Os rostos começavam a dar sinais de enfado. Metade da redação já dedilhava nos telemóveis. Combinações para a hora de almoço que se aproximava, consultas de e-mail, respostas urgentes relativas a assuntos de trabalho, ou pessoais, eventualmente um ou outro jornalista jogava para se entreter, que quando a palavra enfado foi inventada destinava-se, seguramente, a situações como aquela. Uma estucha semanal. Culpa do diretor, com aquele tom pesaroso e monocórdico, a dar espaço a que todos interrompessem, dando voz a qualquer disparate e tempo de antena a assuntos paralelos, como a avaria da máquina da água no primeiro piso, que ocupou mais de uma hora de comentários. Percebia-se logo quem ali trabalhava e quem fazia de conta. Bastava assistir a uma reunião de redação para ficar a par disso. Os melhores e mais produtivos nem lá punham os pés, marcando entrevistas e saídas em reportagem sempre que possível para a terça de manhã. Os que pouco ou nada faziam adoravam aquele espaço de ronha. Sempre parecia trabalho, mas na verdade era apenas conversa fiada. Os grandes temas iam-se decidindo dia a dia e o encontro semanal mais não servia do que para fazer o ponto da situação, dar celeridade às obras de Santa Engrácia, da autoria dos que acreditavam ser repórteres especiais e investigadores de fundo, e para fazer perder tempo a quem cumpria e realmente investigava.

“Estes momentos são importantes para o espírito de equipa”, defendia o editor “e para que nos guiemos todos pelas mesmas linhas. Por vezes, há coisa básicas que se vão perdendo na lide diária e é bom que certos princípios sejam reforçados”. Uma forma delicada de deixar passar a falta de pulso do diretor para comandar o seu exército e dar corda aos sapatos dos ronhosos. Fraca liderança aquela que não impõe limites e disciplina para não comprar chatices. Era um tipo exemplar, enquanto jornalista. Um dos melhores de sempre, mas um diretor sem pachorra para jornalistas e sem pulso ou vontade para os inspirar. Liderar pelo exemplo só funciona se os liderados aspirarem a ser bons no seu métier. Todos os outros, gabam-lhe o exemplo, mas prefeririam morrer, se preciso fosse, para não ter de o seguir, uma vez que isso daria imenso trabalho e exigiria dedicação. Já para não falar no tempo, que acabaria por faltar para os copos e os privilégios da profissão: algumas entradas gratuitas aqui e ali e ombrearem com gente que deveriam investigar em vez de bajular. Enfim, nem todos eram merecedores destas observações, mas bastavam dois ou três por caderno e já se desequilibrava o bom trabalho dos restantes.

Ao cabo de três horas de palpites mandados para o ar, e de sugestões de trabalho nas quais só os mais interessados pegavam – os de sempre –, as atenções estavam já consumidas por outros assuntos e igual número de urgências, algumas delas falsas, mas compreensíveis. Havia que saber pôr fim a uma reunião maçadora. Logo que as chefias saíram, Alice, da Política, pediu que todos ficassem, precisava de falar com todos os colegas.

– É do interesse de todos – frisou com alguma gravidade.

Respeitada em toda a redação, onde era uma voz assertiva, arguta e inteligente, Alice tinha contactos poderosos em muitas áreas além da sua, sendo uma fonte de informação preciosa para toda a equipa e uma pedra no sapato para a direção, já que era conhecida também por não baixar a crista em função de determinações superiores que desrespeitassem o seu código deontológico, ou que lhe cheirassem a imposição de poderes exteriores. Todos ficaram. O que Alice tinha para dizer era perturbador: o jornal preparava-se para encetar uma leva de despedimentos em todos os departamentos. Sabia-o de fonte segura e adiantava que a situação, periclitante em todos os órgãos de comunicação social, mesmo os financeiramente mais sólidos, não pouparia quem quer que não se revelasse absolutamente indispensável. Havia uma não muito gorda fatia destinada a indemnizações, mas não chegaria para todos, pelo que temia que medidas drásticas pudessem ser tomadas à revelia do previsto no Código de Trabalho. Adivinhavam-se tempos difíceis, aos quais sobreviveriam apenas alguns e para que todos saíssem de alguma forma a ganhar, era imperioso que se mantivessem unidos e concertados na ação coletiva contra a administração. Com as atenções consumidas pelo choque e pela falta de alimento, já eram quase 15 horas, a maioria desvalorizou.

Eles que avançassem e logo se veria como reagiriam. Sem saberem o que pretendiam, e em que moldes ponderavam fazê-lo, se é que o fariam, tudo não passava de especulação. Já tinham sobrevivido a tempos mais difíceis e sempre tinham conseguido passar pelos intervalos da chuva. Não era a primeira vez, e todos o sabiam, que conversas de bastidores como esta tinham vindo a lume desestabilizar a redação. Querem apenas amedrontar-nos e, com isso, que obedeçamos sem questionar a alguma coisa que pudesse estar para vir, mas que bem poderia ser uma mudança no topo, uma nova ordem de poderes. Alice contestava, alertando que nunca antes a situação se apresentara tão dramática nem as diretrizes tão cegas. Querem menos 70% dos encargos. Sem esse corte brutal, a empresa, defendem, não é viável. Vendas em queda livre, proveitos publicitários a caírem a pique, menos leitores em todas as plataformas e concorrência desleal por parte de sites com meia dúzia de estagiários a custo zero não permitiam muita margem de manobra, nem criatividade que salvasse o déficit crescente. Alice sentiu-se a remar contra uma forte corrente de descrentes. Nunca imaginou tal desfecho. Acreditou que aquela notícia fosse o início de um longo debate de redação, com plenários fora de horas e lotação esgotada. Que todos encetassem contactos para obter mais e mais precisa informação sobre aquilo que a empresa tencionava fazer. Acreditou até que granjearia louros por partilhar uma informação tão preciosa. Nada. Ou antes, tudo ao contrário. Gente desinteressada, achando que aquilo era uma manobra para atemorizar as vozes mais contestatárias e que a haver um alvo ele seria precisamente Alice, que tinha prazer em estar sempre contra qualquer ideia que viesse de cima.

By Toni Frissell

– Isto deve ser mais um recado para ela do que para a redação.

– Reage assim por temer pelo seu belo posto de edição de um dos cadernos mais influentes.

– O primeiro-ministro deve estar farto dela e já deve ter enviado uma mensagem lá para cima.

– Se alguém se deve acautelar é ela.

Estes foram alguns dos comentários que ainda conseguiu apanhar, enquanto se dirigia para a sua secretária.

Alice não voltou ao assunto. Na verdade, passou a estar cada vez mais ausente na redação e mesmo nas soporíferas reuniões de terça de manhã. A sua editoria saiu com três caxas seguidas, com casos bicudos e que colocaram o país em rebuliço, sinal de que não estava parada, nem se tinha rendido. Ganhava peso dentro e fora do jornal. Era citada em todos os telejornais, onde não se incomodava de dar o seu testemunho por escrito, mas nunca a cara.

By Vivian Maier

Semanas e meses se interpuseram entre o seu alerta interno e o dia em que foi convocada uma reunião-geral. Ninguém somou dois mais dois, pelo que foi com alguma surpresa que ouviram os administradores, perante um auditório gigantesco, ocupado por todos os funcionários da empresa, do Sr. Gusmão, da portaria, a todo o gabinete executivo, com o departamento financeiro à cabeça, liderando os trabalhos. Era muito simples, a fim de manter o jornal aberto, o despedimento de um significativo coletivo de funcionários iria avançar já no dia seguinte. Havia listas de dispensáveis – não foi dito desta forma, claro está –, pessoal que poderia ficar enquanto colaborador externo ou em part-time, departamentos que se aglutinariam, caso da cultura e sociedade, entre outras propostas já bem definidas. Acima de tudo, deixavam claro que a ‘mama’, que já mal dava leite, tinha acabado. Estava esgotada. Vazia. Quem ficava e quem saía era aquilo que dominava a mente de todos, de repente assustados e indignados alternadamente, mas todos rezando às alminhas para que o seu nome ficasse de fora desse medonho escrutínio. Mentalmente faziam-se contas e fatores que anteriormente suscitavam ódios e rivalidades interinas, como a maior remuneração de alguns jornalistas, eram agora vistos como vantajosos para quem recebia menos. Num processo destes, um ordenado menor vale mais para um administrador do que um bom profissional, que a meritocracia nunca tinha vigorado em pleno naquela redação. Todos pensavam por si. Aqueles que eram mais bem pagos convenciam-se de que mais valia ficarem com um nome de peso, que poderia compensar a falta de quantidade, pela qualidade dos artigos… Era o salve-se quem puder, mas nem todos podiam salvar-se e, no final, não iam todos ficar bem, como bem se sabia.

David Frost By Terence Spencer

A ocasião, que ao contrário das reuniões de redação se alongavam para lá do enfado, foi curta e grossa, sem margem para questões e tudo recambiado para os respetivos departamentos onde poderiam esclarecer dúvidas e esbracejar fúrias. Claro que houve um levantamento de descontentamento. Vozes azedas, insultos à direção e à forma como tudo estava a ser apresentado. Ameaças de processos e de revelação de segredos financeiros e administrativos. Houve lágrimas de frustração e vozes que clamavam calma. Houve de tudo. Quando o ruído deu lugar a um burburinho sobre o qual se conseguia fazer ouvir, o gerente informou que tinha um último anúncio a fazer: quem seria o novo diretor. Alguém das relações da administração, um lambe-botas da vida, um vendido, não seria um jornalista daquela redação seguramente. Olhava-se em redor, tentando perceber um sinal de informação no rosto de alguém. Ninguém se denunciava. Ninguém sobressaía. Todos se sentiam às escuras. Todos menos um. Um que soube jogar bem com a falta de união de uma redação preenchida com vedetas ou aspirantes a tal. Um, que não havendo a quem dar a mão uniu esforços próprios. Alguém que não conseguindo salvar muitos decidiu ajudar-se a si próprio. Um que viu mais longe e cuidou de salvaguardar os seus interesses sem comprometer a idoneidade do seu trabalho. Alguém que agiu com astúcia, como de resto fazia em nome de uma boa notícia, de uma preciosa informação. Alice.

Moral da história:

Na política, todos se salvam.

Partilhar