Depois do muito celebrado Cavaleiro da Dinamarca, o seu primo norueguês, também ele garboso cavaleiro de andanças por este mundo fora, que outro mundo ainda está por descobrir, relata, aqui e em exclusivo, a sua história. Prontos? Ora, então, aqui vamos nós a trote rumo a esse magnífico, surpreendente e relaxante relato de aventuras mil deste bravo ginete.
Ginete, já agora, é um substantivo masculino antepassado do bem mais comum cavaleiro, mas como tudo isto aconteceu antanho, a opção foi escorreita e muito óbvia. Cavalguemos, então, por esta planície de absurdos e outros tantos substantivos e adjetivos à altura da empreitada. Vamos ver se conseguimos.


Ginete era um encantador homem de muitas mulheres. Não o julgueis antes de tempo, que cada um faz o que pode e outro tanto do que não devia em busca de uma réstia de felicidade, num mundo padrasto e pouco gentil. Tudo começou na Reboleira, terra de grande movida na épica e muito mundana era medieval e onde se solicitava, em anúncio que correu o país, um desenvolto almocreve. Logo na primeira entrevista para o dito emprego, Ginete soube que o lugar era seu. Percebeu a boa impressão que tinha causado na equipa de recursos humanos que, em vão de escada, o tentavam rasteirar com perguntas complexas. Esgueirando-se com habilidade, lá foi evitando o esconso do escaleno espaço, o que, por si só, fascinou os interlocutores, todos eles com proeminentes galos na cabeça, num claro sinal de menor destreza. A fim de enfeitar o seu CV, inventou a frequência de cursos, residências e workshops de venda ambulante, o que fascinou tanto os mais académicos como os mais empíricos. O fator decisivo, mas isso jamais Ginete o descortinaria, foi um falso dado que deu inadvertidamente na ficha de inscrição, fruto de um péssimo português. Onde Ginete escrevera nora-do-goês, nome pelo qual era conhecida toda a sua filiação materna, fruto de uma avó que se tinha amantizado com um indiano de Goa, os também pouco letrados recrutadores de almocreves tinham celeremente lido, imagine-se o delírio, norueguês. Um fator coadjuvante que os levou a considerar o básico vocabulário de Ginete, como resultado de ainda não dominar a língua lusa, toda ela tão complexa para quem chegava de tão longe. Pensaram ainda que, quem percorre toda a Europa e termina no beco sem saída terrestre que é Portugal, só podia ser bom cavaleiro. Tão bom quanto o da Dinamarca, o qual, num rasgo de atrevimento Ginete disse ser seu primo. O que, a bem da verdade, não era assim tão erróneo. Tinha, de facto uma prima Dina, casada com um tal de Marco, que o sotaque algarvio, sem cerimónias ou avisos prévios, transformara em Marque – já que todas as palavras a sul têm obrigatoriamente de terminar em E, o que ainda hoje se verifica, principalmente enquanto se bebe ‘vinhe’ ao ‘almôce’. No fundo, o que Ginete pensou genuinamente é que falariam do mesmo ‘individe’, o qual também montava a cavalo, ou a burro, conforme o equino a que conseguisse deitar a mão. Foi, portanto, a prima DinaMarque quem todos ludibriou.


Foi assim que Ginete deu por si a ser um homem de carreira, percorrendo os mesmos caminhos de sempre e outros de nunca antes, para cá e para lá, num tempo em que cada viagem demorava uma vida curta. Compreendem agora a necessidade de carinho que o levava a esbanjar afeto com mais do que uma família. Ainda que sendo um tipo boçal, mas muito ciente do seu elevado estatuto social, já que dele todos dependiam para saber notícias de outras terras e para adquirir produtos de outras zonas do mundo, Ginete não era completamente desprovido de moral e era até, de quando em vez, acometido por alguns ímpetos de fé e religiosidade, os quais contrariava como podia, por norma, arranjando nova mulher com quem pecar. Um dia, porém, ao chegar a três aldeias próximas e percebendo que as companheiras que por lá tinha deixado tinham dado à luz filhos seus, teve uma espécie de rebate de consciência e, imaginando todo o lastro genético que deveria andar a deixar por esse mundo, entendeu que deveria saldar, ou, pelo menos, amenizar a sua dívida e também a sua dúvida com Deus, num teológico e económico tête-à-tête com a divindade.
– Vou a Lurdes, ou vou a Fátima, ou vou antes a Meca, que dizem ser também muito bonito e exótico nesta altura do ano…
Indeciso sobre qual o melhor destino turístico religioso, optou por ir a Canal Caveira comer um belo cozido. Quem sabe, de barriga cheia, não pensaria melhor na opção mais adequada aos seus níveis de fé? Porém, não teve tempo para isso. Deu de caras com um alcaide muito espirituoso e homem de prosa fácil com quem, de pronto, encetou animada conversa. Por ele, ficou a saber de uma jovem donzela, presa a um mísero casamento, que necessitava de uns trabalhos de marketing digital e, porque nunca tinha virado a cara a um desafio, principalmente na área que melhor dominava, o marketing, fosse ele analógico ou digi-qualquer-coisa, lá comeu o resto do cozido em meia dúzia, ou mais de dentadas e correu a salvar a pobre mulher. Seria mais um pecado, mas considerou que não deixava de ser também um bocado parvo perder a oportunidade de esgrimir o seu know how.


Acabou por ser um ótimo desvio, já que a santa mulher, devota dos sete ou oito costados lhe falou no maior desejo da sua vida: ir a Santiago de Compostela, peregrinar a sua má fortuna guiada pela via láctea e, no final, além de lavar a alma, ainda poderia visitar a sua irmã gémea. Era um dois em um, conta fácil de fazer até pelo simplório cálculo matemático do Ginete da Noruega. Um, já tinha destino para a sua peregrinação. Dois, tinha agora planos sobre o local onde pernoitaria e tudo numa única viagem. Como, pelas suas considerações geográficos, estaria a ir de sul para norte, porque não acrescentar mais uma parcela à anterior conta e visitar Fátima? Há tanto tempo que não visitava aquela magana. Um diabo de mulher, e oferecia o melhor pernil à Guarda. À cidade e à republicana, que não era mulher de discriminações tolas. Isto quando se tem uma porta aberta ao púbico… perdão, ao público, há que mimar todo o tipo de clientela, que o dinheiro é todo igual.
Já perto da Covilhã, que nem sempre o caminho mais perto é aquele que vai a direito, Ginete da Noruega pernoita num endiabrado casebre frequentado pela mais diversificada fauna. Um mercador de Veneza, todo ele brocado de seda e halitose, diz ter segredos de alcova que dariam três longas-metragens, se elas já existissem à época, e só essa projeção futurista já interessou o curioso almocreve. Um dos desabafos do homem é que tinha sido traído pela amante, uma robusta pasteleira que vivia não muito longe dali e que, por isso, teria de passar a noite naquela pobre estalagem de esquina, entre a rua de cima e a de baixo. Se tivesse conseguido suster a respiração por mais tempo, Ginete teria obtido a morada da desconsolada amante, mas o hálito do homem abrigava todos os podres do universo e Ginete temeu o eminente desmaio. Preferiu ir à descoberta, afinal, por aquelas bandas não haveria assim tantas mulheres profissionais do pastel. Enganou-se, porém. Entre padarias, pastelarias, confeitarias, tea rooms e chocolatarias acabou indeciso e perdido e já sem tempo para descansar o corpo, que o dia, entretanto raiava.


Começou, pela primeira vez, a perceber os desígnios de Deus. Desde que iniciara a sua senda religiosa, ou seja, desde Canal Caveira e a estoica decisão de ir almocrevar para Santiago, que não tinha tido sorte ao amor. Começou, então, a conversar com Deus, esclarecendo-o acerca da diferença entre sexo e amor. Que não era um verdadeiro traidor, na medida em que apenas sexo descomprometido não era propriamente infidelidade. Que não era sequer casado, logo, não poderia ser adúltero. Que era um ótimo parceiro de cama, pelo que também não defraudava as expectativas das mulheres com quem se cruzava. Que não conhecia toda a sua prole, porque tinha de viajar imenso para ganhar o pão e a palha, para ele e para a sua montada… Nisto, avista num riacho uma filha de formosas lavadouras, daquelas que lavam no rio, como dirá mais tarde o belo fado, e aceitou as pazes que Deus lhe oferecia. Estavam conversados. Compostela podia esperar. Ainda que sendo freiras, eram mulheres e alguma haveria de querer uma endiabrada troca de produtos, já que coisas apelativas não lhe faltavam nos alforges. Uma noviça queria muito um terço, e ele que só tinha inteiros ou metades… Outra, uma chinelas singelas, e ele que só tinha complexidades e luxos… Eram mulheres muito complicadas. Finalmente, numa curva do rio, uma mulher civil, lavava espartilhos e desenferrujava cintos de castidade com Mistolin. Era a sua presa, que de produtos desencrustantes sabia ele tudo. Engano seu. Era um jovem mancebo, muito efeminado, pronto a aceitar o que quer que ele tivesse para oferecer. Quase cedeu, mas… o excesso de buço da criatura não lhe permitiu qualquer tipo de avanço, além de que… Era completamente hétero, é o que era e apesar da crescente míngua afetiva, não foi capaz. O rapaz compreendeu e até lhe recomendou a irmã Baronilde, mas ao ouvir a palavra irmã, Ginete entendeu que seria mais uma freira e alegou que tinha uma perna de borrego no forno e que, por esse tanto, teria de se apressar ou queimava-se tudo lá para os lados do forno.


E Compostela ainda tão longe. Aguentaria tamanhas tentações ao longo do restante trajeto? Parecia que caminhava com o Diabo no bolso e Deus no chapéu. Se o primeiro lhe enchia o prato de requintados acepipes, já o segundo lhe ia subtraindo os dentes, impossibilitando-o de provar tamanhas iguarias. Enquanto afogava as mágoas numa taberna, ouviu falar de uma exímia bruxa, capaz de quebrar qualquer enguiço. Não hesitou um segundo e foi ter com a mulher. Isso, sim, foi uma sorte. Era linda e toda enxuta, o raio da bruxa. Lá foi benzido e amassado com todo o tipo de récitas e ervas e ainda um licor para tirar o quebrante e mais uma mezinhas. O transe foi de tal ordem que até experimentou um novo tipo de prazer físico, o que facilitou as pazes com o evangelho. A bruxa recomendou que fosse direto para casa, que Compostela era muito longe e que o caminho se estava a tornar demasiado turístico, que as lembranças, por lá, estavam pela hora da morte e que não havia irmã gémea no mundo que o pudesse curar. Diagnosticou-lhe o vício do sexo fácil e recomendou-lhe que voltasse para casa. Embriagado pelas sábias palavras da exótica mulher, lá partiu com destino a casa.


Decidiu penitenciar-se elegendo os caminhos mais longos e pedregosos, a fim de se lavar dos pecados e também para lhe dar tempo para pensar a que casa voltar, que isto do poliamor levanta muitas questões logísticas de que ninguém fala, para dourar a pílula da coisa. Calcorreou vales e montanhas, atravessou rios e ribeiros, subiu serras e planaltos, atravessou desfiladeiros e planícies e acabou embrenhado numa densa floresta. Só podia estar muito longe de casa. Tão longe que já nem falavam português por aquelas paragens, ou isso ou estava a precisar de consultar um otorrino,. Teria de averiguar qual dos dois era verdade. Percebeu, ao cabo de muito tempo, tanto que não o conseguia medir, que estava completamente perdido, faminto e que já nem o cavalo sabia por onde e para onde ir. Foi então que pediu a Deus que lhe iluminasse o caminho, que lhe desse umas luzes. Deus assim fez. Ou Deus ou alguém. O certo é que se acendeu uma luz por cada mulher que tinha enganado e que todas as restantes mulheres com quem também tinha estado acenderam outras tantas. Ginete tenta perceber qual delas deve seguir. Abre e fecha os olhos. Por vezes, abre-os para perceber que anda às voltas num lindo carrossel com todas as suas amantes. Noutras, os olhos mostram-lhe que está deitado numa mesa de operações do século XXI onde está a ser submetido a uma cirurgia para remoção dos órgãos genitais sob o olhar atento de uma plateia do séc. XIX, em que todos os estudantes aspirantes a doutores de medicina são belas mulheres que tudo observam ávida, mas pavidamente. Tenta eleger a melhor luz, aquela que o fará abrir os olhos para algo mais agradável. Há uma que se destaca. É branca. Cálida e convidativa. Está no fundo de um longo corredor que ilumina abundantemente. Uma placa anuncia que tinha chegado a uma terra que se chama Fim da Linha. Gostou. Lembrava-lhe a sua avó e os seus intermináveis novelos de fio de algodão Ancora. Ficaria por ali.


Abriu os olhos. Era Carnaval. Pequenos semi-humanos com corninhos vermelhos dançavam samba e outras animações musicais. Homens vestiam-se de mulheres. Mulheres de políticos. Encontrou por lá a Chiquita Bacana e o amigo Charlie Brown, que lhe fizeram aquela megafesta. Havia médicos em greve e juízes sem juízo, e muitas mulheres quase nuas que se abanavam todas, a fim de se aquecerem, já que era fevereiro e estava um frio de rachar. Um tipo de estetoscópio a fazer de bandelete encaminhou-o para a mesa de refeições, cuja estrutura parecia que iria colapsar a qualquer instante. Era dia de gelatina. O seu dia preferido. Ginete estava feliz. Em vez de Santiago tinha encontrado Afrodite e nem tinha sido necessário ir a Compostela, ou sair do país.
Dizem que por causa do aventureiro almocreve Ginete da Noruega, ainda hoje as pessoas fazem disparates e se vestem da pior maneira possível por altura do Carnaval.

Moral da história:
Desculpem, mas hoje não vamos moralizar.

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