Tinha fixado um limite mínimo abaixo do qual não venderia. Por menos de cinco mil euros, não haveria negócio. Sabia bem o que tinha em seu poder. Era negociante há mais de duas décadas e sabia reconhecer talento e genialidade à légua. Aquilo era algo completamente novo e desafiante. Uma nova e inesperada linguagem tridimensional, com recurso a múltiplos media, onde se esculpiam retratos e cenas do quotidiano em suporte gigantesco. Não fosse a artista uma novata e bastante mais elevado seria o preço que apresentaria. Mas um nome ainda pouco conhecido, quase uma primeira obra, mais ainda a ser apresentado no estrangeiro, a uma galeria conceituada. Na verdade, talvez estivesse a ser ambicioso. Talvez devesse aguardar por uma proposta da galeria, sem escandalizar com valores que pudessem não ser aceites e, assim, antagonizar qualquer futura possibilidade de negócio, mesmo que com novos artistas.

A artista já faria uma festança se a obra chegasse ao mercado por mil euros, menos a sua comissão, obviamente. Além disso, mais valia um preço baixo numa galeria de renome do que um valor alto numa qualquer feira de Carcavelos de obras plásticas. Estaria, talvez, a ser demasiado ambicioso. Cinco mil euros, com o mercado e a economia como estavam, ainda em modo de ressaca pandémica… Seria de mais? Já lhe falhava o discernimento. A obra valia seguramente os cinco mil que lhe atribuiu, mas receava a receção dessa cifra, mais ainda perante um departamento todo remodelado e onde não conhecia qualquer um dos interlocutores. Uma equipa mais jovem, tinha ouvido dizer, mas letal a negociar, como o avisaram. Cândido percebeu que tinha de parar. Beber um café. Ou um chá. Um copo de água, que fosse. Ganhar novo fôlego e pôr as ideias em ordem. Não podia chegar à mesa de negociações com tantas dúvidas, as quais se iam adensando num crescendo que já o confundia.

Primeiro: Qual o valor real da obra?

Esse nunca existe, que uma obra de arte é como uma verdade, ou seja, vale apenas pelo muito que acreditemos ou não nela. Valor adequado seria o termo mais correto. Esse, Cândido não duvidada, era, facilmente de cinco mil euros e já era um valor de principiante, que se a peça fosse assinada por um dos sonantes do momento, era coisa para crescer um ror de zeros.

 

Segundo: Qual o valor justo?

Também aqui não havia contas de resto zero. Justo seria o valor que satisfizesse o vendedor e o comprador e era muito difícil de aceder a ele sem passar por uma séria negociação. Teria de estar com o cérebro fresco e um discurso determinado e bem articulado para fazer valer a sua cifra. Sabendo que quem vende pretende sempre mais e que quem compra objetiva sempre menos, teria de manter a fasquia nos cinco mil, mas admitir que essa quantia pudesse descer uns andares no elevador negocial. Até onde iria? Fixou em três mil euros o valor mínimo da peça, caso o diretor da galeria não mostrasse grande interesse ou a capacidade de argumentação do galerista se sobrepusessem aos seus intuitos de agente intermediário na transação. Também não podia descurar a sua comissão e quanto mais alto fosse o valor da venda, mais Cândido ganharia e esse era um estímulo acrescido.

Terceiro: Qual o valor que aceitaria?

Esta era a mais fácil das perguntas neste teste que colocava a si próprio, enquanto escaldava a boca com a sua infusão de Rooibos. O mercado andava tão mal, que uma má venda era melhor do que nenhuma venda, pelo que os tais mil euros de há pouco não eram de desdenhar. Claro que começar por pedir cinco e sair com um não apenas revelava um mau profissional, sem capacidade para avaliar e defender correta e entusiasticamente um trabalho, como denunciava ainda um péssimo negociador.

Estava delineado o plano e não valia a pena insistir em mais inseguranças ou retrocessos. Tentaria que fosse a galeria a avançar um número. Não conseguindo, manter-se-ia firme nos cinco mil e não baixaria dos três mil. Havendo interesse na aquisição de mais obras, poderia, então, avaliar uma redução extra.

Estava a apenas uma dezena de portas da entrada da Gale-Ria, conhecida por lançar novos artistas no mercado artístico, e a reabilitar outros caídos em desgraças ou no esquecimento. Com tudo delineado e bem definido na sua mente, Cândido retomou o caminho. Bastava manter o plano, sem se deixar abater por infindáveis dúvidas, que em nada o ajudavam, e estar atento a possíveis jogadas semânticas. Também não era inexperiente. Tinha de ter mais autoconfiança no seu mérito, ainda que os últimos anos também para si não tivessem sido fáceis. Acima de tudo, sabia que tinha um trunfo fenomenal em carteira, pois o trabalho de Perpétua era genial. Um murro no estômago. Um Basquiat no feminino, não no traço, mas na originalidade urbano-semântica, no potencia das metalinguagens, onde cinismo e naïf se atropelavam. A miúda valia ouro, diamante e platina. Pensar na artista e no muito que já tinha visto da sua obra, galvanizaram o ânimo guerreiro de Cândido.

Trinta mil. Assim. De supetão. Sem esforço ou negociação. Apenas um simples: “Estamos dispostos a ir até aos 30 mil euros, com encomenda de mais cinco obras de igual dimensão, cujo preço acertaremos depois de avaliadas as novas peças.” Havia, claro, uns termos de exclusividade a serem discutidos com Perpétua, com os quais não se podia comprometer, que a miúda também não era parva. Aquilo era o pináculo olímpico do inimaginável e Perpétua a sua mina privada. Tinha de a fazer assinar um contrato de exclusividade consigo, isso sim, o mais esticado no tempo que conseguisse, antes de lhe apresentar a proposta da Gale-Ria. Se tomasse consciência do seu potencial e valor num mercado difícil, onde apenas agora entrava já com tal cotação, podia fazê-la aspirar a negociar diretamente as suas obras ou levar a que algum agente da concorrência se adiantasse a Cândido. Havia que agir com celeridade e astúcia.

A Perpétua, Cândido vendeu dificuldades, empolou os seus méritos e créditos no mundo artístico, jurou que se empenharia quase em exclusivo na sua carreira, que estava seguro de que, ainda que a grande custo, conseguiria torná-la num nome reverencial da contemporaneidade, que faria dela a artista do momento e que conseguiria um bom valor pelo seu trabalho, dentro e fora de portas. Merecia a sua confiança, afinal tinha sido ele o primeiro a reparar no seu dom, a valorizar o seu potencial e a acreditar naquilo que Perpétua fazia. Perpétua entusiasmou-se com o cenário de grandeza que Cândido lhe colocou à frente. Assinou. Dez anos. Não conseguiu mais. A miúda era jovem e uma década já lhe pareceu uma eternidade. Já era bem bom, pensou Cândido. Dez anos de ovos de ouro, podiam representar uma reforma luxuosa. Só lhe apresentou o valor e a proposta da Gale-Ria depois do contrato assinado, deixando a artista exuberante e ainda mais confiante no seu trabalho e determinação em fazer dela uma artista de renome internacional.

Cândido, um empresário ávido que provava pela primeira vez as grandes luzes da ribalta no mundo artístico, e que era agora uma espécie de guru de uma nova geração, procurado por um sem fim de promissores artistas, começou a achar que Perpétua era pouco produtiva. Claro que as suas obras, verdadeiros murais, peças exigentes pela metodologia, suportes e meios utilizados e ainda pela dimensão, eram exigentes, requeriam tempo e eram fisicamente esgotantes, para a pequena e frágil Perpétua. Mas Cândido entendia que, e fazendo jus ao seu próprio nome, Perpétua deveria produzir mais, sem parar, num perpétuo esforço criativo, numa ininterrupta cadeia produtiva. Só com esforço se alcança a fama. Percebeu que a artista era mais profícua e produtiva à noite, principalmente após um jantar bem regado a vodka. Arranjou-lhe um velho armazém, um galpão com um generoso pé-direito, com dimensão para as megaproduções de Perpétua, as quais despachava num abrir e fechar de olhos e a preços, agora já, exorbitantes. Nele transformou os dias em noite perpétua e era assíduo a reabastecer o stock de vodka e outras espirituosidades, para que nunca faltasse energia ou combustível criativo à artista, sua verdadeira gansa dos ovos de ouro.

Perpétua entendia que tinha de compensar o muito que Cândido fazia por si. Transformou-a na mais famosa artista da sua geração e a mais cotada do momento, superando nomes de artistas defuntos, que, como se sabe, são sempre os mais rentáveis, antes de mais pela escassez, já que um artista morto não pode produzir mais obras do que as que deixou em legado. Tinha uma lista de encomendas como jamais imaginara ser possível, exposições agendadas, entrevistas marcadas… Perpétua sabia bem o que aquilo não deveria ter custado ao pobre homem, sempre tão suado e agora com um alarmante perímetro abdominal, pelo que trabalhava ininterruptamente sem distinguir já a noite do dia, o calor do frio, a vodka da água.

Cândido notou depois que a vodka começava a deixar a artista mole, desanimada, subitamente depressiva. Animou-a com uns pozinhos de perlimpimpim, cujo abastecimento também assegurava e foi ver a miúda a ganhar alento e energia, enquanto a obra ganhava fôlego e nova dimensão narrativa. O mercada andava louco. Já vendia para todo o mundo, com exposições coletivas e individuais agendadas ao redor do planeta e listas de espera para novas exibições e vendas particulares. O paraíso estava ali e Cândido rejubilava, arrastando a cada vez mais debilitada Perpétua apenas para meia dúzia de vernissages escandalosamente importantes, pois desgostava-o imenso afastá-la do armazém-atelier, pois só aí poderia continuar a criar e disso dependiam todos os luxos da sua vida. Nisto, Cândido percebe que rebentou com um dos botões da camisa. Tinha encolhido na lavagem, seguramente.

A nova espiral criativa de Perpétua ganhava contornos de alucinação, com temas e motivos cada vez mais aleatórios e desconectados, na opinião da sádica crítica. Como se cada peça fosse criada por um artista diferente, sem comunhão de linguagem, sem partilha de uma narrativa. Quase sem ser possível de identificar os quadros isoladamente devido a uma total ausência de correspondência de método, estilo, traço ou qualquer outro tipo de comunhão. Passava a ideia de múltiplos criadores ou de criações esquizofrénicas. Circulava já, à boca pequena, que Cândido teria um grupo de jovens artistas a produzir de forma desgarrada e assinando com o nome da grande artista, da enorme Perpétua. Estava na hora de acalmar a fera. Reduzir psicotrópicos, talvez, e apostar em calmantes, ou injetáveis lúdicos que fomentassem um qualquer fio condutor na obra, se era isso o que o mercado e a crítica desejava. Queriam normatização, tê-la-iam. Mais um botão que saltava. Olhou para a barriga, que se mostrava em forma de olho por entre o espaço aberto pela falta do botão. Tinha de falar com a empregada. Andava a encolher as camisas. Era só o que lhe faltava. Tanto assunto sério para tratar e ainda tinha arrelias domésticas para resolver. Comprou dez novas camisas, num tamanho acima, para precaver lavagens a temperaturas dramáticas.

By Antonio Mora

Perpétua desejava satisfazer a vontade de Cândido, sempre com um discurso tão lógico e sedutor, sempre tão amigo e imaginativo na descrição do mundo maravilhoso onde ela era agora uma das grandes, uma das maiores, senão mesmo a mais gigante das autoras de arte. Sentia-se, no entanto, estranha. Estupidamente cansada e aérea. Mal se reconhecia. Já nem ao espelho se identificava. Tudo era alteridade na sua vida. Não havia um eu, uma matriz, uma cadeia de ADN que reconhecesse como sendo a sua pessoa, a sua identidade. Aquilo que sentia ou pensava não lhe pertencia. Tudo eram os outros. Ela própria sentia-se um outro que não ela. O seu eu andava perdido no cheiro das tintas, no esforço do braço, na neblina da mente, na alucinação artificial dos seus consumos. Talvez Cândido tivesse razão. Talvez uma medicação nova, uma consulta de psiquiatria, um breve internamento…

Nisto, o mundo ensandeceu com aquilo que chamava de heterónimos de Perpétua. Dela os peritos diziam agora como sendo a maestrina da metamorfose. Elogiavam a genialidade da sua serpenteante capacidade de adaptação e de produção, incorporando diferentes pessoas, métodos, procedimentos e visões do mundo num único corpo de arte. ‘O Camaleão’, foi o título que uma prestigiada revista norte-americana lhe concedeu num artigo de dez – dez, assim como 9 + 1 – páginas. Cândido retrocedeu. Voltariam ao pó branco, antes que a sua heroína quebrasse essa cadeia de heterónimos que agora era venerada. Voltaria a insuflar de oxigénio o discurso positivo e otimista com que conseguia entusiasmar a pequena, única habitante de um universo despido, solitário e desabitado, como era o armazém/atelier de onde nunca saía. Sentia-se entusiasmado. Afinal, inspirar a sua mais genial artista era a sua real e suprema tarefa.

Ao entrar no galpão escuro, onde apenas as telas gigantes onde Perpétua esgrimia criatividade e sangue se iluminavam, Cândido espirrou. Aquele cheiro a óleo, terebentinas, tabaco e álcool não era bom para a sua saúde. Não poderia ficar muito tempo. Sentiu frio. Olhou para baixo. Não queria acreditar. Cinco botões de uma só vez tinham desaparecido com o espirro. Que bruxedo era aquele com as suas camisas? Cândido irritou-se com aquele despropósito. Despediria a empregada, que o seu peso a mais não justificava tudo aquilo… Não via Perpétua. Estaria na casa de banho? Chamou. Nada. Nisto, uma tela chama a sua atenção. Um homem obeso voa num céu onde uma imensidão de garrafas tomava a vez de nuvens. Pela mão, uma criança faminta, de olhos esbugalhados e peito aberto. No lugar do coração, uma seringa gotejante. Aquilo iria render uma for-tu-na. Cândido abriu o rosto a um sorriso desmesurado que ultrapassava a linha lateral do rosto e se alongava no vazio da sala. Todo ele riso. Não conseguia tirar os olhos do quadro gigante. Magritte não tinha hipóteses, perto da sua Perpétua… Onde andava ela?

Uma outra tela, brutal, cheia de colagens, tridimensionalidades e efeitos óticos de ensandecer. De entre toda a informação, uma palavra apenas: Morri. No chão, fora da tela. Um corpo mirrado. Um xuto no olho. Uma verdadeira alegoria ao universo consumista, desenfreado, apático onde a morte transborda e a ela se assiste como mero espetáculo de má qualidade. Voraz. Enquanto colocava um preço mental em tudo aquilo, Cândido percebe que o corpo não é pintura. O corpo não é ‘lixo’ colado no chão. O corpo é um corpo. O corpo é Perpétua. E se de legenda necessitasse, ela estava no quadro. Morri.

E agora? Quem pintaria para ele? Como pagar os botões em tantas camisas carenciadas? Como pôde Perpétua fazer-lhe uma coisa daquelas? Enfim, sempre era um brutal statement artístico, escrito com as próprias entranhas. Era melhor mandar fotografar tudo por um bom profissional, antes de ligar para o 112. Aquilo valia bom dinheiro, seguramente!

Tinha de sair. O cheiro causava-lhe alergia, ainda. Já na rua, encheu o peito de ar. Foram-se o resto dos botões. Que maçada! Faltava pouco para estar quase nu. Tinha de encontrar o contacto do artista. Como é que se chamava aquele fotógrafo?

Moral da história:

Não pinte a óleo. É muito tóxico.

 

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