Olhou-se ao espelho com agrado. Mais do que isso. Com indisfarçável orgulho e satisfação, traduzidos no inevitável ato reflexo de sempre: um irrefletido, automático e rasgado sorriso. Estava capaz de se apaixonar pela imagem refletida. Que pedaço de homem. Que brutal elegância. Que estúpida beleza. Era estupendo! Magnífico. Quem, no seu perfeito juízo e bem calibrado padrão de avaliação estética, poderia não o achar absolutamente atraente e irresistível? Até um invisual perceberia todo aquele calibre de boa aparência. Era belo em absoluto e não de forma relativa. Exalava bom ar e sofisticada aparência e sem grande esforço. Era-lhe natural, intrínseca e inata, essa invejável lindeza – não encontrava melhor palavra, pelo que lindeza era um termo recorrente no seu discurso interno, aquele que mantinha de si para si –, não obstante obrigar-se a esmerar-se, ainda assim. Não basta ser-se talentoso, há que trabalhar o talento, disciplinar o génio, de forma a elevá-lo ao mais alto expoente possível, escalando patamares sempre mais e mais ambiciosos.
Ele bem via o caso de Ronaldo. Um génio nato, mas cuja excelência resultava do trabalho extra, da sofreguidão no ginásio, da excelsa dieta, da consistente persistência, da sempre presente ambição, do rigor e da disciplina, que somavam muitas coisas mais à excelente base. Era um bolo em camadas, uma bem calibrada sopa de nutrientes vários. Cores que acresciam algo mais ao primeiro e magnífico esboço a carvão. Assim era ele, Diogo Garça, uma graça de pessoa. Sem tirar, nem por. Simplesmente soberbo. Não precisavam de lho dizer. Quando se é realmente extraordinário, em qualquer arte ou ofício, o próprio sabe-o, sem resquícios de dúvida ou vestígios de insegurança.
Claro que os invejosos lhe chamam vaidade, confundem com arrogância, mascaram a verdade com delírios de semântica e malvadez. É o mesquinho ciúme. Com isso vivia Diogo Graça lindamente. Era até fertilizante na sua autoestima. Qual o génio que não é desdenhado? O sublime não é consensual para os seus contemporâneos, perdidos em pequenas invejas e previsível desdém. São as mentes menores a ser iguais a si próprias, na presença do inatingível soberbo. Os outros que adubassem o seu, já de si, fértil terreno. Quanto mais o criticassem, mais ele sobressairia, ressaltaria acima da banal normalidade. Entretinha-se ainda, e com deleite, com a sua incrível imagem, em completo modo de autocontemplação, quando recebe uma mensagem.
“Livre para beber um copo, hoje?”
Pobrezinha. Era a sofrível Carolina, diretora-geral da empresa. Gira e sofisticada. O tipo de mulher para quem todos os olhares se viram quando entra numa sala, mas apenas por comparação à média das presentes e não por um valor absoluto inegavelmente irrepreensível. Apenas alguns pontos acima, numa mera comparação de dados e atributos. Apenas um melhor guarda-roupa e mais dinheiro para cabeleireiro e aprumos estéticos. Apenas isso. Tinha ainda muitas horas pela frente. Aguardaria melhor proposta para essa noite e, seguramente, para o resto da vida. Queria algo bem mais substancial. Algo perfeito para a sua dieta estética. Uma mulher inquietante, misteriosa, com graça, encantadora, inteligente e apaixonada. Com bom gosto, ambição. Uma parceira à altura, por quem todos suspirassem, fossem eles ou elas. Seriam o sol ofuscante do ciclo social em que se movimentassem ou qualquer outro em que viessem a ser incluídos. Teria de ser uma mulher com o fator Uau! Isso mesmo. Nada a melhorar ou a acrescentar. A dose certa. Um corpo arrebatador. Um sentido de humor refinado. Um rosto de uma beleza estonteante. Uma conversa apaixonante. Teria de ser ‘aquela’.
Decidiu servir-se de uma bebida, enquanto aguardava. Havia tempo. De novo de frente a um espelho – não faltavam lá por casa –, aquele que colocara por cima do aparador que cumpria as funções de ‘bar’, onde caros e refinados rótulos enfeitavam garrafas, elas próprias de design requintado, Diogo Garça voltou a reencontrar os argumentos físicos e estéticos que lhe garantiam que algo de extraordinário o esperava. Ainda não tinha levado os lábios ao copo e, lá estava, o telefone toca. No enorme ecrã do seu muito ‘smart phone’, um nome. Gabriela. ‘Tadita. O que quereria ela àquela hora, numa sexta-feira à noite? Era uma bela mulher. Manequim, mas não de passarela, apenas modelo fotográfico. Nada de muito impressionante. Faltavam-se seis centímetros, queixara-se ela certa vez, para chegar aos grandes desfiles de topo. Era uma model, não uma top model. Lamentável. Atendia? Colocaria apenas o telefone no silêncio, para não ter de pensar mais nela? Entre prós e contras, venceu a curiosidade de saber o que ela quereria.
– Olá Gabi.
Acabou por dizer, com um ar entre o ocupado e o desinteressado.
– Diogo, querido, como estás?
– Ocupado como sempre, sabes como é. Estou de saída e costumo perder rede no elevador, como sabes. Se, entretanto, cair a chamada, não te preocupes. Ligo-te logo que possa, ok?
– Certo, certo. Serei breve. Estou com uns amigos à porta do Sud e lembrei-me se quererias aparecer. Ainda vens a tempo. Estamos apenas a aguardar mesa e como são casais, menos eu, haverá lugar para ti. Desculpa ser em cima da hora, mas estava para nem vir…
– Gabi, obrigada, mas já tenho planos. Fica para outro dia, está bem?
– Claro. Sem problema. Não eras um plano B, quero que saibas isso. Apenas resolvi em cima da hora… É gente gira, ias gostar deles, mas compreendo, perfeitamente. Fica para depois. Liga-me e combinamos.
– Ok, não te apoquentes. Beijos.
Diogo desligou incrédulo. Mas quem se julgava a sirigaita? Ele, um Garça, em plano B? Que insultuoso! Mesmo que o plano B fosse referido como não o sendo, já era pena capital nomeá-lo. Aquilo roçava o obsceno. Claro que não era um qualquer plano B. Estaria parva? Teria snifado da branca? Assim, já à porta de um restaurante e ligar-lhe para saber se ele, numa sexta-feira, ainda estaria sem planos? O que seria? Até estava, mas isso jamais seria sabido por quem quer que fosse. Olha, lá! A ‘piquena’ modelito a armar-se ao pingarelho. Bebeu o gin de um trago. Uma pequena tontura, mas nada que lhe hipotecasse a postura ou, sequer, chegasse para lhe amarrotar a camisa impecavelmente passada a ferro. Nada como uma boa lavandaria. Valiam todo o dinheiro que cobravam. Tudo entregue em casa. Tudo impecável. Ainda bem que a sua imagem era suficiente para o distrair daquelas fontes de nervos. Apagou o número da miúda da sua lista de contactos. Jamais lhe telefonaria. A desfeita! Faltavam-lhe bem mais do que seis centímetros para estar à altura de Diogo Garça.
Rumou à varanda, um reino botânico, com um certo pendor tropical – de onde tinha uma vista incrível sobre a ponte –, que costumava acalmá-lo, e que era a inveja de toda a endinheirada vizinhança daquele seleto condomínio. Acendeu um cigarro. Um whatsApp. Agora, sim, a primeira bailarina do corpo nacional de bailado, Maggy Smith. Uma britânica de boa linhagem, um corpo que dispensa descrições, uma educação esmerada, estatuto social, fortuna familiar, irmão a lecionar em Eaton College, séculos de acasalamentos entre nobreza e aristocracia, uma família de políticos de primeiríssima linha, embaixadores e artistas… Enfim, uma parceira a considerar. Alguém da sua estatura. Colocou os óculos de ver ao perto, sim, já tinha essa idade, mas apenas para ler: “Podes vir levar a mim no aeroporto esta madrugada? Sei que te deitas tarde… Era um huge favor. Podes?”, questionou-se a doce Maggy no seu sofrível Português.
Huge favor? Tão descomunalmente huge que nem lhe ia responder. Quer dizer, servir de motorista privado à menina? Uma emigrantezeca? Chamasse um Uber. Ligasse ao paizinho rico, a esta hora a fumar charutos cubanos num exclusivo clube londrino, rodeado de ministros e embaixadores. Isso é que era huge, darling. Com tanto nervosismo, começava a ter fome. Nova mensagem de texto.
“Diogo, querido, retida numa reunião que só agora acabou. Jantar e jazz. Interessado? Saio dentro de dez minutos. Diz qualquer coisa.”
Mas aquela era a noite dos horrores? O mulherio estava todo a ficar louco. Devia ser uma coisa hormonal, ou com ligações à lua cheia, só podia! Esta, agora, Fátima de Freitas, ou a Fat Feia, como lhe lembrava o nome que lhe atribuíra no telefone, era editora-executiva num jornal diário. Toda armada em cool e enfeitada de modernidades. Sempre ‘tu cá, tu lá’, sempre stressada e ansiosa. Sempre com o tempo contado e interrupções inesperadas, pois achava que podia estar em dois locais em simultâneo… Não. Isso não. Quem estivesse com ele, Rei Sol Diogo, tinha de estar absorvida apenas consigo. Não havia espaço para distrações ou mulheres que agem como homens. Sim, para ele havia distinções claras entre ser ela e ser ele. Sempre cheia de contactos e entrevistas e assuntos off e on the record. Os melhores assuntos teriam de ser os dele. Os melhores contactos, aqueles que religiosamente guardava no telemóvel e não os da sua acompanhante, que bem podia deixá-lo especado por causa de um qualquer presidente da república ou idióticos assuntos de estado. Que palermice, achar que ele estaria para ali, desocupado, a aguardar o seu contacto, para sair a correr com a cauda a abanar de felicidades patetas. Idiota! Seria curto e grosso, mas também de uma requintada soberba. Só para ela aprender: “A caminho de Paris. Jantar romântico. Não posso dizer com quem. Avião privado. Falamos depois. Bj”
Não tinham muitos amigos em comum, pelo que dificilmente seria desmascarado. Além disso, se o fosse, dir-lhe-ia que era metafórico, que Paris estava no lugar de amor e outras poesias do género. Ela bem sabia como ele era elegante no trato e simbólico na significância. Para ela aprender.
O relógio não dava tréguas, nem o veloz apetite, que já fazia ronronar o seu faminto estômago. Ainda, para mais, estava com apetites: trufas e outras delicadezas, era aquilo que desejava. Aguardaria o tempo de mais uma bebida. Mas já começava a ficar entediado e deveras aborrecido com as suas amigas. Todas elas, para usar de rigor. Como era benemérito, dar-lhes-ia mais uma singela e única oportunidade, ou quatro, vá.
Um telefonema. Ah, bom! Teresa. Teresa? Teresa Guedes, a secretária? Ao que o mundo estava a chegar. Ao seu términus, só podia. Uma secretariazeca a importuná-lo numa sexta, noite de festas sofisticadas, mulheres deslumbrantes, ambientes trendy, clubes exclusivos e convites secretos? Acharia ela que ele, Diogo Garça, se dignaria sair com um fatito de saia e casado da Zara e uns pumps de plástico? Onde a poderia levar? À Pizza Hut? Só se fosse à Pizza Hurts. Hurts a lot.
– Menina Teresa, estou deveras ocupado. Podemos falar segunda feira ou é alguma emergência?
– Oh, desculpe. Achei que, como sei que tem o carro na oficina, talvez precisasse de boleia, ou tivesse decidido ficar em casa para não importunar… Tentei a sorte, sei lá. Olhe, desculpe. Desculpe, mesmo. Bom fim de semana e não fique a pensar mal de mim.
– Até segunda, menina Teresa.
Seria uma gigantesca partida de Carnaval fora de horas? Dia das mentiras? Estaria o mundo a acabar e apenas não tinha visto as notícias? A fome que sentia, também já não o ajudava a raciocinar. Aquela outra sensação, a de preterido, também começava a magoá-lo, ainda que não se rendesse a admitir o fracasso de uma noite em que depositara tantas esperanças e fantasias. Uma cena à Great Gatsby, mas com cenários do Moulin Rouge, tudo muito Baz Luhrmann, tudo muito Spectacular, Spectacular, com mulheres sofisticadas e elegantes, ansiando por um rasgo do seu sorriso. Começava a ser acossado por uma sensação muito estranha, quase a roçar o desespero, como quando estamos aflitos para ir à casa de banho e não conseguimos vislumbrar uma esquina decente, sequer. Uma espécie de sede da alma. E se jantasse em casa? Sentiu um ligeiro vómito, só de colocar tal hipótese. Ainda assim, espreitou o armário despenseiro, da sua cozinha muito high-tech. Solteira, insolente, uma única lata de atum em conserva, que devia ser da empregada, e uma mísera sopa de rabo de boi em pacote. Mau de mais. Antes gin do que aquilo. Agora, sim, estava faminto. Morreria à fome? Nisto, um som… Deus era misericordioso. Era a sua Ava Gardner, mas educada, a sua Jennifer Lawrence, mas com domínio de etiqueta…
A campainha não parava de tocar. Era uma das vizinhas. Uma boçal endinheirada, para conseguir pagar o condomínio, ou ‘mantida’ à conta de algum velhinho cego pela luxúria e pelas banhas. Há parafilias para todos os gostos, até para as obesas. Ele era compreensivo, um homem do mundo e com mundo, mas baixinhas gordas… mais um vómito, só de reunir as duas palavras de seguida. Aquele serão acabaria com ele. Abriu a porta. A pobrezinha estava de lantejoulas, fazendo lembrar uma sardinha prateada, mas em tamanho baleia e formato atarrachado. Quase se enterneceu com tamanha pobreza estética. Ele era um homem muito sensível, congratulou-se. Tanto chorava com a delicadeza de um soberbo soufflé como com a pobreza de espírito. Era, de facto, um ser extraordinário e singular. Adorava-se. A rubicunda e rústica almondega abria e fechava a boca, mas ele tinha dificuldade em perceber cabalmente tudo aquilo que dizia, distraído que estava com a sua dentição incompleta. Primeiro, acreditou que usava aparelho de correção dentária, mas era apenas a sua ingenuidade e ambição estética. As sombras eram mesmo ausências dentárias. ‘Tadinha, mil vezes ‘tadinha. Entendeu qualquer coisa como um convite para jantar lá em casa. Que era o único vizinho que não conhecia e que não era civilizado que assim fosse. Que já se tinham cruzado… Poderiam precisar de ajuda mútua, um pé de salsa, dois dedos de conversa…
Toda aquela matemática e a fome que já rosnava de forma audível para terceiros nas suas entranhas, e Diogo decidiu o impensável: ignorar a ignóbil revolta, o brutal nojo de toda aquela situação, a náusea e avançar para aqueles rojões de aromas campestres. Afinal, era por uma boa causa: a sobrevivência de um espécime deslumbrante, ele, e o cumprimento de regras civilizacionais, para com a pobrezinha. Não desdenhou. Ainda assim, mandou-a ir para casa, dizendo que tinha telefonemas a fazer, a fim de desmarcar alucinantes encontros, e que, em breve, iria ter ao seu encontro. Não conseguia imaginar o embaraço que sentiria se fosse visto no mesmo elevador que a desesperada almôndega de lantejoulas vestida. Ao que o mundo tinha chegado. E, depois, se ninguém mais soubesse – ele próprio não tardaria a apagar para sempre o episódio da sua vida –, simplesmente não existiria para lá daquele jantar. Sim, porque um cavalheiro não conta. Melhor ainda, nem lembra. Antes a vergonha e a ignomínia. Antes a própria morte. Mas não de fome, já agora.
Moral da história: Parece que células gordas e moléculas de felicidade são, segundo a ciência, incompatíveis, Seja como for, antes giro, rico e magro do que gordo, logo, feio, e impossivelmente feliz.
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