O médico de clínica geral, uma criatura adorável e encantadoramente incompetente – o que é bom, pois a falta de conhecimento impede que se saia das suas consultas com alguma doença terminal, até porque diagnósticos não são o seu forte –, além de, em termos físicos, ser avassaladoramente assimétrico – coisa em que repara enquanto ele debita idiossincrasias médicas e faz associações disparatadas –, perante a insistente solicitação de Carlota, para lhe receitar um qualquer químico que voltasse a incendiar de loucura e selvajaria a sua vida sexual conjugal – com os amantes, Carlota não tinha queixas de maior –, sai-se com o cliché de vão de escada:«

– Compre uma lingerie mais ousada, imagine atrevimentos enquanto se amam, diga-lhe coisas obscenas ao ouvido… Não sei, repensem juntos sobre aquilo que os excita.

Carlota desatou a rir na cara do médico. Primeiro, acreditou seriamente que conseguiria suster-se até sair do gabinete, mas marimbou-se em grande para correções de comportamento e, ela jura que é verdade, chorou a rir. Completamente descontrolada. Que querido! Tinha de se refrear, ou ainda acabaria apaixonada também por aquele encantador totó de bata branca. Sempre teve uma confessa queda para o abismo da imbecilidade. Pessoas junto de quem a vida só podia ser fácil e agradável. Quando não se pensa, não se anseia, não se deprime, não se entristece. Apenas se vive. Somente se respira e pronto. É tudo. Uma consubstancial incapacidade intelectual não permite grandes agruras, questões existenciais, pensamentos metafísicos. Quando muito, uma ambiçãozita ou outra, umas inconsequentes dores de crescimento, vá lá.

Imaginava aquele doce de estetoscópio, aquele espécime do corpo clínico nacional que ela, Carlota de Sá Cristão Mil-Homens, e o marido se limitavam a missionarismos sexuais? Que usariam o singelo e confortável algodão como matéria-prima da sua roupa interior? Que não tinham ainda descoberto as malandrices sugestivas da linguagem e da língua, para brincarem aos médicos? A questão é que, não obstante o seu vasto léxico erótico – o qual deixaria E. L. James corada –, e todas as figuras de estilo, onde não faltava guarda-roupa de primeiríssima excitação, as coisas já não os entusiasmavam. Esse era o problema que se apresentava. O básico há muito que tinha sido assimilado. Carlota e Carloto – uma feliz coincidência do destino tinha-os juntado até nos nomes de batismo – já eram doutorados em assuntos de cama. Daí a sua enorme preocupação. Os livros já nada tinham de novo a mostrar-lhes, nem o cinema, de resto.

Por isso, não parava de rir. Em parte, por perceber a sua própria ingenuidade, ao ter acreditado que poderia receber ajuda do seu médico de família. Por outro lado, por ver confirmada a falta de preparação clínica para casos do foro sexual. Só podia ser ignorância. Carlota não acreditava que a gigantesca máfia farmacêutica não investisse, e em grande, para reforçar a única droga gratuita que a Mãe Natureza nos concedeu: o sexo. Deveria haver milhares de químicos e coisas boas para receitar, apenas aquele tonto não as conhecia ou ficava embaraçado com o assunto e reprimia receitas. O que ela procurava era uma droga simpática, algo que agisse diretamente na líbido de ambos os sexos e que lhes permitisse experimentar novidades e exaltação e que não fosse tão cara quanto a coca. Além de que Carloto era alérgico ao pó, o que tornava tudo muito penoso no que toca ao consumo de snifáveis.

O padre Santiago – um muito estimado amigo de infância que Carlota teve a oportunidade de experimentar sexualmente muito antes de ele perceber que era gay e se entregar ao seminarismo de corpo e alma, mais de alma do que de corpo, convém frisar –, conhecendo Carlota de ginjeira, afiançou-lhe que aquilo de que ela precisava era de um intervalo. Um longo intervalo na sua frenética atividade sexual.

– É o excesso que te está a matar o desejo. A ti e ao Carloto. Vocês parecem coelhos. E isto apenas um com o outro, fora os extras, os jogos fora e todos esses outros campeonatos e diferentes ligas em que ambos competem com sofreguidão. Parem um pouco! Dediquem-se a outros interesses em comum. Viajem. Façam um curso de cake design tão em voga. Aprendam a reciclar o vosso gigantesco desperdício. Entretenham-se com a gigantesca aventura que é a vida. Escalem montanhas. Nem tudo gira à volta do sexo. Reaprendam a amar-se na pureza.

– Na pureza? Santiago, não me digas que viraste beato? Lá por seres padre, não quer dizer que vires ortodoxo e acredites em tudo o que diz a tua doutrina. Um intervalo? Um break? Nem tu és assim tão devoto. As pilhas hão de nos faltar naturalmente com a idade, darling! Não me peças que as descarregue voluntariamente antes de tempo. E se perco o comboio? E se não volto a recuperar a vontade? E se me torno insensível ao tema e à prática da coisa? Se a frigidez apanha a porta aberta ainda entra por aí dentro desenfreada. Não podemos permitir isso, certo? O sexo é o meu motor. Sem motor nem a carroçaria se aguentaria.

– Julgo que te está a faltar distanciamento para veres onde quero chegar…

– Santiago, eu sou a imperatriz da perspicácia. Ainda tu não sabias soletrar gay e já eu sabia que eras homossexual.

– Lá vens tu com essa!

– Claro. E nem sequer é um bom exemplo, pois estava tudo escarrapachado na tua cara. Com apenas nove anos ajudaste a minha mãe a remodelar a casa e a redecorar todo o jardim de inverno. Até borboletas de África mandaste vir. Desculpa o cliché, mas a verdade é que o óbvio te habitava. Depilámo-nos pela primeira vez em simultâneo. Heloooo!

– Não deve ter sido bem assim, pois que não me largavas…

– Claro. Tinha de te provar, de te ter antes que descobrisses que no teu clube meninas não entravam. Ando sempre muito à frente, cherry. Por isso te digo que um detox de sexo, uma limpeza de abstinência, voluntária, ainda por cima, vai enlouquecer-me. Não é aquilo que procuro, nem acho que seja uma solução. Preciso de movida, além de que é o único exercício físico que pratico. Não vou agora ficar frustrada e flácida de uma só vez. Nem pensar!

Aquela sexóloga era o must do momento, no que ao tema sexo e erotismo diz respeito. Ele era a clínica a bombar, programas televisivos da manhã, da tarde e da noite, blogs, workshops e o diabo a sete. Vendia até t-shirts com algumas das suas máximas. Foi com uma delas vestida que Carlota lhe surgiu à frente à saída de um talk-show apresentado por uma amiga sua que a levou aos bastidores. “Atrás do sexo… também há sexo!” Assim rezava a sua atrevida e muito skinny camisola, customizada pela própria Carlota, cujos seios, a romper pelo decote rasgado à tesourada, mais se assemelhava a um generoso bumbum. A sexóloga fartou-se de rir. Carlota encantou-se com o à-vontade e simplicidade da outra, nada rendida a vedetismos de momento. Adoraram-se logo ali. Já eram as maiores amigas. De toda uma vida, praticamente. “Mil-Homens?” exclamou a outra. “Que ma-ra-vi-lha de nome!”

– Minha querida, e isso, como diz o outro, são ‘peanis’! Acredite que já ultrapassei essa meta em meados dos anos dez deste século.

Retorquiu-lhe a doidivanas da Carlota, já íntima da outra, rematando com uma das suas histriónicas gargalhadas. Entendiam-se às mil e isso é que interessava, pois Carlota precisava de proximidade, para melhor convencer a sexóloga a mostrar-lhe a montra dos novos fármacos libidinosos. Almoçaram, jantaram, foram para a farra e para a gandaia e tudo ia de feição. Sem inibições de maior ou menor tamanho, Carlota já tinha contado quase toda a sua vida à outra – a da outra coube no espaço de um Martini –, e já fazia sentido abreviar o sucedido até à urgência que a fez cruzar o caminho da médica.

– Preciso de excitantes que direcionem a minha atração sexual, a minha líbido e todo o meu interesse para o meu adorado Carloto. Dávamo-nos tão bem entre lençóis de algodão egípcio de mil e tal fios e agora apenas nos aconchegamos enquanto aguardamos mais um episódio do ‘This is Us’. Até nos comovemos, como os pobrezinhos.

Fosse do algodão egípcio, do nome da série ou da história dos pobrezinhos, a coisa funcionou lindamente. A sexóloga enterneceu-se com o perigo da aproximação da síndrome da irmandade, que é o maior cancro da vida sexual de um casal, como logo explicou, assumindo que não era autoexplicativo.

Lá se seguiu o cardápio por que tanto Carlota esperara. Nivelou as suas expectativas e entusiasmo pela extensão do menu. Mas fez mal. Tudo era indicado para disfunções físicas ou psíquicas bem definidas, mas não tão específicas quanto a sua. Coisas azuis para ele, coisas de outras cores para ela… O clássico. Mas ela queria algo à medida. Quase lhe apetecia consultar o Ambrósio da Ferrero Rocher, mas também percebia que não iria lá com chocolates, além de que lhe faziam pessimamente à cútis. Uma coisa que apenas estimulasse a líbido não funcionaria, até porque não tinha falta dela. Podia até ser desastroso. Já se imaginava a ter de assediar populares na rua em pleno apetite para a coisa. Seria degradante, até para os seus libertinos princípios. O Carloto também não necessitava de aumentos. O que ambos precisavam era de mais força no imã que os atraía física e sexualmente um para o outro. Era isso que parecia carente de potência.

Lá se concluiu que essa coisa específica não existia. O mais parecido era terapia de casal. Bom, era uma ideia.

O terapeuta era um antipático e um carrancudo. Carlota e Carloto cedo lhe começaram a chamar Boomerang. Tudo aquilo que perguntavam era devolvido com a mesma pergunta, embrulhada, toda ela, numa retórica de adormecer torturados em plena tortura.

– O que é que isso quer dizer, doutor?

– O que é que acham que quer dizer?

“Bolas!”, explodia Carlota sempre que se apanhavam sozinhos fora do consultório de Boomerang. Se eles soubessem o que queria dizer não importa o quê, não andavam a pagar consultas “carérrimas”. Quer dizer, o terapeuta tinha o melhor dos negócios. Não apenas cobrava para deixar claro que não sabia as respostas às perguntas que lhe colocavam como, repare-se bem na lata, ainda devolvia a pergunta na expectativa de obter respostas certas ou aproximadas com que, provavelmente, enganaria o próximo casal em aflição, ou brilharia, depois, junto da academia. Era demais! Duas sessões foi quanto bastou.

Foi à bruxa. Adorava ir à bruxa. Ela dizia-se formada nisto e naquilo, mais mestrado na palma da mão e numerologia e ainda doutoramento em astros brilhantes. Whatever! Era a sua bruxa e há muito que não a consultava. Lá vieram cartas; sessões espíritas, pois podia ser um ente morto a querer contactar; chás, para afastar invejosos e ex-amantes ciumentos ou apenas estúpidos; cabeças de alho, não fosse o diabo tecê-las e ele tece bastante; rezas incongruentes; lavagens com águas de malva para purificar e passar o tempo (só para encontrar malvas tiveram de ir duas vezes à Feria de Sevilha); um rosário para não cair no esquecimento; e muito, mas mesmo muito xarope. Nada. Tudo a correr pelo melhor com qualquer idiota, mas logo que chegava a casa faltava-lhes a vontade, a energia, o entusiasmo. Dizia a santa que era coisa de espírito mau. Que precisava de cuecas de um e de outro e ainda de pelos púbicos. Um horror de coisas para decorar. Carlota agastou-se com as listas.

Pediu à empregada, a sua adorada Júlia Bairrista (não é gozo, é mesmo o nome da criatura), que a ajudasse a reunir as patas de galinha preta e mais não sei o quê que a bruxa pedia, pois que sem isso não se desfazia encanto nem se quebrava feitiço, nem as alminhas descansavam… Matarem-se galinhas pretas por dá cá aquela pata, não a incomodava, mas almas sem descanso era coisa que a Carlota muita confusão fazia. Lá se cumpriram os caldos, mas mais pelas alminhas do que pela fé que já depositava nas mezinhas da sua bruxa.

Júlia, que tinha tanto de dedicação àqueles dois seres perdidos na sua enorme loucura e destrambelhamento, como de esperteza pura, foi ralhando forte e feio.

– A menina Carlota tenha juízo. Já vai sendo tempo. Só a gastar dinheiro com charlatões. Médicos e curandeiros. É tudo igual. Atiram à sorte. Umas vezes calha bem, outras nem por isso. Compre mas é um bom vibrador e deixe-se de ‘extravaganzias’. Ou isso ou um dildo que dizem que também é muito bom. Eu cá, só lá vai com vibração. Como é que a menina acha que se faz frente à vida de emigrante? Com eletrónica, pois então! Com aparelhos, com certeza! Além de que não dá que falar a ninguém. Fica tudo entre a menina e os lençóis. Ópois, se quiser contar ao menino Carloto… Isso depende muito de cada um, num é? O meu Justino sabe e até gosta. Sempre fica mais descansado, lá na Paris.

Aquela Júlia era impagável. Ia aumentá-la novamente. Era uma pérola. Uma preciosidade.

– Mande lá vir o seu homem da Paris que vai ser meu motorista. Você, Júlia, é esperta que nem um alho.

– Tem a certeza? Então e o senhor Uber, já não conduz bem?!

– Ahahaha. Amo-a, Júlia Bairrista. É a maior! Vista lá qualquer coisita que vamos, neste instante, comprar boas vibrações para si e para mim.

Em pleno Bairro Alto, entre góticos e hipsters, Júlia era rainha. Qual quê?! Imperatriz. Sabia o que perguntar em termos de voltagem, risco de choque, isolamento, pilhas, duração, velocidades, rotação, conforto, material, toxicidade… De facto, um profissional, em qualquer área de atividade, é outra coisa. É que faz toda a diferença. Se fosse por si, Carlota tinha agarrado no mais giro e tinha-se ido embora toda feliz. Com o aconselhamento de Júlia, trouxe o melhor. E nem era assim tão feio. Giríssima, quase ao ponto de provocar ciúmes, era a boneca que tinham comprado para o Carloto. Sofisticadíssima, com cabelo humano, orifícios para todo o serviço. Além disso, não apenas o site da marca dizia ser a mais completa da sua geração, como era a predileta dos japoneses, e se os japoneses percebem de algo é de sushi e ‘call dolls’, e ainda se montava – montar será demasiado vulgar, tendo em conta o contexto e os fortes e muito praticados princípios de liberação feminista de que Carlota tanto se orgulhava, pelo que talvez armar seja o mais indicado – num movimento ‘puff’, como as mais modernas tendas de campismo. E não era tudo. A garota ainda cantava “como um rouxinol” – podia ler-se na bula – quando percebia que o “companheiro” tinha atingido o pleno. Era completa! “O Carloto vai a-do-rar!” E adorou. Na verdade, adoraram ambos. Tanto que já mal se viam, nem mesmo para o ‘This is Us’.

Tão viajados que eram e nunca tinham desfrutado de brinquedos de adultos na solidão do seu prazer. Pode mesmo dizer-se que já tinham feito de tudo um pouco, ou muito, a bem da verdade – ainda que isto não seja um confessionário –, mas sempre acompanhados, por vezes até, de grupos alargados de indivíduos de todas as pertinências sexuais. Nunca nenhum dos dois teve paciência para brincadeiras sexuais solitárias. A sua hiperatividade não permitia não terem com quem falar. Talvez por causa da necessidade ou da idade madura, ou apenas por ser isso mesmo, uma novidade, a coisa estava a funcionar para o casal de Carlotos. Tão bem, que já nem sentiam falta dos amantes de circunstância, nem mesmo dos fixos. Todos dispensados em prol da robótica. Era sinal destes tempos malucos e híper-qualquer-coisa, em que ambos se orgulhavam de ser progressistas. Quase mesmo futuristas. Isto é o futuro, pensavam afagando os seus caros brinquedos. Sim. Desde a versão inicial, já tinham feito vários upgrades, com materiais luxuosos, para os quais chamaram a intervenção de marcas muito trendy, e todos eles taylor made, para que se ‘encaixassem’ mais às suas necessidades e gostos.

Um dia, fatídico e muito irritante, perderam-lhes as malas no aeroporto. Com elas, lá iam as suas joias mais prediletas. Forçados a pernoitar sem os seus habituais companheiros de atividade sexual, abriram de par em par as portas comunicantes da suite com dois quartos onde se tinham alojado, e lá se preparavam para uma adorável conchinha quando a coisa começou a rolar de forma abrupta e muito saborosa. Era a coisa ao natural e ao vivo. Estavam de volta enquanto casal sexual. Ficaram encantados e ainda mais apaixonados. “Life is back and sex is sex”, rejubilaram. Era a felicidade de sempre, ainda mais triunfante, ainda mais excitante e até, atreviam-se a sublinhar, ainda mais wild. Que extraordinário volte face. Passaram três dias enrolados numa ‘carlotice’ sem explicação, quando, da receção, avisam que as suas malas já estavam no hotel. Carlota e Carloto olharam-se profunda e apaixonadamente nos olhos um do outro. Beijaram-se docemente e ao de leve nos lábios acabados de pincelar com um bálsamo fantástico que prometia, além de hidratação, duplicar o volume da boca. Sem precisarem de trocar uma palavra que fosse, Carloto dirigiu-se ao seu quarto e trancou a porta comunicante. Os seus respetivos estavam de volta, os amantes tinham de se separar temporariamente. Reencontrar-se-iam à mesa do pequeno-almoço, claro está, onde comentariam o quanto a vida era bela. Não é, darlings?

Moral da história:

A vida pode ser entediante, mas tédio não é sinónimo de vida. Parta à aventura e nunca se fique pela ‘normalidade’. Isso é que não é normal, menos ainda desejável. Outra coisa, o óbvio e o preconceito são apenas invenções sem sentido.

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