Gabriela olhava o balde de tinta e o rolo de papel bege esticado no chão alternadamente. De tanto olhar a cor preta da tinta, esta começava já a parecer-lhe azul. O papel bege continuava bege. Ainda bem. Sentia o que deveria escrever, mas não encontrava as palavras certas nem a sua ordem exata na frase. Pegou no pincel. Brincava ainda e apenas com a tinta, embebendo o pincel redondo e depois escorrendo-o ligeiramente por meio de fricção na lateral interior da lata, ensaiando depois e ainda no ar, para testar tamanho de letra e ajustes à dimensão do papel.

– Deixa-te de brincadeiras. Temos de ter tudo pronto até amanhã de manhã.

A voz de Sérgia retirou-a daquele lugar vago, flutuante, onírico e criativo onde colhia todas as suas ideias e transportou-a, de um supetão, para um espaço exíguo e estridente, que se movia aos solavancos e lhe causava vómitos. Foi como saltar de um miradouro natural divino para uma chávena rotativa num deprimente carrocel de aldeia. Incapaz de respeitar os métodos das restantes colegas de luta urbana protestante, Sérgia encanitava-lhe todo o sistema. Que voz irritante e que mulher chata.

Respondeu-lhe prontamente com uma frase acabada de chegar ao seu cérebro:

“Mulheres, deixem de criticar mulheres!”

By Vivian Maier

A outra nem se tocou.

– Fraquinho, Gabriela. Consegues fazer melhor? Eu tenho já umas 300 frases melhores e bem mais apelativas do que essa a rodarem na minha cabeça e só agora aqui cheguei.

Gabriela achou aquele reparo extraordinariamente incómodo. Não apenas por ter sido proferido de forma a que todos os envolvidos na atividade da associação ouvissem, como era altamente injusto.

– Se são assim tão boas, porque não deixas que rebolem já para o cartaz? Três centenas vão demorar o seu tempo, é bom que te apresses, ou receias a avaliação de terceiros?

Preciosa era mesmo uma preciosidade. Uma tipa companheira e descomplicada. Sempre justa e interventiva. Sempre atenta e participativa, com mais empenho ainda na defesa dos mais fracos ou em minoria, como era claramente o seu caso. Gabriela participava pela primeira vez no grupo criativo da associação feminista AntIsta, assim batizada por se opor a todo o tipo de ‘istas’, com racistas, fascistas, sexistas e machistas no topo da listagem. “Com mais de 30 anos de ativismo”, como se gabava Sérgia a cada cinco minutos, deveria ser mais compreensiva e inclusiva em relação aos seus pares, todos eles mulheres empenhadas em fazer a diferença e em dar a cara pela causa comum, a tão falada e pouco praticada igualdade de género, ou qualquer outro género de igualdade.

Preciosa também era uma das novatas, mas demonstrava uma enorme segurança e maturidade. Chegava-se sempre à frente para dizer o que pensava e para nivelar os pratos da balança em situações de injustiça. Já a tinha visto em ação em ocasiões semelhantes e tinha por ela enorme admiração. Gabriela, por seu turno, sabia como se amedrontava ao menor sinal de hostilidade ou mero confronto, nunca acertando no que dizer, nunca conseguindo defender-se, mesmo quando coberta de razão e indignação.

Gabriela reviu as frases que tinha criado até ao momento. Encontravam-se já na fase de secagem e impermeabilização – para que não se esborratassem com uma eventual carga de água policial ou de outras ‘milícias’. Releu-as e ainda lhe pareciam melhor agora do que quando as criou.

– A minha minissaia não é o meu consentimento

– A violação já existia antes do meu decote

– Todos nascemos de uma mãe!

– Só eu decido sobre o meu corpo

– Se eu digo não, é violação!

– Não é não!

– O machismo mata, o feminismo não

– Se uso pouca roupa é porque tenho calor e não porque quero ser violada

– Hoje foi uma desconhecida, amanhã será a tua filha

– Não sou eu que provoco. És tu que não te controlas

– O que eu visto não justifica o que tu fazes

Claro que nenhuma batia a de Preciosa:

“Não ensinem as raparigas a vestir-se. Ensinam os rapazes a não violar”

“Masturba-te!” era outro dos seus clássicos, sempre presente em todas as manifestações. Era também uma das mais mediáticas e replicadas nas redes sociais, a par de “Masturbação sim. Violação não”, ou “Masturbação não mata, violação sim”.

Ainda assim, Gabriela não se envergonhava do seu trabalho. Estava mesmo a ser bastante lisonjeado por todas as colegas daquela ação. Preciosa percebeu aquele gesto de autovalidação de Gabriela e juntou-se-lhe naquela leitura silenciosa.

– Estão o máximo! És boa nisto. Continua e não ligues à empertigadinha. Estou para ver as 300 frases dela. Desde que aqui cheguei só a ouço mandar bitaites, mas contribuir efetivamente, nem por isso. Aquela tipa é movida a inveja. Reconheço o género à distância. Como podemos gritar igualdade com fulanas destas que se acham superiores às próprias colegas?

Falando agora mais alto, para que a mensagem chegasse sem interferências aos ouvidos de Sérgia, Preciosa lança para o ar:

– Onde para a fraternidade e a interajuda? E a sororidade?

Daquele lugar alto de onde olhava sempre os restantes humanos, Sérgia ignorou imperialmente tudo e todos e continuou fazendo reparos aqui e ali, sem se deter ou acabrunhar. Gabriela começou mesmo a achar que o propósito era menos humilhar as pessoas – ainda que daí retirasse óbvio prazer –, e mais para se enaltecer, autoelogiar e sobressair. Quanto mis rebaixasse o mundo à sua volta, mais ar tinha sobre a sua cabeça para se erguer e destacar. Havia ali a sua quota parte de carência, de necessidade de validação perante terceiros e, talvez, receios profundos e fundados de uma inferioridade que possivelmente sentiria, sob todo aquele manto de arrogância.

– Pode dar-se apenas o caso de ser estúpida. Há pessoas assim, simplesmente estúpidas. Sem razões nem desculpas, apenas estúpidas.

Preciosa também devia ler a mente e ter poderes telepáticos, pois saiu-se com esta, como se tivesse podido ouvir o que Gabriela pensava.

– Eu não estava a pedi-las, porque ninguém pede para ser violado.

Esta foi outra das frases que Gabriela tentava grafar num novo cartaz. Demasiado longa. Talvez juntando dois cartazes ou optar por uma bandeira ou um mupi… Podia funcionar.

– Agora escreves poemas? Queremos slogans e não as 1001 noites de aborrecimento. Vê se arrumas as ideias e resumes as frases, Gabriela.

A insuportável Sérgia não largava o osso, ou melhor, a carne tenra de Gabriela. Mas muito tinha mudado desde o último embate. Muito. Quase tudo, na verdade, que quer aprender acaba por fazê-lo, por vezes mesmo de forma inesperada. Muito tinha mudado, ainda que há apenas alguns minutos de distância daquele instante. Num inteligente volte-face, agarrando aquele momento que sempre lhe escapava, reconhecendo ao longe aquilo que deveria ser dito naquele exato momento, e por tudo isso mal se reconhecendo, Gabriela abre a boca e, num tom calmo, propositadamente humilde e quase de aprendiz, diz:

   

– Tens razão, Sérgia. Necessito da tua ajuda sénior. Da tua inteligência e sagacidade. Podes resumir o conceito, para eu aprender? Afinal, és uma figura mítica, por aqui, e ainda não tive a oportunidade, nem o privilégio, claro, de te ver em ação. Será que podes?

Sérgia ainda tentou fazer de conta que não tinha ouvido, seguindo em frente, mas os astros tinham-se reunido naquele momento de silêncio em que todos tinham escutado o pedido de Gabriela e a olhavam aguardando a solução da ‘perita’ para o problema da criticada extensão da frase de Gabriela. Parecia que o tempo tinha parado. Todos tinham interrompido o que estavam a fazer, para melhor apreciar o momento enquanto esperavam ouvir a resposta certa à pergunta para o milhão de dólares num qualquer concurso de cultura geral. Como se desenvencilharia Sérgia desta provação? Como solucionaria o problema? Por um lado, o indisfarçável orgulho pelos elogios que lhe eram dirigidos e que, a avaliar pela postura do grupo, todos teriam ouvido. Por outro, as faces absurdamente roborizadas denunciavam não a vaidade, a qual aceitava frivolamente sem alteração de cores corporais, mas antes o embaraço. Era boa a criticar e a mandar abaixo, a congratular-se por um passado que bradava aos quatro ventos, mas que bem podia ser totalmente inventado. Ninguém conhecia o produto do seu trabalho. Ninguém sabia por onde tinha andado, na verdade, nem o que por lá teria feito. Apenas os tais 30 anos de experiência e muita sapiência autoproclamadas aos berros, mas jamais testemunhadas. Entre a soberba e a irritação, Sérgia reage:

– Achas mesmo que podes ficar com os créditos da minha genialidade? Aquilo que melhor posso fazer por ti +e criticar o teu trabalho e levar-te a melhorá-lo. Não me compete fazê-lo por ti.

– Mas eu não estou a fazê-lo por mim. Julgo que ninguém aqui o faz apenas por si, mas por todas, pelo todo, pelo bem maior. Desculpa se entendi mal o propósito desta missão. Assim sendo, a minha frase está ótima.

– Se tu o dizes, mas não é o que penso.

– Talvez devesses pensar menos e trabalhar mais. Esse papel de docente na reforma não é lá muito pedagógico, e deixa muito a desejar enquanto metodologia de ensino, menos ainda enquanto modelo inspiracional. Liderar pelo exemplo é sempre o mais eficaz.

Se isto fosse um conto infantil, a carecer do desfecho moral, Sérgia e toda a sua basófia acabariam desmascaradas. Todos ririam de quão falsa e incapaz se revelava a pessoa que se apregoava como a melhor do universo na tarefa de idealizar mantras para manifestações feministas e acabaria humilhada a mulher que todas criticava e humilhava. Mas falamos do mundo real. O pequeno séquito de ressabiadas que idolatravam Sérgia saiu em sua defesa, com esgares e comentários sarcásticos sobre a má-educação e o desplante da ‘novata’. A própria ergueu-se uns metros acima do solo e lançou sobre Gabriela o seu desprezo. Em breve, o grupo que aguardava o desfecho do pequeno confronto, desfez-se naturalmente. Uns embrenhados nos seus afazeres, outros comentando como tudo aquilo era tão estéril e desnecessário, quando havia um prazo apertado para deixar tudo pronto para o dia seguinte e a vida lá continuou. Os criativos a serem criticados, e os que criticavam a serem objeto de admiração. Porque o mundo ao contrário é o modo de ser do mundo, ou ainda não repararam? Além disso, todos ali tinham como lema um célebre cartaz que dizia que mulheres zangadas mudariam o mundo, pelo que havendo zanga estariam já mais perto do seu propósito e não havia tempo para pensar o contrário.

Moral da história:

 

Faz sempre mais barulho um mealheiro com poucas moedas e quem tem pouco para dizer, mas como o faz, de facto, acaba por ser ouvido, já que o silêncio é sempre mais difícil de decifrar. Já agora, a galinha da vizinha nem sempre é mais gorda, e há mesmo vizinhos que não têm galináceos. Precisava de tirar isto do peito.

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