Tita e Tati – não é erro nem gralha ou dislexia, é mesmo o nome das personagens do episódio que se segue, pelo que podem prosseguir a leitura, mas se querem pormenores irrelevantes eles aqui vão: Tita abrevia Cristina e Tati encurta Tatiana. Melhor assim? – estavam de todo. Sentiam-se estupendas, cheias de pouquíssima roupa e toda ela com imensos brilhos, os quais só encontravam rival no glitter das suas maquilhagens. Tudo em tons tão saturados quanto saturados estavam os seus joanetes. Mais os de Tati, que abusava nas plataformas com saltos agulha, mas queixas não se ouviam, ou eram demasiado esporádicas para servirem aqui de assunto. Não menos brilho tinham os seus olhos, os de ambas, e para isso contribuíam inúmeros fatores, dos quais enumeramos os cinco principais: álcool, lentes de contacto, álcool, excitação na busca de mancebos para essa noite de fim de ano e ainda uma pequena percentagem de álcool, o qual beberricavam com entusiasmo, enquanto varriam com sofreguidão a pista de dança, a qua passavam em revista pela enésima vez. Uma missão árdua, tanto para a vista como para o cérebro, onde tudo há muito rodopiava ao ritmo de cadeiras giratórias num possuído carrossel. Numa cena digna de longa-metragem cinematográfica, num daqueles momentos que antecedem uma ação com honras de planos aproximados, Tita acotovela Tati com o braço com que segurava o seu luminoso cocktail e, com o entusiasmo que depositou no gesto, deixa escorregar o copo, o qual cai direto no vertiginoso, mas nem por isso interessante decote de Tati, acabando por ficar entalado nos seus joelhos.
– Sempre tiveste ótimos reflexos! Como é que fizeste isso?
Tita não sabia o que comentar primeiro, se a visão que a tinha levado a reagir de forma tão brusca para o adiantado da hora, se aquele número de circo nunca antes executado sem rede e quase sem assistência.
– Pena que esteja tão escuro e quase ninguém tenha visto. Podias ganhar dinheiro com isso na televisão! A minha alma está parva.
– Tita, a tua alma é parva!
Desatam ambas a rir e lá se foi o copo finalmente para o chão. Depois de tanta acrobacia – ou apenas falta de carne entre as folgas do vestido, que os distúrbios alimentares são tramados e as exigências sociais mais ainda –, tudo acabou estilhaçado aos pés das duas amigas de farra.
– Oh, ainda tinha o suficiente para encher uma palhinha ou duas. Que pena!
Tati não se mostrou interessada nem no lamento da amiga, nem nos vidros no chão, que agora a desequilibravam ainda mais. Estava curiosa para saber o que a amiga tinha para lhe dizer. Tita já não se recordava, mas ao passar os olhos de novo pelo espaço voltou a dar um gritinho estridente.
– Ali, ali! Há dois tipos ao balcão no bar de baixo que não parecem nada mal.
Tita aponta, Tati tira uns mini-óculos que trazia escondidos no elaborado penteado de fim de ano, e olha com os seus melhores olhos de ver. Sorri gulosamente e alerta:
– Eu fico com o mais giro, ouviste?
Era, de facto, a sua vez der escolher, e Tita estava mais interessada em dar resposta rápida àquela caçada, que isto de discotecas cheias em noite de ‘revelhão’… Já se sabe!
– Sim, ficas com quem quiseres. Agora, anda, vamos!
Nisto, agarra o braço de Tati com demasiada força para a resistência da outra e sente o osso partir-se literalmente em dois, ou mais.
– Raio do rádio. Nunca me lembro de que não tens carne. Desculpa, dói muito?
A outra, pobrezinha, a desmaiar de dor, ou de fraqueza, que quando se passa fome tudo se mistura, só teve tempo para relembrar:
– Eu fico com o mais giro. Nem te atrevas…
Nisto, apagou-se. Vieram bombeiros giríssimos, daqueles de calendário sexo-solidário, e veio o INEM (não tão bem-apessoado), e veio ainda o 112 (talvez o mais fraco dos três). Como a amiga já estava desmaiada, pelo que já estava bem, e visto e revisto que os dois ao balcão ainda não tinham sido catrapiscados, Tita tomou a decisão mais acertada. Deixou a amiga aos cuidados de quem entendia do assunto ‘ossos partidos e desmaios’ e rumou para os braços do amor, repetindo mentalmente, ainda que sem dar por isso também o dissesse em voz alta:
– O meu é o mais feio, o meu é o mais feio, o feio é o mais meu…
Uma vez chegada, tratou de se apresentar e de deixar claro ao que ia, fazendo aquilo que sempre fazia: colocar a mão na braguilha dos rapagões e apalpar o terreno. Sim, que isto de ir parar às urgências de hospitais com assuntos humilhantes das terras baixas para resolver já estava muito visto e Tita, ainda que raramente o admitisse, era um pouco hipocondríaca. Além disso, já bastava a Tati no hospital, pelo que, de qualquer forma, já se sentia bem representada no que a locais de saúde pública diz respeito. Os rapazes eram animados, ou podia ser apenas dos seus olhos. Fosse como fosse, ia dar ao mesmo. Ofereceram-lhe bebidas, que aceitou de muito bom grado, mas que apenas bebeu depois de esclarecer qual dos dois era o seu eleito.
Fê-lo relutantemente, já que o mais giro não envergonhava fosse quem fosse, enquanto o feio… Como dizer isto de forma a que se chegue perto da repulsa que Tita sentiu? Mesmo sob as eufemísticas lentes do álcool a criatura era ME-DO-NHA! Achava mesmo que o mastodonte não tinha a dentição completa, o que incluía ausência de dentes frontais, mas tentou acreditar que tudo se devia à fraca luz ambiente e ao sombreado intermitente dos flashes que acompanhavam a música. Também não tinha o melhor aroma, mas também se podia dar o caso de ela própria se ter esquecido de lavar os dentes, pois a halitose não poupa nem as princesas. Quanto ao coxear do estafermo, tanto podia dever-se à falta de uma perna como aos desequilíbrios de Tita, pelo que tentou não entrar por aí. A noite já ia alta, ou baixa, dependendo do ponto de vista, e o de Tita era cada vez mais curto, pelo que tinha de agir rápido se queria mesmo começar o novo ano com companhia masculina. Parou para pensar. Quereria mesmo isso? Mesmo junto de um estrupício? Não seria demasiado alto o preço a pagar? A resposta a tudo era sim. Sim, valia a pena e quanto a preços tinha uma máxima infalível: o que importa é o amor, porque dinheiro é apenas dinheiro. Ainda que com uma réstia de dúvida sobre se era mesmo de amor que se tratava, tirou facilmente essa pedra do sapato e prosseguiu com as manobras de sedução. Apalpado o terreno, e sem grandes motivos para alarme, muito pelo contrário, Tita lá se entreteve a cativar o mais feio dos amigos.
Custou-lhe um pouco, mas só de pensar na pobre Tati, sozinha no hospital, até ganhou ânimo e uma nova perspetiva sobre o assunto em mãos. Agora que tinha o nariz quase colado ao do sujeito, percebia como se tinha precipitado na avaliação, errónea, da ausência de dentição do pobre coitado. Todo aquele escuro eram, afinal, dentes de ouro. Menos mal, sempre se podem penhorar, enquanto os de marfim só servem para cáries. O mais giro só tinha dentes de marfim, mas bem que podia ser uma prótese e essa coisa de dentes amovíveis provocava náuseas a Tita, pelo que já se começava a convencer de que o feio podia nem ser o mais feio dos dois. Oh, mas era… E aquela perna mirrada. Precisava de beber mais uma bebida, ou vinte, para deixar de vacilar. E com um homem giro logo ali ao lado e ela a ter de se atirar àquele Frodo Baggins da Bobadela. O que se faz por uma amiga, não se faz por ninguém mais.
Ainda assim, estava com dificuldade em avançar mais naquele amor de Passagem de Ano e foi aí que a bondosa providência providenciou das suas. Sobre as cabeças de ambos, de Tita e da sua presa, cai um dos holofotes que rodopiavam os seus feixes de luz, ora violeta, ora amarela, ora verde, ora azul (já perceberam, aquilo cobria todos o espetro cromático) percorrendo a pista de dança em jeito de psycho-trip visual. Uma mente perturbada como a do sujeito, diria mais tarde que era o destino a juntá-los, na saúde e no infortúnio. Uma mente mais pragmática, como a de Tita, admitiria que era a mão do seu santo de devoção (desconhecemos qual) a liberá-la do peso de ter de ficar com o feioso em nome de uma amizade que, na verdade, se alimentava de solidão e álcool e, apenas numa ínfima proporção, de puros sentimentos, e que ela tinha toda a razão: se estivesse ao colo do giro nem tinha dado pela falta do holofote no teto ou do medonho a seu lado. Uma mente despeitada como a de Tati diria, como de facto disse – no hospital onde acabaram por se reunir os três –, que Tita era, afinal, uma falsa amiga e uma grande cabra.
– Então, não tínhamos acordado que, desta vez, ficavas tu com o feio?
De olhos ainda mais esbugalhados, Tati não alcançou o erro de casting que havia cometido, que isto dos gostos é tema complexo. Ah, é verdade. No meio de todo o rocambolesco episódio, acabaram os três por passar a meia-noite juntos. Quando se começa a beber na véspera da festa, o tempo avança de forma mais errática.
Moral da história:
Não parta de pressupostos. Aponte o dedo, faça descrições detalhadas e dê-se verdadeiramente a conhecer aos seus amigos. Principalmente aos amigos de farra. As chatices que estará a poupar.
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