Dentro do carro – que cumpria as funções de quarto de motel, bar, cinema, sala de concertos, café e qualquer outra valência necessária a amantes clandestinos – Ezequiel Eduardo olhava Vanessa Caetana com ternura. Não a fixava realmente, apenas repousava nela o seu olhar estático e imóvel ao ponto de desfocar o seu rosto, misturando um olho com o nariz e sobrepondo tudo nos lábios que desciam já para o pescoço. Ainda assim, era ela, mas sem ter de ser ela. Mas era ela.

Havia carinho naquele olhar desfocado. Só algo mais forte ainda do que o destino uniria no pecado da carne dois seres tão criativamente desafortunados. A começar, desde logo, pelos prefixos da nomenclatura. Ezequiel nunca duvidara de que toda a sua existência teria tido um outro rumo se não carregasse o peso do primeiro nome. Ezequiel era um fardo demasiado pesado para se conseguir esgrimir com agilidade todos os desafios sociais, sofrimentos e angústias presentes em qualquer recreio de escola. Qualquer recreio, na verdade, dentro ou fora do contexto escolar e em qualquer nível de ensino ou espaço profissional. De um Ezequiel imaginam-se e esperam-se coisas distintas de um outro nome qualquer. Tivesse Eduardo antecedido Ezequiel e logo esse homem, que todos julgam conhecer por conta de um nome, se apresentaria de outra forma. Mais senhor de si, mais seguro, mais apto a não se deixar intimidar com piadolas parvas no circo habitual do vexatório bullying verbal, em qualquer idade ou fase da vida. Ezequiel é daqueles nomes demasiado longos, demasiado velhos, demasiado tudo para uma criança. Ezequiel sempre despontou a intimidação sistemática, o gozo fácil.

– Somos nós que fazemos o nome e não o contrário.

Ezequiel tentava que assim fosse, esforçara-se para que a mãe tivesse razão, e que os seus atos, bravura e personalidade se sobrepusessem aristocrática e nobremente sobre a plebe que o seu nome sugeria e que nem a frequência de meios religiosos, como a catequese, reabilitavam aos olhos de colegas e amigos. Ezequiel estava para os nomes próprios como um defeito físico ou incapacidade motora para o corpo. Era uma marca indelével no escadote social que fazia com que dele esperassem que aguardasse apenas a sua vez antes mesmo de colocar o pé no primeiro degrau. Nunca, na verdade, conseguira Ezequiel combater Ezequiel. Nunca Ezequiel conseguira evitar o seu próprio preconceito, deixando-se calcar por aquilo que ele próprio achava do seu nome de batismo: uma catástrofe bíblica. Aguardava ainda a sua vez antes do tal primeiro degrau.

Tivesse Eduardo vingado sobre Ezequiel e tudo seria diferente. Uma outra visão do mundo. Uma outra postura. Uma diferente recetividade por parte dos outros. Tudo distinto. Mas Eduardo nunca conseguiu obliterar Ezequiel. Um nome que, tal como a peste chegava antes de sequer de se fazer anunciar. Por isso era terno o seu olhar desfocado sobre Vanessa Caetana. Revia-se no infortúnio batismal, na ordem inversa do destino nominal e imaginava o muito que uma Caetana poderia ter conquistado na vida por oposição a uma Vanessa. Isso encantou-o inicialmente e juntos estavam decididos a encarar o mundo, aquele a que ambos davam início, aquele mundo que nascia apenas e agora graças à sua união, enquanto Eduardo e Caetana. Praticamente um casal real, a ombrear em ex aequo com Pedro e Inês, William e Kate, Charles e Camila… Naquele vaguear da mente, apoiado pelo ainda desfocado e incerto olhar sobre a amante, Ezequiel lembrou-se, claro, do rei Balduíno, da Bélgica, filho de um Leopoldo e marido de uma Fabíola, tudo nomes equiparadamente infelizes, mas que, contrariamente ao seu, faziam anteceder o seu infortúnio por títulos nobiliárquicos o que, óbvia e imediatamente, anula o que quer que se lhe coloque na frente. Um cocó real será sempre real, não obstante não passar de um cocó. Já um cocó do povo… Enfim.

Pode até ter sempre estado nas suas mãos mudar o destino, pontapear o seu fado nas cordas mais duras e impor uma nova ordem nos seus universos. A verdade, porém, é que nem Ezequiel conseguira fazer vingar o seu Eduardo nem Vanessa conseguira dar voz a Caetana. Naquele limbo entre o mais ‘populucho’ e o mais ‘abetalhado’, acabaram por aceitar a crítica e parecer merecedores de castigo social. Deixaram-se estigmatizar. Nem mesmo juntos, Eduardo e Caetana cresceram o suficiente para sombrear o que vinha detrás. Também com isso se resignaram.

Ezequiel já focara por completo o rosto de Vanessa. Sim, era ternura. Ternura, por ter sido a Vanessa Caetana de que Ezequiel Eduardo tinha necessitado e junto da qual conseguira voltar a sonhar com algo que não existia. Era também já enfado. Ternura e enfado. Enfado das mentiras cada vez mais esfarrapadas e que cada vez o embaraçavam mais – e era tanto maior a vergonha quanto mais a mulher de Ezequiel parecia nelas acreditar. Saturação do carro transformado em cama de dossel. Do cheiro a sexo que parecia não sair do tecido dos assentos e que Ezequiel disfarçava levando os cães a passear, para que os cheiros desagradáveis se misturassem e assim acalmar o seu receio de ser descoberto. Eterno palpitar de coração, onde medo e ansiedade perscrutavam cada olhar da legítima, cada palavra e cada silêncio, no pânico de que ela descobrisse e no vexame de não ter sido ele a ter tido a coragem de lhe contar. Enfado do corpo dorido entre a chapeleira e a caixa de mudanças e enfado da novidade que já não o era.

 

Tinha de dizer a Vanessa que era o fim. Não adiantava. Já não era felicidade, apenas e também rotina. Até o sexo já soava a caseiro, a aborrecimento. Por vezes, já nem lhes apetecia – ‘Vamos antes comer um gelado?’ –, com a única vantagem de não terem de se desculpar com dores de cabeça ou outras aldrabices. Apenas não queriam. Não lhes apetecia já tanto. Era o raio do Ezequiel a abafar o charmoso e sedutor Eduardo e a Vanessa a encherem de pudores descabidos o corpo sexy de Caetana. Era o fim, como banalmente se entende. Seria a última vez.

Vanessa entendeu-o também assim, ou apenas Ezequiel o assumiu. O certo é que, sem uma única palavra, Vanessa sobe para o seu colo, sobe também a saia com uma única mão, afasta as cuecas e tudo fez como se da última vez se tratasse. Uma despedida em grande, com laivos de primeira, mas sem o encanto da estreia. Sim, eram já maiores o risco e o medo do que o prazer e a satisfação. Eram já e apenas um outro casal comum e para isso bastava o casal que já formavam com os respetivos.

Era com alívio que Ezequiel celebrava o último orgasmo com Vanessa. Aquela mata por onde enfiavam o carro à procura de privacidade e anonimato assustava-o de morte. Achava sempre que não estavam sozinhos. Que eram espiados. Seguidos. Perseguidos. Imaginava sempre o ódio dos ciúmes do marido traído, com tanta intensidade que a costura do local onde lhe retiraram há anos um furúnculo voltava a arrepanhar-se, parecendo rasgar-lhe a pele. Os remorsos eram esse tipo de bisturi. Em nada ajudavam todas aquelas sombras e ruídos desconhecidos em seu redor. Nada, de facto, promovia o look & feel de um tórrido caso clandestino, como estes são retratados no cinema. Aquilo era mais ‘Psico’ do que ‘Atração fatal’, mais Hitchcock do que Sharon Stone. O melhor daquele final seria abandonar aquela mata, que durante o dia servia de circuito de manutenção e à noite se trasvestia de ninho de traidores e amantes sem teto. Nunca mais se esqueceria do susto de morte que os acometeu quando, certa noite, uma saraivada de pinhas decide cai de supetão sobre o capô e dos três quartos de hora que demoraram a recuperar do sinistro. Só de pensar nisso e Ezequiel só já pensava na hora de sair dali. Eduardo que ficasse, a defender honras e a enfrentar dragões demoníacos, os quais Ezequiel pressentia nas entranhas daquele pinhal. Foi com alívio que meteu a chave no carro e ouviu o motor trabalhar. Estava de partida para o seu futuro, o qual, em bom rigor, era o seu passado. O de sempre, mas sem mata ou Vanessa.

Dentro do carro – que não voltaria, pelo menos tão depressa, a cumprir funções de quarto de motel, bar, cinema, sala de concertos, café e qualquer outra valência necessária a amantes clandestinos – Ezequiel Eduardo olhava Vanessa Caetana agora com pavor. Também ela denunciava pânico naquele silêncio sepulcral. Havia barulhos que não entendiam e na estrada todos lhes buzinavam e faziam sinaléticas selvagens. Serem descobertos era o maior receio de ambos, mas serem-no publicamente, no dia em que tudo terminava, com audiência popular, esbracejando ao mundo a sua vergonha íntima e pessoal estava para lá do pesadelo imaginado no seu pior cenário. Se parassem, seriam o quê? Apedrejados até à inconsciência ou para lá dela? O que quereria aquela gente? Pássaros noturnos de tocaia? Inimigos que conheciam os seus passos clandestinos e decidiam agora atacar? Seria uma flash mob tétrica? Em cada rosto Ezequiel via um marido enfurecido. Em cada sinal para que abrandassem a marcha, Vanessa reconhecia a mulher de Ezequiel e propósitos assassinos. Parar não era, para o par de amantes em fim de linha, uma opção a considerar. A fuga era a única solução. Solteira e imperiosa solução. Correr para o bicho não pegar.

Tudo aquilo, todavia, ultrapassava o surreal. Não era racional. Não fazia sentido que, ao longo do percurso de tantos quilómetros e já por trajetos inventados pelo pânico que se instalara no peito de Ezequiel, desde a mata até ao estacionamento onde Vanessa tinha o seu carro, todas as pessoas os reconhecessem e que aquilo fossem bramidos injuriosos vindos de mentes beatas, sentindo abjeção perante o adultério dos pecadores. Não era sequer provável haver esse tipo de concertação popular, por maior que fosse o ódio de um marido ou mulher traídos. Aquilo era outra coisa. Mesmo assim sendo, não podiam de igual forma parar. Ao parar teriam de sair do carro, verificar pneus furados ou o que quer que fosse e seriam reconhecidos, ou, não sendo, aumentariam o risco de o serem. Não podiam parar. Não parariam Ezequiel e Vanessa, nem parariam Eduardo e Caetana. Não podiam. Logo naquele último dia de traição. Não valia a pena. Não mereciam. Não parariam, nem abrandariam.

Só podia ser uma ação posta e marcha pelo marido de Vanessa, acreditava Ezequiel. Esperava que ninguém se lembrasse de decorar a matrícula do carro.

Só podia ser vingança da cabra da mulher dele, congeminava Vanessa. Mente em brasa, rosto corado. Mentiria até ao fim. Ainda bem que iam no carro dele e não dela.

By Rodney Smith

Dentro da mata, a turma lá estava. Reunidos na irmandade da malandrice, como é apanágio da adolescência descomprometida e insolente, que o aborrecimento não rima com tenra idade. Observar amantes incautos, pregar sustos atirando pinhas aos carros, buzinando no meio do silêncio bruto da noite, atirando jatos de luz para o interior de alguns veículos, inundar o pinhal de músicas sinistras – onde a marcha fúnebre e Naked City eram habitués –, faziam parte de um reportório insuflado de criatividade e referências cinéfilas. Isto quando era Carlos quem comandava as operações. Quando era o Manecas, a coisa era mais séria. Hoje, era noite do Manecas. Quando chegou, o grupo soube o que se seguiria. Manecas tinha trazido a corda. Todos sorriram. Era sempre um fartote. À conta disso, já tinham ganhado bons trocos a levar para-choques ao aterro do Francíu, onde se negociava de tudo. De tudo mesmo. Até a medicação da mãe do Sabrosa quando esta esgotava nas farmácias ou sempre que o pai dele ‘bebia’ a verba necessária. O Francíu não fazia perguntas nem dava respostas, mas divertia-se a comentar:

– Gostava de saber onde vão vocês desencantar tanto para-choques!?

Mas Francíu não fazia realmente questão de saber. Coisas de miudagem, onde pequenos furtos não indiciam necessariamente um futuro de bandidagem. São os miúdos a crescer e a aprender a desenrascar-se. Nada mais. Nada que ele não tivesse feito e hoje era o rei do ferro-novo que ferro-velho já mal havia. Já nem ferro de verdade, apenas plásticos e ligas-macacas.

O Manecas deu um ar solene ao acontecimento. Iria ser o batismo do Paulinho, seu irmão mais novo. Seria ele a pregar a partida da noite. Todos se congratularam com a ideia. Paulinho deixaria de ser ‘virgem’. Pequeno, esquelético e ágil, tinha tudo para ser um campeão da corda. Não tinha nada que saber. Tudo se resumia a atar uma ponta da corda a uma árvore e a outra extremidade ao gancho do atrelado de um dos veículos dos muitos debochados espalhados pela mata. Uns para ter sexo, outros a tentar ver ou apenas a melhor imaginá-lo, que isto há tarados para tudo e parafilias à la carte. Paulinho sorria de felicidade e receio de falhar. Já tinha visto como um nó laço ou um tronco frágil cedem sem causar o efeito desejado: um valente susto aos ‘românticos’. Manecas deu ao acontecimento a pompa e a seriedade necessárias. Tudo tinha de ser acautelado e bem planeado. Seria uma noite de estreia mundial de Paulinho na Corda e isso requeria todo um ritual de emancipação na vida quase adulta do grupo.

     

By Daniel Ribaisart

A escuridão era total naquela noite de lua nova. Tão nova que era inexistente. A corda era nova, ou assim parecia e Paulinho, ainda que nervoso, ansiava pelo momento de festejar com o grupo a sua subida a efetivo da delinquência. Olhariam para ele com outros olhos. Nunca mais seria o mero ajudante de campo do irmão mais velho. Era uma noite triunfal. Daria o seu melhor e mais ainda. Esgueirou-se para mais perto do carro eleito. Rastejou silenciosamente até alcançar a traseira do carro, por lá se demorando, já que o gancho não estava destapado. Rodou e rodou sob o carro até considerar que o trabalho estava decente e aguentaria a pressão. Paulinho já rastejava de volta, rumo a um grosso pinheiro, mas não tão grosso que consumisse demasiada corda. Havia nós a dar e remates que garantisse que o carro teria dificuldade em avançar, mesmo com o poder da primeira mudança. Nisto, a luz de marcha atrás. O susto mortal. A atrapalhação. Uma corda enrolada ao tornozelo de Paulinho. Um nó cego. A noite cega. Paulinho que cegava. A corda. A corda Paulinho. A corda nova que não se desprenderia. Os gritos dos amigos. A corda, Paulinho. ‘Acorda’, Paulinho. Paulinho a desaparecer varrendo com a vida o asfalto. O silêncio de Manecas, também ele cego, surdo e mudo para a vida que lhe fugia a mais de 100 km/h.

Partilhar