Pela janela de vidro no final daquele vagão, de frente para a janela de vidro do vagão que imediatamente se lhe seguia, começaram a perceber-se movimentações estranhas. Braços erguidos que se mantinham no ar ou gesticulavam energicamente, como que bramindo ameaças inaudíveis. Cabeças que se erguiam e baixavam. Mãos que se colocavam em frente à boca, num claro sinal de susto e medo. Bocas abertas que gritavam. Seguramente gritavam, ainda que os seus gritos não chegassem a atravessar ambos os vidros que separavam uma carruagem da outra, nem conseguissem fazer-se ouvir por cima dos barulhos metálicos das carruagens em movimento. Nisto, um som diferente de todos os outros. Uma pistola no ar. Um homem de rosto enraivecido. Gritos silenciosos que saem das bocas dos passageiros da carruagem onde tudo acontecia. O cheiro a pânico. A incerteza. O medo que chegou por contágio. A aflição. Na carruagem vizinha inicia-se a conversa urgente sobre o que fazer para ajudar.
– Ligar para o 112, claro. Informar sobre tudo o que se está a passar.
– Filmar tudo o que acontece na carruagem do lado, colocando-as em streaming, num direto contínuo. Grandes planos do homem armado.
– Isso vai cumprir apenas os propósitos do criminoso, que quer tempo de antena e rótulos de radical extremista, ou de anarquista ou qualquer outro ‘ista’, tão em voga.
– Além disso, vai lançar o pânico entre familiares e alimentar as televisões sensacionalistas.
– Acionar o travão de urgência.
– Isso pode levar o homem a disparar indiscriminadamente. Encurralado, pode acabar por matar todos.
– A arma é automática. Quantas balas leva, alguém sabe?
– Vamos abrir as portas e entrar naquela carruagem.
– Isso. Temos o treino do cinema. Sabemos como é possível.
Todos parecem, mais ou menos de acordo com a necessidade de agir. De fazer algo em auxílio dos demais. Um auxílio que serve todos. Não se sabe se o homem não avançará para esta carruagem, ou se um tiro não acabe disparado na direção desta carruagem, onde se vive um pânico ainda de empréstimo. Ou se, na próxima paragem, aquele homem, ou outros que possam estar a agir em conluio com aquele homem noutras carruagens da mesma composição, não avançam sobre quem entra e sai ou forçam a entrada a tiro noutras carruagens, ou apenas disparam indiscriminadamente sobre a multidão na plataforma. Sobre eles próprios. O que quer que fizessem estariam a fazê-lo também por eles, para o bem próprio. Salvar os outros, era inequivocamente salvar-se a si mesmos. Observaram-se todos os rostos dessa carruagem, em busca de informação suspeita em todos os rostos e corpos. A um gordo pediu-se que abrisse o casaco, para confirmar se não teria um colete-bomba. O homem sentiu-se acossado na sua diferença. Não era hora para contrariar vontades. Fazer recair ódios sobre si e a sua obesidade. Não era hora. O seu relógio também lhe anunciava que não era hora para morrer por um disparate, por questões de autoestima, da qual, de resto, já pouco ou nada tinha. Abriu o casaco, que era fino, afinal, não escondendo mais do que um acolchoado de banhas e dobras de corpo mole e esponjoso. Tentou perceber-se se alguém agia de forma diferente. Todos pareciam em genuíno pânico. Todos dispostos a fazer algo. Fugir era o principal ensejo, mas tal não seria possível para já.
Parecia haver um único plano concebível. Tentar a entrada na outra carruagem. Imobilizar o homem. Tirar-lhe a arma. Travar, então, a composição, que caminhava desenfreadamente por túneis de escuridão. Serem condecorados como heróis nacionais. Acabarem retratados num filme de Hollywood, com atores oscarizados a desempenharem o seu heroísmo e tenacidade. Era simples.
– E se outro grupo de pessoas avançasse, em simultâneo, em direção oposta, rumo às carruagens vizinhas que ainda não se aperceberam do drama?
– Excelente. Passava-se a informação e obtinham-se reforços.
Ainda que sem unanimidade em relação a todas as decisões, tudo avançou, incluindo filmagens da ocorrência, pedidos de socorro, a indicação de que todos se deveriam manter mais ao nível do chão, por causa de balas perdidas, e um grupo que tentava discretamente avisar as pessoas da outra carruagem, onde ainda reinava a tranquilidade de uma manhã de idas para o emprego, e tentar a colaboração, para ver se conseguiam transitar de uma carruagem para a outra sem despertar a atenção do criminoso, ou apenas daquele homem desesperado que avançava de arma em punho, em nome sabiam lá do quê, ou com que razões defenderia os seus atos de violência.
Na carruagem onde todo o drama decorria, o homem tinha já um refém, uma mulher visivelmente grávida. A cena era caricata, já que, agarrada pelo pescoço, onde o homem tinha enlaçado o braço esquerdo, a mulher parecia já obliterada. Parecia ter duas partes distintas, uma cabeça muito pequena e uma barriga gigantesca, unidas apenas pela banda adesiva que parecia o braço do opressor. Percebeu-se novo tiro. A bala, desta vez, fez ricochete no teto e atingiu um passageiro do sexo masculino. Gritos. Ainda mais gritos. Agora, também sangue. Desespero. Dois homens que avançam para o já assassino e que são mortos de imediato. O pânico. A grávida perde os sentidos, mas mantém-se de pé por conta do braço do homem que a segura, como se ela não representasse peso extra. A adrenalina é poderosa.
Era hora de agir. De tentar surpreendê-lo de rompante. De acabar com a chacina. De salvar a própria vida. O homem dirige-se agora para esta carruagem, voltando-lhe as costas a fim de melhor controlar o cenário no espaço onde se encontra. Era a deixa para os futuros bravos heróis, que Marcelo receberia ainda no dia seguinte, seguramente.
– Ok. Quem se voluntaria?
O político descartou-se em primeiríssimo lugar. Tinha uma ligeira enxaqueca, além de que não tardaria a esquecer todo o assunto e que, por conta dessa amnésia futura que a todos os da sua profissão acomete em horas de aperto, mais valia que não contassem desde já consigo para a empreitada. Mas que dessem como garantido todo o seu apoio, obviamente.
O homem de fé rezava fervorosamente, dando dessa forma o seu contributo para a causa. Mais não lhe podiam pedir, que era homem de paz e não de guerra. Mas que não se apoquentassem, pois a todos incluiria nas suas preces e de nenhum deles se esqueceria nas suas conversas com a divindade.
O jornalista não podia, esclareceu. Como poderia reportar se morresse? Ou mesmo se avançasse? Ninguém teria o mesmo olhar isento que ele, devido ao treino profissional de tantas andanças, o qual lançaria sobre aquele hediondo episódio. Podia, inquestionavelmente, contar com o seu sangue frio para contar a história com veracidade e honestidade.
O desportista alegou que não se podia lesionar e que essa era uma séria probabilidade se começasse a arrombar portas e a saltar de carruagem em carruagem. Mas quando erguesse a próxima taça, ela seria dedicada a todos eles.
O economista não podia, como era bom de compreender. Quem ficaria a fazer as contas e os cálculos, incluindo de tal desgraça. O deve e o haver da vida e daquele caso também.
O arquiteto não poderia deixar de arquitetar, pois quem, senão ele, para erguer de novo a casa de tudo aquilo e para todos aqueles?
O engenheiro de estruturas tinha a meio uma estrada que, mais do que lugares, ligaria pessoas e sem essas ligações as pessoas poderiam embrutecer e dar origem a mais terror como aquele que presenciavam.
Para o médico era impensável arriscar a vida de outra forma que não fosse apenas a curar. Já lhe bastaria o que teria de fazer quando tudo aquilo se desenrolasse e os feridos o olhassem com urgências de socorro. Teria de estar alerta e ser célere. Com todos os sentidos em sentido para agir com a máxima acuidade.
O cozinheiro tinha uma perna de borrego a assar no forno, caso contrário, poderiam ter contado com ele, mas, assim…
O humorista tentava ironizar a situação, vesti-la de suficiente negrume para que pudesse servir de material de trabalho, daquela espécie boa de material de trabalho, que permitisse, depois, exorcizar a situação, tirar-lhe parte do drama e permitir o luto. Ele faria demasiada falta, pelo que não se podia sacrificar, que o riso é necessário e cura os espíritos.
A mãe não podia, por causa dos filhos.
Os filhos não podiam, por causa das mães.
O herói não podia, não tinha trazido a sua capa.
O homem sem pernas, obviamente não podia e, olhando para ele, os homens com pernas também não podiam, para garantir que mantinham as suas.
O músico não iria, porque compunha e tocava e tocava tanto e tão bem que tocava os corações, os mesmos que necessitariam e conforto depois de todo o sangue arrumado.
O cantor porque cantava o amor e também a dor e teria, depois, que versar sobre o assunto, para que jamais fosse esquecido.
A mulher que limpava, porque limpava e sabe Deus o tanto que haveria para limpar depois de tudo terminado.
Nesse dia, as notícias deram conta de um ato terrorista no Metro. Na linha negra. Carruagens pejadas de cobardes, a abarrotar de gente que falava muito, mas fazia pouco, que tinham explodido de inanição, perante um ator louco que ensaiava uma peça de teatro imersiva usando uma arma e insanidade bem reais, mas não tão reais quanto as imagens virtuais, por estes dias já virais, de toda a ocorrência.
Moral da história:
O que dizemos não nos define nem sequer importa. Somos apenas aquilo que fazemos. Quando não fazemos, somos apenas nada. Uma incógnita, um cobarde ou um homem morto. Pior ainda, podemos ser apenas indiferentes,
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