1. Recordava-se de, aos 25 anos, ter pensado, com alguma soberba e não menos alívio de que, para chegar aos 50 anos – uma idade ainda com algum proveito –, tinha pela frente outro tanto de vida. Lembra-se de se ter sentido feliz, grata, animada com a longa linha de vida que precedia ainda aquele seu instante. Isto fora os possíveis e previsíveis anos extra além de mais esses 25 anos. Achou precioso esse instante de perceção. Mas foi isso mesmo. Foi precisamente isso que aconteceu. Apenas um instante. Tão instante que mal deu por ele. Tão instante e impercetível que não dera por ele passar. Tão ínfimo e insignificante, afinal. Tinha agora 50 anos e a nostálgica incredulidade de que tal fosse mesmo verdade. Tinha dado pelos primeiros 25 anos com a argúcia de quem faz tudo pela primeira vez. Talvez tenha enchido esse primeiro período de primeiras vezes, a tal ponto que se terá limitado a repeti-las durante o segundo ato. Seria isso? Seria igual para todas as pessoas? Não. Parou. Claro que não. Quantas não chegam a completar os primeiros 25, sequer?! Outras tantas não alcançam o meio século. Meio século. Uma expressão que até então tinha apenas associado a acontecimentos históricos, jamais biográficos, e que lhe soava a dor de dentes.

Pior. Soava a diagnóstico de coisa ruim. “Não tenho boas notícias”, diria o médico, associando a este primeiro embate um pequeno, mas doloroso silêncio. “A Laura sofre de…, lamento dizê-lo, mas trata-se de meio século!” “Tem cura, doutor?”, perguntaria no mesmo segundo, olhando o médico nos olhos sem pestanejar, a fim de ler nos olhos dele o menor sinal de qualquer coisa, a menor suspeita de uma pinta de informação, nefasta que fosse. Ele que não lhe escondesse o que quer que fosse. Estava pronta para lutar. Havia medicação? Tomá-la-ia toda de bom grado. Qualquer tratamento experimental seria bem-vindo, mais as medicinas alternativas, as dietas pró-medicinais, e ainda mezinhas de curandeiro, se preciso fosse. Estava decidida a cumprir com todas… “Infelizmente não”, atalharia sem piedades clínicas o bom do homem, para não alimentar desnecessárias esperanças, vãs expectativas. “Não. É uma doença crónica e progressiva. A esse meio século somar-se-ão ainda mais anos, lamento muito. Não se morre de meio século, mas claro que, os anos que se seguem acabarão por, no derradeiro cúmulo final, não permitir salvação.” Assim. Sem mais. Sem menos. “Pode ser que morra bem antes disso, atropelada por um camião com 18 pneus de rodado ou com o clássico piano da BD.” O médico não se riu. Talvez por não saber ao certo se ela fazia uma piada ou se a deveria encaminhar para a ala psiquiátrica.

Meio século. Onde estão os segundos 25 anos da sua vida? Terão sido apenas segundas vezes, meras repetições do que já fizera nos primeiros e clamorosos 25? Ou ter-se-iam preenchido, também eles, de novidades, apenas não tão estrondosas quanto as que se colavam à sua memória, vindas dos primórdios da sua vida? Laura não conseguia perceber. Nem sequer percebia porque se sentia rigorosamente aquela mesma pessoa de 25 anos que recordava ter sido. Nem mais inteligente. Nem mais sábia. Nem mais experiente. Nem mais… Apenas mais velha. Apenas essa pessoa de 25 anos somada às parcelas: necessidade de pintar o cabelo + uso de maquilhagem mais frequente + recorrente nostalgia. Coisas de que antes não era acometida e que faziam, agora, parte do seu dia a dia de cinquentona. Credo! Como aquilo soava mal. Se morresse agora, com 50 anos, diriam apenas, com alguma comiseração: “Ainda era uma mulher nova, poderia ter vivido muitos mais anos, coitada!”, mas continuariam as suas vidas sem mais pensamentos. Ninguém se escandalizaria. Onde estava a mulher em que se deveria ter tornado? Ainda aguardava lugar? Já lá estava? Tinha estado e já se tinha ido embora?

Continuava a sentir-se infantil e a ter um constante valor residual de crença na idade adulta, como se esta ainda estivesse para chegar. Um dia, mais tarde, faço isto e mais aquilo. Acontece – e começava a pesar-lhe demasiado essa certeza –, que esse dia mais tarde já aí estava. Isto se não tivesse já passado. Estava na hora de fazer tudo aquilo que sempre tinha deixado para depois. Faria uma lista. Não podia esquecer-se de coisa alguma. Pegou no tablet. Não lhe ocorreram coisas para fazer. Como era possível? Ah, viajar mais. Isso. Organiza mentalmente os destinos que mais ambiciona conhecer. Organiza-os mentalmente por ordem alfabética. Percebe depois que isso era tão idiota quanto organizá-los por distância quilométrica. Tinha de os organizar por vontade de os conhecer. Este tinha de ser um top de paixões e não de meras questões práticas. Percebeu que, talvez, não fosse já a tal miúda de 25 anos, essa deixava-se guiar por impulsos e insanidades e jamais faria uma lista de coisas de que gostava para, depois, as concretizar, por ordem ou sem ela. A de 25 anos, apenas faria, se lhe apetecesse, quando lhe apetecesse. Parou. Não sabe bem quanto tempo, mas parou. A equação teria de ser de outro grau. Já estava longe das meras regras de três simples. Isto requeria introspeção, tempo e até, quem sabe, algum Freud. Não se tinha apercebido, mas a de 25 e a de 50, eram mulheres diferentes. Eram, mesmo!

Atitude. Comportamento. Postura perante a vida e, principalmente, mais assertividade perante os outros. Onde estava a atitude altiva de quem tem o mundo para conquistar? Onde estava o comportamento otimista e easy going de outrora? Onde estava o olhar de desafio e uma certa arrogância para lidar com os idiotas? Estes estão em todo o lado e, percebia com alguma tristeza, estavam a levar a melhor sobre si. Há quanto tempo não batia com a porta? Há quanto tempo não era verdadeiramente sincera numa conversa, consigo e com os outros? Será que sempre foi assim, e que apenas a juventude de então lhe permitia olhar-se com mais benevolência e bravura? Seria, afinal, a mesma acabrunhada de sempre, apenas agora se dando conta disso? Romantizara a sua personagem e apenas a falta de auto-aplauso do momento lho revelava? Teria sido sempre um fracasso? Ou ter-se-ia tornado num por via daquele conta-gotas que é o passar do tempo?

No trabalho, por exemplo. Era uma profissional de mérito, o qual podia medir até pela quantidade de pessoas que a odiavam. Era rigorosa e ambicionava a excelência – fosse isso o que quer que fosse –, no mais ínfimo dos seus atos profissionais. Um exercício desgastante, mas visível e reconhecido, ao ponto de afastar a típica malandragem de todo e qualquer escritório, por pouco pessoal que tenha. Mas, valeria mesmo a pena? A quem importava tudo isso a não ser a si própria? Não era óbvio que, mesmo profissionalmente, poderia estar bem melhor? Com mais tempo livre, com maior ordenado, com maior prestígio ou mais regalias? De que tinha servido tanto empenho e zelo perante uma mera atividade? Os lobos, como chamava aos calões, é que a levavam bem. Esses, podiam até não gastar menos energia, mas utilizavam-na em proveito próprio e pessoal. Enquanto ela não se incomodava com mais uma hora de serão, para adiantar o trabalho do dia seguinte, o qual acabava por exigir outro tanto para adiantar o do próximo dia e assim sucessivamente, os lobos gastavam energia laboral a fim de pouparem energia pessoal. Ou seja, dedicavam-se a esquemas que vestiam de temperamento ou necessidades familiares ou outras que os levavam a faltas de zelo, de rigor e até faltas físicas, que lhes permitiam utilizar mais tempo nas suas vidas pessoais. Estupidamente, ela marcava consultas médicas em tempo de férias, enquanto todos os outros faltavam as vezes necessárias para efeitos médicos utilizando o tempo regular. Claro que, por exporem fraquezas ou meras vidas problemáticas, acabavam por conquistar a simpatia alheia, até mesmo dos chefes e patrões ‘explorados’. Qualquer mente de esquerda simpatizaria desde logo com esse feito, o de ver o proletariado extorquir tempo e dinheiro ao patronato.

Um dos colegas, passava a vida doente. “Uma saúde tão frágil, coitado!”, comentavam os mais sensíveis, o que, obviamente, não era o seu caso. Coitada dela, que arcava com o trabalho que ele deixava por fazer, a fim de que o seu departamento não baixasse a produtividade.

Outra, cheia de filhos e familiares dependentes de si, se não eram festas da escola, médicos, saraus, provas desportivas e mais não sei o quê, tudo somado e era bem capaz de ter dois meses de férias à conta das faltas.

O caso mais bem conseguido era o de um tipo melodramático que todos os dias, ou quase, falava a alguém na vontade, na necessidade, ou apenas na ideia de suicídio. Ficava tudo em bicos de pés junto dele, não fosse dizer-se ou fazer-se algo que o levasse, finalmente, a cometer o ato. Os remorsos que isso não provocaria! O horror que não seria. O peso que não se arcaria para o resto da ‘vidinha’. Como é óbvio, ao cabo de quase 20 anos de ameaças em vão, Laura já tinha percebido que, ainda que psicologicamente grave e sincero, esse estado de alerta constante, não era mais do que o esquema pessoal encontrado por um indivíduo fraco para manipular o meio circundante. O que conseguia quase sem dificuldade e com enorme sucesso, como se pode imaginar.

Mas havia outros casos não menos calculados. A pieguice, aquela capacidade hedionda de soltar lágrimas à menor contrariedade, era outro trunfo de peso, normalmente manuseado com destreza pelo sexo feminino, o que a embaraçava duplamente, já que entendia que era um trunfo de eras em que não se lutava tão afincadamente pela conquista de direitos no feminino e em que as mulheres, submissas a um mundo que as esmagava, usavam as lágrimas para desarmar os opositores. Servir-se desse subterfúgio infantil era dar força ao paternalismo que ainda reinava descaradamente no universo profissional, não obstante a hipocrisia que o negava. Como Laura odiava tudo isso. Como odiava esses lobos que não caçavam, apenas se alimentando das carcaças, ainda cheias de carne, dos que realmente se esforçavam e dedicavam. Dos que todos os dias desbravavam a floresta em busca de presas frescas. Mas valeria mesmo a pena fazer do trabalho o centro da sua existência? Porque não usar de estratagemas idênticos, para também ela descansar um pouco da sofreguidão daquela engrenagem? Estaria ela disposta, até ao fim dos seus dias – e podiam já não ser assim tantos, esmagados sob o terrível e inequívoco diagnóstico de “meio século de vida” –, a caçar isoladamente, para alimentar aquela alcateia de malfeitores doutorados em esquemas? Acontece que essa era a sua natureza e isso, dificilmente se contraria.

Regressou ao trabalho, ao cabo de uns dias de férias, em que sobre tudo isto ruminou, para encontrar todo o trabalho pendente, que tinha sido atribuído, na sua ausência, a uma meia dúzia de colegas, ainda todo por fazer. Aguardavam o seu regresso, o seu empenho, a sua dedicação e conhecimento para os executar com excelência e rigor, ferramentas que a todos os outros pareciam faltar. Ficou para enlouquecer. Os seus olhos encheram-se de cólera. Sentiu as garras a saírem-lhe, cobrindo as suas unhas por pintar. O sangue afluía a sítios onde nunca antes o tinha sentido, nem se tinha permitido perceber que por lá poderia fluir. Levantou-se em modo agressivo, sentindo-se maior do que tudo o resto. Capaz de matar, achou mesmo, ainda que isso desagradasse ao seu pensamento lógico e metódico. O instinto parecia vencê-la. Havia no seu peito um ódio e uma fúria desconhecidos. Dirigiu-se ao gabinete do chefe, pronta a fazer a primeira vítima, naquela matilha de bandalhos sem princípios. Toda ela uma mulher diferente, uma mulher que desconhecia. Uma mulher Raposa, acossada na sua toca. Nisto, o impensável. O chefe todo compreensão. Todo ouvidos. Ela que descansasse mais uns dias. Ele sabia bem a dedicação, a paixão, disse-o mesmo, com que sempre desempenhara aquilo que lhe competia e muito mais. As garras ainda em riste, mas sem pescoço para atacar. A saliva a pingar-lhe dos beiços arreganhados e sem carne para estraçalhar. O que era aquilo? Pisava terreno desconhecido. Trilhos inexplorados. O solo cedia à sua passagem.

Sussurros entre os colegas. Que sabiam das suas idas ao hospital. Que sabiam da sua assiduidade no IPO. Que a sua descrição e coragem os emocionava. Que não estava sozinha. Que sairia vencedora. Que estavam do seu lado e que dispusesse de todo o tempo de que necessitasse, desde que não demasiado, claro, que a necessidade que fazia àquele escritório era por demais óbvia. Laura quase amoleceu, mas o animal em si ainda estava desperto. Com argúcia percebeu que, sem o inventar – disso jamais seria capaz –, tinha à sua frente um perfeito estratagema. Seria aquela que podia morrer a qualquer instante. Intocável, à beira da morte diária. Quase cedeu ao apelo selvagem de ser como os seus pares, seria agora a doentinha de serviço, mas sabia que não era igual àquela ralé de seres inferiores. Não revelou a sua vida de voluntariado. Não negou nem afirmou qualquer doença. Não estava para isso. Aproveitou antes para tirar do peito o muito que o ocupava há já demasiado tempo.

 

By Antonio Mora

Saiu daquele gabinete. A caminho do seu lugar, sussurrou ao suicida que se matasse de uma vez por todas; à mãe de muitos que bloqueasse as trompas ou deixasse de se achar com direito a ganhar o mesmo ordenado do que os outros, quando até as festas de Halloween das inúmeras escolas de toda aquela filharada serviam para faltas ‘compreensíveis’. Disse ao doente de manha crónica que sabia bem que ele não tinha ideia alguma do que era ser-se doente e que tantos anos de mentiras e falsas doenças acabariam por o matar de verdade. Continuou a desfiar um rosário de desabafos e insensibilidades mais próprios de uma miúda inconsequente de 20 e poucos anos do que de uma mulher de “meia idade”. Após tantos anos a calar injustiças, Laura estava tomada pela loucura. Desse dia em diante, o medo de que ela entrasse pelo escritório adentro munida de arma automática e meia dúzia de granadas – do próprio paiol de Tancos ou outro mais perto –, passou a ser uma possibilidade tão real para aquela ridícula matilha de parasitas que ninguém mais teve coragem de a contrariar. Sussurravam agora que o cancro seria no cérebro. Que além da quimio, ela recebia terapia psiquiátrica. Que era um caso sério de demência. Que não entendiam como é que os médicos não lhe impunham uma baixa forçada. Que deveriam achar que era mais terapêutico que ela mantivesse a sua rotina… A quantidade de disparates e o teor dos mesmos era de tal ordem que já mal cabiam nos corredores, por onde este tipo de ‘não informação’ sempre circula. Laura tinha o seu escudo protetor. Sempre que olhava fixamente alguém que ainda não tinha entregado um trabalho, ou terminado uma tarefa no prazo estipulado, todos temiam pela própria vida. Tinha-se tornado uma raposa arguta e destemida. Deveria usar, de quando em vez, uma cabeleira, para que acreditassem piamente que já estava careca? Ou deveria rapar mesmo o cabelo? A idade do meio pode, afinal, ser bem divertida. Tanto ou mais do que o recreio de uma escola primária. Mas esta diversão não fazia Laura sorrir. Esperteza não era jogar usando da mesma batota do que os outros.

 

Esperteza era encontrar o seu próprio jogo. Determinar as suas regras. Apenas aquelas que lhe permitissem ser feliz. Longe da podridão e do cheiro putrefacto de carcaças em decomposição, sobre a qual todos se debruçam com sofreguidão, achando-a uma delícia degustativa. Laura pediu licença sem vencimento (“claro, para se tratar, ela sempre foi muito orgulhosa”). Laura correu o mundo (“Últimas vontades que deseja cumprir, como a compreendo”). Laura colocou-se em primeiro lugar (Coitadinha, bem merece!”). Voltou mais livre e solta (“O que a eminência da morte não faz!”). Igualmente inquieta com a sua meia idade, mas menos soturna em relação a isso (“Agente habitua-se até a viver com a doença, é o que é!”). Aproveitava a vida de forma diferente (“Nem imagino o que será viver com aquele peso em cima!”). Não calava ofensas (“Deixa-a desabafar, só lhe pode fazer bem!”). Não permitia abusos e, na gaveta de cima, pelo sim, pelo não, mantinha uma linda peruca ruiva, cor predileta das raposas (“Todos sabem isso!”).

Moral da história: Saiba sempre aquilo que deve ter à mão nas gavetas do escritório.

 

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