conhecido, nunca era parado na alfândega.

A de Lisboa, ciente de todo esse esquema à escala mundial, revelou que apenas tinha seduzido o parvalhão do pseudoguru e com ele contraído um falso matrimónio, para chegar ao cartel de Chelas. A sua missão estava cumprida.

O das Botas desmaiou. Tinha pela frente uma longa recuperação mental e toda uma vida para refazer, ciente, agora, de que para ser diferente, não podia limitar-se a mentir. Isso já todos os outros faziam há bastante mais temo e de forma mais eficaz. Dedicar-se-ia à verdade. Mas seria a verdade igualmente lucrativa? É verdade, tinha de comprar umas botas novas, as suas já lhe magoavam os pés. Será que o de Espinho, já que estava em mood compras, lhe poderia tratar disso? Ou seria tudo isto o enorme sinal divino de que deveria arrumar as botas? Ná. A ser verdade, seria uma grande mentira, certo?

Moral da história:

A verdade é apenas aquilo em que acreditamos. Os tolos, devido ao seu lato voto de fé, acreditam em mais verdades do que os outros. Independentemente de tudo o resto, botas de montanha são mesmo cool.

Partilhar