Ela não quis preocupar-se desnecessariamente. Tinha-o encantado. Tinha-o seduzido. Percebia como ele estava apaixonado por si, como tudo o que dizia e fazia o fascinava, mesmo aquilo que o surpreendia ou com o qual ele não concordava em absoluto. Ele sentia-se de tal forma feliz a seu lado que estava disposto a aceitar todos os seus gostos, preferências ou mesmo caprichos e disparates. Não fosse ela amá-lo tanto e diria que ele ‘estava no papo’, mas isso seria trazer de rojo, arrastar por piso irregular, sentimentos puros que não merecem beliscão, que, ao invés, exigem cuidados extra, pois os sentimentos verdadeiros são como a neve: qualquer coisa lhes deixa marca e a mínima oscilação no termómetro mata-os. Era, porém, uma tomada de consciência de que ele estaria recetivo, a fim de não a perder, a mudar formas de ver, pensar e de agir adaptando-as àquilo que ela entendia serem as formas corretas de ver, pensar e agir do homem amado que estivesse a seu lado. Ela mudá-lo-ia. Moldá-lo-ia. À sua maneira. A seu tempo. Uma coisa aqui, outra acolá, umas agora, outras depois… Tinha tudo controlado.

Como uma brisa sussurrada ao ouvido, ela dir-lhe-ia como poderia mudar todo o seu guarda-roupa, atualizá-lo e modernizá-lo, de forma a ficar mais conforme os seus padrões estéticos. Uma radical mudança de visual executada em suaves prestações. Sem juros, claro está, que o amor não cobra. No final, nasceria um homem novo, de cara lavada, com uma nova roupagem, que melhor falasse por si. Que o apresentaria ao mundo como o seu amor. Irrepreensível. Sem mácula. Uma pequena grande mudança que o traria ao seu nível de bom gosto, em conformidade com aquilo que ela mais gostava de ver num homem elegante, cool, despretenciosamente sofisticado e sofisticadamente blasé.

Com o vento na voz ela bradaria a necessidade imperiosa de adotar um novo regime alimentar, mais consentâneo com os trends da cozinha de autor, mas saudável e sustentável. Mais verde e exótico também. Introduzi-lo-ia a novas aventuras do palato, a novas texturas e a um rol de especiarias apostadas a dar sabor, outro sabor a uma dieta apostada na longevidade de todos os órgãos do corpo humano. Queria a seu lado um tipo saudável, atento aos restaurantes mais in do momento, mais elitistas e instagramáveis. Desejava que, muito em breve, partisse dele a iniciativa de introduzir novas bagas ao brunch de fim de semana e que não tardasse a presenteá-la com receitas e experiências gastronómicas daquelas que se carregam de likes em inúmeras plataformas do novo saber viver em sociedade cibernética. Frequentariam cursos de vinhos e workshops de culinária de nomes sonantes dos saberes do palato. Chefs e enólogos de exceção. Em breve, seriam um dos casais mais ‘apetitosos’ das suas redes.

Como uma rajada de inconformidade, ela alteraria a decoração da casa do homem amado. Seriam necessárias peças exclusivas, obras assinadas e autenticadas, únicas e de design. Alteridades do bom gosto do casal, que casassem bem com o novo homem que ela estava disposta a dar à luz. Um novo homem nascido do gigantesco amor que por ele sentia. Só o amor impele empreitadas desta envergadura. Só a total dedicação de um coração apaixonado se aventura nestas trabalheiras domésticas. Apenas de imaginar os futuros cenários em cada novo recanto do loft do seu amado, estremecia de felicidade. Claro que, antes disso, teria de o convencer a trocar o seu minúsculo apartamento, precisamente por um loft, numa das novas zonas mais badaladas da cidade. Um pedaço de luxo num qualquer bairro emergente, cheio de potencial e novo sangue alternativo.

Vestida de tempestade, ela já se imaginava no passo seguinte, rodopiando coreografias de astúcia que o levariam a descurar as suas velhas e batidas amizades por uma nova lufada de gente cosmopolita, urbano-esclarecida, mediamente hipsterizada. Uma nova turma fotogénica, fã de arte urbana, de óculos de massa, coisas vintage e outras rétro. Laboriosos artistas, artesãos de mão cheia, capazes de escrever o texto mais seguido do dia num blog de moda e noutro de política, fazer a melhor espirilização de legumes frescos ao jantar e ainda, pelo meio, tricotar as suas próprias camisolas de lã, para si e para o seu cão e gato, não necessariamente a condizer, que o pendant é burguês e a slow fashion é muito mais gira, e ainda descobririam the next big thing, sobre qualquer tema. Pessoas produtivas e galvanizadoras, especialistas em life style e defensoras do planeta, de qualquer planeta. Hábeis cérebros, capazes de discursar sobre os mais variados assuntos, mais ainda sobre as suas especialidades. Seres despreconceituosos, ávidos de novidades, inclusivos e agregadores de novos saberes e sabores. Espíritos livres e na moda, de discurso apelativo e acessórios e gadgets top.

 

Como um tufão, ela lembrá-lo-ia, lá mais para a frente, da necessidade de reforçar todo este esforço de forma e de conteúdo a todos aqueles que os rodeiam, incluindo a família. Uma menos intensa, mas proveitosa lavagem estética e algumas aulas de conteúdo diverso, capazes de abranger uma simpática panóplia de temas aceitáveis em jantares familiares, sempre tão apetecíveis e acolhedores. A mãe dele teria mesmo de esquecer os cortinados e adotar uns estores, talvez, mais shabby chic ou etno-funk, quem sabe. Imaginava-a bem nesses ambientes estéticos, não obstante o pai ser óbvia e estrondosamente pop-nostalgic, o que podia ir bem, dando alguns apontamentos artísticos ao quadro geral.

Só o frenesim de todo este projeto, uma obra de monta, que tinha pela frente e por todos os lados, a bem da verdade, provocava-lhe uma agradável palpitação cardíaca, a qual acalmaria de imediato com um batido de beterraba e espargos selvagens. Divertia-a ainda como sentia uma mão endiabrada naquela relação. Só um pequeno diabinho juntaria num amor tão puro e profundo, dois seres tão distintos.

By Alexander Yakovlev

Ele, como um raio de sol, esticava-se na secretária pensando em como ela era perfeita, na total aceitação da forma distinta como cada um deles via o mundo. Só mentes tacanhas e pequeninas, daquelas com muito pouca capacidade e liberdade, não viam o enorme potencial de se juntarem no amor e na vida, indivíduos cujos pontos de vista partiam de coordenadas tão distintas para chegarem a pontos ainda mais opostos. Um casal-parlamento, um casal-democracia, em cuja sede afetiva se encontravam entendimentos entre pareceres antagónicos. Se isso não era amor de verdade, então, ele não saberia como descrevê-lo. Só o amor pleno, em toda a sua totalidade tinha a sapiência necessária para aninhar no mesmo colo, o dia e a noite criando essa entidade una que resulta nas 24 horas. Nelas há de tudo um pouco: pouca luz, só luz, alguma sombra e apenas escuro. Perfeito em todas as restantes mesclas possíveis, dependendo da estação do ano e dos caprichos atmosféricos. Era até enternecedor, se pensasse um pouco mais no assunto. Claro que não se procuraram. Pelo menos, não se procuraram achando que se encontrariam assim, com tantas diferenças, com tanta quilometragem de permeio. Desejavam o amor, mas jamais aquele exato amor. Porém, foi este mesmo que lhes aconteceu encontrarem. E que maravilhoso ela era! Ela cheia de preocupações. Demasiadas. Em busca de vãs perfeições, sobrevalorizando harmonizações, detalhes, melhorias constantes nisto e naquilo. Ninharias. Nem tempo tinha para apreciar todas as coisas boas em seu redor. O mais divertido é que ela parecia uma miúda, cheia de cor e de vibrações, incluindo sonoras – tinha entoações para todas as situações, quase parecia uma ave rara, guturalmente dotada. Ela era apaixonante e desinibida, mas preocupava-se mais em acertar no chapéu certo para não juntar mais pintas ao rosto sardento do que em aproveitar o divino sol. Talvez ele estivesse destinado a amá-la para que ela aprendesse a gostar mais, a libertar-se mais, a rotular menos. Sorria inadvertidamente. Ele, o homem de fato e gravata, de horários rígidos e reuniões maçadoras parecia, afinal, destinado a ensinar liberdades e alegrias à miúda meio hippie. Bolas, como estava apaixonado!

Como um dia de verão, ele foi aquecendo a vida dela. Tornando laços os cadeados das caixas onde ela tudo encaixava, de forma ordeira e meticulosa: o menu com as refeições da semana, categorias de pessoas, roupa organizada por cores, livros por ordem alfabética, como nas bibliotecas… Como é que ela encontrava tempo para tanto método? Claro que se cansava desnecessariamente, o que a impedia de improvisar um jantar feito do nada, de ouvir como podem ser divertidos e inteligentes até mesmo os ‘maçadores’, de se surpreender com combinações de roupa inesperadas, de encontrar um livro muito amado que se julgava perdido… Os grandes prazeres surgem em doses pequenas. Nunca o contrário. Se ela, ao mesmo, se soltasse um pouco mais, deixaria de o querer mudar a toda a hora, de se exaltar a propósito de formiguices, de se exasperar com a imperfeição, quando só esta existe no mundo. Todas as perfeições são imperfeitas e o amor deles era o pináculo da demonstração do que dizia. Se ela deixasse a janela aberta, o sol entraria. Mas ele também sabia que o sol entra por qualquer fresta de possibilidade. Paciente. Quente.

Como os mares de prata sob um sol escaldante, ele deliciava-se com os planos dela, quase todos assentes em novas compras. Logo ela, que era pelo planeta e pelo meio ambiente, comia sementes que tinham de atravessar o planeta de avião para chegar até à taça do seu iogurte magro, desnatado e sem leite por causa das intolerâncias, que nem eram suas. Queria que ele comprasse roupa menos formal, mobiliário de autor, uma casa de um bom arquiteto… Como ela era divertida. Ele sorria. Abraçava-a. Aquecia-a e ela logo adormecia os seus tremores frios da insegurança e do faz de conta. Como ela cheirava bem. A fruta, madeira e flores raras. Tanta sofisticação e nem percebia que um ramo de alecrim atrás da orelha tinha mais a ver com moda do que o apurado nez de um perfumista. Mas ela era sofisticada. Pior do que isso, ela queria à força ser sofisticada, pertencer, estar na moda mais moda de todas as modas atuais. Por isso, acertava todos os dias os ponteiros da sua moda, porque quando não se tem um estilo próprio, acabamos por andar sempre atrás de qualquer coisa. Por isso ele, que reconhecia a falta de pachorra para vaidades e tempo perdido em lojas ou sites fashionistas, limitava-se a usar a sua bela ‘farda’. Uma farda não tem imperfeições, nem tem de se conjugar com nada mais. É apenas uma farda. Simplifica a vida e economiza nos gastos. Aos fins de semana, jeans de corte clássico – enganam a mais exigente moda – e t-shirts lisas. Não há como errar. Porque se apoquenta ela tanto com tanta coisa? Adormecido no seu ombro, vestindo apenas uma das camisolas dele, o rosto gaiato dela parecia concordar com tudo isso. O algodão não engana, mesmo!

Mas ela era curiosa. Curiosa e divertida. Achou ela, num momento de escassa lucidez, que ele usaria as camisas floridas e com padrões e as calças de xadrez com que ela o presenteava amiúde. Havia ainda camisolas de gola alta e cardigans, que era o nome que ela dava a casacos de malha, quando ele apenas conhecia a banda de música com esse nome, a qual, curiosamente, ela desconhecia. Também chamava trench coat a gabardinas, só para que conste. O pior foi a reação à recusa dele. Foi desproporcional e, quem os observasse de fora, poderia achar que ela reagia a qualquer tipo de violência física ou terror psicológico que ele lhe estivesse a infligir. Ela quase tinha uma apoplexia. Até soluçava de raiva. Nunca a tinha visto assim. Ele também não aceitou bem a ideia de que ela o amava, MAS… ele teria de mudar. Pois. Quando entra o mas, entra a crítica, a censura, o pouco amor, a falta de estima e isso ele não aceitava. Porém, também receava perdê-la por causa de tecidos com padrão. Seria isso possível no universo dos amantes? Achou ridículo tudo aquilo. Derreteria todo o azedume no próximo abraço? Ultrapassariam a provação têxtil? Por sorte, sim. A ebulição foi tal que não mais se falou de roupa, ou, como ela preferia: ‘looks’, ‘outfits’ ou ‘visuais’. Pensou-se mais em tirar roupa e não em trocá-la ou comprá-la. Havia laços entre eles em que valia, afinal, investir. E não eram de seda. Envolviam amor, paixão e sexo também. Talvez estivessem safos.

Como um sufocante afago, quente e terno, sem palavras ou exigências, fugindo a sete pés de grandiosos planos de mudança, ele abriu-lhe as portas de um mundo despreocupado, onde tudo tem o lugar que cada coisa procura para si. Sem necessidade de grandes metodologias, de novos armários, de ordem alfabética ou concordância de cores e formas. As coisas entendem-se, as pessoas também e o mundo todo encaixa, sem azedumes ou formatações impostas por terceiros, desde que não se avance com arestas. O que ela chorou quando a mãe dele não se deixou convencer a mudar cortinados por estores, por entender que nada substitui o conforto dos têxteis numa casa. Outro tanto chorou quando ele se recusou a mudar de casa, para um inóspito loft onde os seus próprios passos ecoavam no vazio do espaço livre de um pé direito que satisfazia necessidades industriais e não os desejos de amantes acabados de chegar à vida um do outro. Claro que poderiam procurar casa juntos. Nova, velha, comprada, alugada… Desde que fosse o seu espaço. Um lugar de encontros e não de imposições ou em conformidade com ‘influencers’. Se eles não fossem o maior influencer um do outro, usando como única bitola o que ambos achavam sobre o que quer que fosse, então, para quê, sequer, viverem na mesma casa?

Sob o calor do constante afago dele, da sua suave e quente bonança – que o conforto nunca é de gelo, nem mesmo para amantes de neve e desportos de inverno –, do seu compreensivo bem-querer, do permanente elogio à sua curiosa forma de ser, ela foi amoleceu planos feitos a régua e esquadro, foi diluindo cores saturadas em largas pinceladas de ‘também pode ser assim’, e acabou mesmo a limar arestas de duro ferro, sobre as quais repousavam proteções de borracha, para que ele nelas não se magoasse, caso por lá tropeçasse.

Um dia, vestindo apenas coisas que recuperou do baú, quando finalmente se mudaram ambos para a mesma casa, uma com jardim, horta, três burros e um pequeno pomar (seres vivos e menos vivos inseparáveis na escritura), quando deixou de olhar para o lado e se concentrou no miolo daquele amor bom, ela percebeu que se sentia mais livre, mais feliz e que, curiosamente, a sua conta de Instagram se multiplicava vezes infinito em número de seguidores. Seria ela uma influencer? Finalmente no topo a ditar regras e a mandar bitaites que logo seriam lei? Percebeu que não. Era apenas uma mulher amada, por um homem estranho, pouco imaginativo, desleixado, que se vestia mal e com nada se preocupava, o que a irritava bastante, mas que de cada vez que a olhava amornava os seus medos, aquecia o seu coração e coroava-a como única no mundo. Isso é muito… ‘quentinho’. Talvez ela pudesse mudar um pouco, quem sabe!?

Moral da história:

Um amor quente é melhor do que um amor frio, até porque quando é frio, nunca é amor. Pelo menos do quente! Percebem isto, certo?

By Robert Doisneau

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