A mãe chorava. Agarrava o telemóvel nas mãos. Muito apertado. Contra o peito. A mãe chorava como ela, com soluços e baba e ranho que lhe saía do nariz e, também como ela, limpava tudo à manga do casaco. Não de pode fazer isso. Correu a ir buscar um lenço à mãe. Não chegava lá. Lembrou-se de papel higiénico. Também era bom. Também servia. A mãe sorriu a chorar e chorou ainda mais. Se calhar um lenço teria sido melhor. Iria buscar um banco, tentar chegar à prateleira onde sabia estarem os lenços de papel com que a mãe lhe limpava o nariz. Nisto toca o telefone da mãe, conhecia bem aquela música. Mas… Não era aquele que ela apertava contra o peito. Afinal, o telefone que a mãe apertava com força não era o seu, era o do pai. O telefone do pai fazia a mãe chorar. Tanto que a mãe não conseguiu atender o seu próprio telefone.

A mãe fez o impensável: atirou o telemóvel do pai à parede e disse coisas feias. A mãe passou a fazer muitas coisas estranhas. Cheirava a roupa do pai, gritava com ele, vigiava-o, seguia-o de carro… Dizia-lhe que tinham de estar de olho no pai, que ele lhes queria mal e que lhes andava a fazer coisas feias pelas costas. A mãe passou a dizer muitas coisas novas e a tratá-la como adulta, fazendo confissões inesperadas, daquelas que, antes a fariam calar-se se ela entrasse na sala e encontrasse a mãe a falar, por exemplo com a avó ou uma amiga. Agora, a mãe já contava com ela para assuntos sérios. Tão sérios que eram difíceis de compreender. Ela não entendia. Gostava tanto do pai! O que é que o telefone, a roupa e os atrasos do pai retiravam ao amor que ela lhe tinha? Nada. Retirariam qualidade e quantidade ao amor que o pai lhe tinha? Claro que sim, gritava a mãe. O pai já não gostava delas, avisou a mãe. Correu a ir buscar mais papel higiénico. Desta feita para si. O pai já não gostar dela era assunto triste, tão triste que não devia haver papel suficiente em casa para tanta água salgada. Sim, a professora tinha ensinado que as lágrimas são salgadas e era mesmo verdade. Escorriam-lhe para a boca, onde as bebia em silêncio, para não incomodar a mãe, o que apenas aumentaria a dor e desconcerto da mãe e fazê-la chorar também não sararia a dor que ela sentia tão lá dentro, bem no fundo da sua pessoa pequenina ainda. Mas por dentro somos todos tão fundos que o tamanho exterior apenas engana. As dores não são mais pequenas para as pessoas pequenas e maiores para as pessoas maiores.

Grandes e pequenos, no que toca a dores, são todos gigantescos lá dentro. Isso aprendeu ela bem depressa. Somos todos gigantes no choro. Lá dentro não há fundo, não tem fim. O pai não gostava dela? Como? O que poderia ter ela feito? O que teria a mãe descoberto no telefone do pai? Teria o pai escrito: ‘Já não gosto de vocês as duas’? Teria ele sido capaz disso? Seria isso tão verdade que ele tivesse de o confessar, assim, escrevendo? Então, porque o escreveu no seu próprio telefone? Usá-lo-ia como diário? À noite não teve outro remédio, perguntou ao pai: ‘Já não gostas de mim e da mãe?’. O pai ficou surpreendido. Abraçou-a. Claro que a amava muito. Jamais deixaria de a amar. ‘E da mãe, também gostas da mãe?’. Sim, também gostava da mãe, mas não disse que a amava ou que a amaria sempre. Percebeu que o pai gostava mais dela do que da mãe. Ficou triste. Não era assim. Antes, queria ela dizer. O pai, antes, gostava muito, muito das duas. Agora, apenas a amava a ela. A mãe tinha sido despromovida a ‘gostar’. Mas gostar não era mau. Teria de informar a mãe. Pressentiu, sem saber porquê que não deveria fazê-lo. Que podia ser pior. Qual a razão de ter pensado isso, não a sabia identificar. Mas sentia. A mãe estava um pouco enganada e, se calhar, um pouco certa. Chorou mais um pouco.

Depois, foi o pai quem passou a agir de forma estranha. Fazia coisas novas e que metiam medo. Tal e qual como as coisas novas que a mãe fazia. Batia com a porta, dizia palavras bruscas, com uma voz de trovão e tempestade. A mãe continuava nas palavras feias. Algumas completamente novas. Gritavam os dois. A mãe gritava mais e chorava e insultava. O pai reagia com brusquidão. O pai reagiu, uma vez, com brutalidade. Ela assistiu. A mãe contra a parede. Um estalo cujo som jamais sairá da sua cabeça. A mãe a deitar sangue do nariz. A mãe a tirar uma selfie com o telemóvel. A polícia, uma senhora que quis falar com ela e que, com o maior descaramento, lhe perguntava coisas sobre a mãe e o pai. Não se falam coisas dessas com estranhos. Apenas com a avó costumava falar assim, daquelas coisas que magoavam lá dentro. Se o pai lhe batia? Se a magoava? Se tomava banho com ela todos nus? Se lhe tocava? Que pai não toca? Mas percebeu que não devia usar de verdade, que a verdade seria outra coisa para aqueles ouvidos. Se o pai batia na mãe? Nunca lhe disseram sobre o que falar ou não com estranhos, mas isto nem era preciso que fosse dito. Estas coisas não eram perguntas bonitas e não tinha respostas certas para dar. Não percebia bem certas nuances, nem conhecia ainda a palavra nuance, mas entendia que o que quer que dissesse seria sempre uma resposta errada. Errada para a mãe ou errada para o pai. Não sabia o que dizer. Não falou. Passou a ter de visitar um médico. Era um doutor diferente, não tinha bata branca nem ouvia o coração. Falavam apenas e desenhavam… Também junto dele se sentia vigiada. Ficava sempre sem saber o que fazer. Deixou de fazer coisas. O pai sai de casa. Sempre era verdade. Ele já não devia amá-la. Pelo menos, já não assim tanto. Se calhar, também tinha sido despromovida a apenas ‘gostar’. A menos do que isso? Não precisou de banco, já conseguia chegar facilmente ao armário da casa de banho. Serviu-se de lenços de papel. Guardou outro pacote na mochila. Precisaria durante o dia, seguramente. Todos os dias precisava.

Já não via o pai todos os dias. A mãe continuava a aproveitar todas as oportunidades para insultar e dizer mal do pai. Se calhava a achar as acusações injustas, a mãe desatava num pranto, acusando-a de se ter passado para o lado dele. Havia lados? Qual era o seu lugar, então? Gritava que estava sozinha no mundo, que ela não compreendia o que o pai lhes tinha feito. Sabia agora que também a mãe já não devia gostar muito dela. Já não faziam coisas boas e divertidas. Sempre que o pai se atrasava a ir buscá-la ou a ir levá-la, ou segurança social, ou polícia. Um alvoroço. Perdia o gosto em ir ver o pai. Era sempre um circo. O pai desculpava-se demais. O pai não sabia o que lhe dizer. O pai levou-a a viajar de avião. Percebeu que andavam fugidos. Afinal, a mãe estava enganada, o pai gostava dela. O pai raptou-a. Veio o tribunal, a judiciária. Deixou de ir à escola. Apetecia-lhe uma cama única, onde pudesse dormir sempre, sem malas para trás e para a frente. Apetecia-lhe ter pais. Juntos ou separados, mas pais que lá estivessem. Percebeu que era órfã. O pai vivia agora com outra mulher. Não gostava dela. Não gostava do pai. O julgamento. Também ali não havia respostas certas e essa (in)certeza era um tormento que doía na enorme imensidão do seu interior, para aonde se mudara definitivamente, no dia em que o tribunal declara a mãe como inapta.

 

Odeia o pai e a mulher do pai e o novo irmão. Odeia a mãe que se deixou ficar para trás, agarrada à sua dor. Uma dor que continuava a querer impingir-lhe e cuja ferida a mãe escarafunchava sem cessar. Não permitia que ganhasse crosta. Logo que algo semelhante a hemoglobina coagulada assomava a superfície da pele ferida, lá ia ela sem demora, quase com zelo, de unha em riste, rasgar o tempo da cura. Impedir que sarasse. Era masoquista, insensível. Mas a sua dor era diferente da dor da mãe. A mãe tinha sido traída. Ela não. Porque insistiria em meter tudo no mesmo saco? Quanto ao pai… Que raio de homem mente e trai? Pode deixar de gostar, não é crime e é tão frequente e natural à natureza humana como começar a gostar. Não se escolhe, não se decide. Acontece. Mas não precisa de ser um merdas, um cobarde que oculta verdades e trai a mulher. Não há necessidade. Ela entende que ninguém consiga viver com a mãe, ela própria já não aguenta, mas fazer deliberadamente mal a alguém é do pior.

 

Volta a viver com ambos de forma alternada. A mãe vive no sofrimento, adotou o lugar de vítima, de todas as vítimas de todos os mundos de todas as galáxias. Tornou em ódio o amor e o ódio em amor, pelo que não conseguia ultrapassar a traição, a nova mulher do marido, a felicidade de uma nova família. ‘Ele só gosta do bastardo, não te iludas. És nada na vida dele, apenas te atura…’ Aumentava o som da música, desligava a mãe. O pai, um pobre coitado, entre o ódio e os ciúmes de uma e o amor e os ciúmes de outra. Parecia uma marioneta, sem saber o que dizer e fazer para que, lá em casa, não melindrasse a nova mulher nem magoasse a filha. Acabou uma nulidade que dava pena olhar. Gente mal resolvida. Gente que não é gente.

 

Um dia… Um dia, ela encontrou novos amigos, novas aventuras, novas formas de esquecer e anular a família. Não era feliz, mas quase conseguia sorrir. Ainda aquela imensidão gigantesca lá dentro. Um buraco enorme, solitário, abandonado, como também ela tinha sido, por duas pessoas que insistiam que a amavam mais do que tudo. Riu gargalhadas que soaram aos seus próprios ouvidos tétricas, assustadoras. Teve medo de si. A mãe que odiava, o pai de quem tinha pena. A mãe que se servia dela como jangada para atravessar a vida, para remar contra o pai, para se lamentar e vitimizar. A mãe, uma besta egoísta de quem tinha agora de tratar, de cuidar. Incapacitada. Debilitada em casa, numa eterna e irritante baixa médica.  O pai sem tomates para olhar de frente, com olhos de gente, sem empenho e espírito para tudo aquilo que deveria ser dito e feito. O tribunal e todo o resto que os parta sem saberem o que fazer mas a poder decidir, sempre mal, a vida de pessoas que jamais tiveram intensão de conhecer. Enquanto uns e outros e ainda outros tentavam viver as suas vidas, fazer valer as suas verdades e as suas mentiras, sempre tão geminadas, enquanto disseminavam o terror egocêntrico que diziam viver por causa dele ou por causa dela ou por causa disto e de mais aquilo, ninguém foi capaz de ver que a ela lhe tinham roubado, não a felicidade, mas os pais, a vida. Privaram-na da possibilidade de uma existência mediana que fosse, com possibilidade de felicidade e de tristeza como na média comum, dentro dos níveis normais. Tinham-na socado como saco de areia, na esperança de que cada embate pudesse magoar o outro, sem se aperceberem que quem era sovado era ela. Um ser pequenino que nunca conseguiu crescer como deve ser.

Num outro dia, ela tornou-se invisível. Ninguém a conseguia ver. A mãe culpou o pai, o pai culpou a mãe, mas talvez mais a si próprio. Os outros não se deram sequer ao trabalho de atribuir culpas ou responsabilidades, havia mais elas cujas vidas teriam de ser intervencionadas. Ela, na verdade, já não existia há muito. Tentou sorri. Não foi capaz. Recordou-se da rã e do escorpião de Esopo. Ela tinha sido a rã que ambos os escorpiões da sua vida viram como uma boleia – correção, a única boleia –, não para a felicidade, mas, cruel e curiosamente, para a infelicidade, para a vingança. Morreram, sem dar por isso, todos eles, ainda a margem do rio estava tão longe. Não teriam dado maiores possibilidades a cada um dos três? Tanta gente se meteu, se achou nesse direito e ninguém viu. Não compreenderam. Ignoraram. Não quiseram saber. Não amaram de verdade. Todos mortos. Sem vida e ainda com vida.

Num outro dia ainda, ela apenas deixou de ser. Um dia era, no outro já não. Um dia estava, no outro não. Apenas deixou de ser, mas não sem antes deitar o braço ao armário da casa de banho, agora tão pequeno e baixo a seus olhos. Tão insignificante, porém, tão significante. Ainda lá estavam os lenços de papel, os únicos que nunca a tinham deixado ficar mal. Sempre lá, à sua espera. Eles, o armário. Sempre presentes, no sítio de sempre. A absorverem as suas lágrimas, a compreenderem a sua dor. A beberem o seu sal. A sua vida tinha sido isso mesmo, um kleenex. Estava na hora de se assoar mais uma vez e de deitar mais este fora. Deitou.

Moral da história:

Atravesse os seus rios. Conquiste as suas próprias margens. Não se sirva dos outros e jamais daqueles que diz amar. Cada um tem o seu caminho pela frente, não torne o seu o de todos em seu redor. Todos acabarão sozinhos. Resumindo, não se dê tanta importância e… não queira ser estúpido. As dores passam, as cicatrizes não.

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