GATA BORRALHEIRA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

Ao ver-se ao espelho, enquanto retirava os quilos de maquilhagem e, sob esta, ao reencontrar as habituais olheiras que lhe desciam já até ao pescoço, Gata Alheira, questionou-se porque não lhe chamariam antes Gata Olheira! Um delírio retórico, já se vê. Num meio tão deprimente e limitado quanto o dos bares de alterne e seus derivados, – o seu era um derivado, já que foi ‘derivado’ da morte da mãe e do aparecimento na sua vida de uma madrasta de bradar aos céus com duas filhas diabólicas (menos pelo engenho ou argúcia e mais pela feiura e burrice), que o circuito da noite se tinha tornado no seu ganha-pão.

Todavia, Gata recordava outros dias, bem melhores. No início, quando era criança e a mãe ainda era viva, percorria com os pais o circuito das feiras e festas populares, com a sua roulotte vocacionada para os fritos caseiros, dos quais se destacava a especialidade da casa: Alheira de Mirandela com Ovo Estrelado, feito à moda da sua avó paterna. Eram dias de saltimbanco, duros e madrugadores, mas eram também dias de liberdade, de estrada e aventura, nos quais se permitiu sonhar com príncipes encantados e palácios reais. No inverno, de regresso à aldeia nortenha, tinham a tasca de família – um negócio herdado do seu bisavô – onde se reuniam aldeões locais e das cercanias, pois não havia petiscos como os da família Mata, apelido de toda aquela gente que se dedicara à adoração da alheira. Hipertensa, uma alimentação feita à base de óleos, fritos e gorduras e a mãe, já então em queda livre no gelatinoso precipício da obesidade mórbida, certo dia caiu sobre a larga sertã das alheiras e seu óleo fervente e morreu. Acalmou-os o médico, assegurando-lhes que morrera muito antes do seu rosto tocar no óleo da fritura. Ataque cardíaco fulminante. Terá morrido instantaneamente, ainda a alguns palmos do fundo da frigideira. Tanto melhor. Já bastava a desgraça, não necessitavam de dramas acrescidos.

O pai, Quim Mata, não tardou a perceber que necessitava de quem lhe fritasse as alheiras e, já agora, lhe aquecesse a cama. Porque não? Se fosse uma e única pessoa, a fritar e a aquecê-lo, já se vê, poupava-se no ordenado da primeira. Voltava a ter uma família completa e as contas equilibradas. O pai nunca foi bom em questões financeiras, ou outras, de resto. Menos ainda em assuntos do coração. Foi então que surgiu a Bruxa Má. Uma mulher como jamais a aldeia tinha visto. Toda vestida de preto, armada numa daquelas viúvas de filme negro série B, entregues a um luto eterno e demasiado sentimentalão para conseguir sair de falsos clichés. Mais uma teimosia estética do que uma exigência emocional. Já tinha ‘matado’ dois maridos, comentava-se entre dentes. De cada um, uma filha, para garantir toda e qualquer herança possível e o luto cada vez mais carregado. O preto ainda mais preto. As lágrimas cada vez mais raras. E sempre aquele olhar de águia alerta. Apenas uma alheira lá na tasca dos Mata e o pai caiu no feitiço daquela mulher de negro. Não sabia, então, o porquê de tamanho enlevo, mas aos olhos do pai, até os estafermos das duas filhas monstras se enfeitavam com adjetivos de anjo.

– Vais ter duas manas e uma nova mãe que te vão adorar.

GATA BORRALHEIRA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

By Diane Arbus

Gata, diminutivo de Ágata, em homenagem à cantora predileta da sua mãe biológica, insurgiu-se. Esperneou. Barafustou. Gritou e chorou. Em vão. Na altura, apenas uma revolta pela substituição tão prematura da mãe. Apenas um mau pressentimento em relação àquelas três mulheres tão hediondas. O pai entendeu tudo como ciúmes infantis. O pai, nada via. O pai casa-se de novo. Uma cerimónia simples e curta, que a bruxa era mulher pragmática, nada dada a romantismos descabidos ou a gastos desnecessários. Uma noiva de preto, cor que, afinal, assim o percebeu Gata, nada tinha a ver com dor ou saudade, muito menos com fachadas sociais. Apenas um gosto. Uma predileção. Apenas opção estética de um guarda-roupa que a cada dia se tornava cada vez mais diminuto, mais reduzido. Não em número de peças, mas em gasto de tecido. As saias subiam que nem imãs ao encontro dos decotes cada vez mais ‘abismados’ dos tops. As calças, feitas de películas brilhantes que mais pareciam plástico, ajustavam-se às carnes da madrasta, tal como a pele às carnes da alheira. Foi a primeira vez que ouviu falar de latex, cortes skinny e slim fit. Não tardou a que a tasca virasse casa de alterne, mas nem por isso a ‘alheira’ deixou de ser a chave do negócio. Assim o explicou a própria Bruxa Má a toda a família.

– Acabaram-se as feiras e as madrugadas. Vamos abrir um estabelecimento de primeiríssima qualidade. Continuaremos a oferecer carne e a louvar a alheira, mas de uma outra forma.

Na altura, Gata não percebeu a dimensão da mudança de ramo nem a parola liberdade poética de tais palavras. Achou apenas que a tasca seria promovida a casa de pasto ou, até, a restaurante, já que reconhecia ambição naquela Bruxa Má. Por isso, foi estupefacta que viu o fogão ser vendido e as garrafas de óleo de fritar serem substituídas por tubos de lubrificante. Mudavam as embalagens, mantinha-se a gordura, por assim dizer, pensava ela. Quim Mata a tudo dizia sim. Com maior ou menor convicção, era sempre ‘sim’. ‘Sim, querida’. ‘Claro que sim, querida’. Que raio de feitiço teria ela feito para o pai deixar de ter vontade própria, raciocínio, uma palavra a dizer!?? Uma outra, porque o ‘sim’ estava garantido. Demorou pouco tempo a saber a resposta: sexo. Demorou bastante mais para compreender a tara que os unia. Esta revelou-se brutalmente, certo dia. Dirigia-se Ágata aos anexos das traseiras quando começou por ouvir gritos e barulhos malucos: os quartos das traseiras, onde antes de a mãe morrer viviam, de forma digna e individual, os idosos da família. Desalojados sem elegância e colocados em lares das redondezas todos os velhotes, os seus aposentos eram agora suites com nomes exóticos. Robinson Cu-Teso-É era um deles e foi nele que descobriu – por entre uma nesga das cortinas mal cerradas –, um homem de gatas, com um capuz de cabedal na cabeça, uma ridícula tanga e a clássica bolinha na boca. Ao pescoço uma coleira com bicos de metal, como já tinha visto em Pit Bulls. Presa a ela, uma trela, que terminava na mão esquerda da madrasta. Na mão direita desta, um chicote com que ia açoitando o desgraçado, que latia de felicidade ou gania de dor. Não conseguiu perceber. O medo colou-a ao chão. Marquês de Sade teria delirado e os fãs de “Pulp Fiction” teriam gritado: “Plágio!” Ela apenas estremeceu de pavor. Colada ao chão e à vergonha. Manteve-se à espreita. Algum tempo depois, era o pai o homem quem ela viu sair daquele mesmo quarto, de mão dada com a Bruxa Má e um ar tonto de cão com rédea curta. Ela, uma destemida e sádica dominatrix, ele, um totó masoquista. O mundo todo, tal como o conhecia, e todo o restante mundo que ainda estava por descobrir, tinha simplesmente acabado. Ruíra. Nada mais havia que desejasse conhecer. O pai de gatas. Com uma humilhante e ridícula roupa de cabedal. O pai atado. Uma bola vermelha na boca. Chicoteado e a ser verbal e fisicamente enxovalhado por aquele ser demoníaco que acabava de entrar nas suas vidas. Ágata, mesmo sem saber bem ainda o que se seguiria, percebeu o negrume a aproximar-se daquele pequeno e até então, sereno e simples pedaço de vida que lhe pertencia, ou julgara pertencer. Com apenas quinze anos, Ágata já engrossava as fileiras, que é como quem diz, começava a trabalhar no bordel da família. Está bom de ver que, a bem do pragmatismo, o ideal era que o nome das ‘meninas’ desse, desde logo, ao cliente uma boa indicação de qual era a sua ‘especialidade’. O seu era um caso óbvio de Linda Lovelace, uma cena gutural, por assim dizer e, à conta do seu zelo profissional – há que colocar o máximo de nós no mínimo que façamos, já dizia Pessoa –, somado ao fascínio confesso pela canção tradicional “Não casei na minha terra fui casar em terra alheia, lá lá lá…” acabou na infelicidade de um batismo grosseiro: ‘Enterr’Alheira’.

GATA BORRALHEIRA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

By David Foster Nass

As duas filhas monstras da bruxa – descendentes diretas de “Feios, Porcos e Maus” – eram já exímias no varão. A par disso, apresentavam ainda, aos fins de semana, um miserável número sado-maso-lesbo-trans, tão, mas tão mau que era constrangedor. Dias havia em que, de tão mau, era até giro de ver. Nunca precisou de dominar nenhuma dessas artes, nem o varão nem números porno-burlescos, já que a madrasta, que se orgulhava de exibir os seus dois rebentos de abrótea ao universo da sua clientela, não estava interessada em que pusessem a vista em cima da pobre Ágata, destinada aos quartos dos fundos, onde homens sem história e outros tantos cheios dela afogavam as suas mágoas, ou antes, enterravam o seu desprezo. Ágata vivia enojada, sempre a gargarejar com os mais exóticos e coloridos elixires bocais, mas ainda assim grata à megera por a manter no escuro. Longe da vergonha dos olhares alheios. No silêncio do seu ofício, onde era forçada a abrir a boca, sim, mas sem necessidade de falar. Certo dia, Xico Ovelha, o homem mais cobiçado do norte do país, por ser filho único de um vencedor do Euromilhões, aterrou naquela espelunca e, para abreviar nos detalhes de menor elegância, diga-se tão-somente que foi muito bem servido. Oferta de bebidas, um lap dance duplo, com ambas as porquinhas a esparramarem-se no colo do desgraçado – afinal, falamos seguramente de uns 250 quilos por junto, o que exigiria em qualquer canto do planeta uma renomeação para fat dance, ou mesmo fat transe, mas esse batismo não se deu –, e o destino final, e por uma verdadeira pechincha, iam já informando: apenas 500 euros pelo melhor felacio de todo o Portugal ou 1500 por uma sessão completa de bondage. Desconhecendo por completo o significado desta última palavra e com receio de parecer pacóvio e demasiado provinciano, e porque o primeiro nome sempre era parecido com prefácio – se um livro aguenta com um, também ele se deveria aguentar –, Xico Ovelha não hesitou: “a primeira de todas, fáxavô.” A primeira de todas seria. Avisaram Ágata pelo intercomunicador. Não obtiveram resposta, mas, quer dizer, um cliente destes não podia esperar. As manas gordalhufas, antecedidas pelo bamboleante rabo da mãe, no qual Xico Ovelha mergulhava um olhar turvo de lascívia, lá conduziram o ilustre cliente. Na total escuridão, uma mão apoderou-se de Xico e, passados 15 minutos, o homem não tinha dúvidas. Tinha sido o dinheiro mais bem gasto da sua vida. Voltaria.

A GATA BORRALHEIRA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

Acontece que Xico Ovelha, que não primava pela inteligência e cujo cérebro se ia evaporando juntamente com o álcool que ingerira, nunca chegara a saber ao certo em qual das espeluncas tinha entrado, nem sequer em que aldeia. Uma única certeza. Estava para lá do Marão. Disso não duvidava. Porém, ainda era um pedaço valente de terra e casas do género, ou seja, casas de alterne – porque nelas se alterna entre o mau e o péssimo gosto, em decoração, sobretudo – pululavam por aquelas bandas. Deu uma de mimado e promoveu um concurso numa das feiras semanais: casaria com a rapariga que tão bem o tinha servido num certo fim de semana, numa determinada casa, na completa escuridão. Claro que não tardou a que a palavra chegasse a Chupa-Troops – é mesmo verdade, era esse o nome da antiga casa das Alheiras da família Mata, atual antro de luz vermelha. Madrasta, atenta mulher de negócios e mãe extremosa, como já se percebeu, convocou, por SMS, as suas duas filhas, mantendo Ágata na ignorância. Já que era para casar, que se casasse uma das suas sedutoras filhas e não a trinca-espinhas-filha-do-marido. Até porque sozinha, Ágata fazia cinco vezes mais dinheiro do que as suas duas febras penduradas no varão de ferro – assim teve de ser devido ao peso das bichas –, pelo que perder Ágata seria dizer adeus a três quartos do negócio, pensava a madrasta (também ela fraquinha a matemática). A boca daquela miúda era o bem mais valioso da empresa familiar, não podiam hipotecá-lo. Assim, começou uma romaria de dimensões hercúleas. Novas, velhas, desdentadas, gordas, magras, casadas, solteiras, vivas, mortas… Não houve mulher que não fosse fazer o requerido teste, algumas mesmo vindas de sul. Tão a sul que eram mesmo algarvias. Há quem se recorde de uma ou outra marroquina, que isto do Facebook leva tudo um pouco mais longe. A fim de testar e validar a identidade da secreta mulher, organizaram-se verdadeiros festins de sexo, mas Xico Ovelha não tardava a dar o veredicto: “Não é esta”. Alguns dias depois e nada de encontrar a rapariga que tanto procurava. Decidiu inverter a situação e ir ele em busca da sua amada, percorrendo, que nem um louco, todos os antros da zona e arredores. Acabou por ir bater de novo ao Chupa-Troops. ‘Testadas’ todas as mulheres à vista no dito estabelecimento, Xico Ovelha referiu uns quartos escuros, nas traseiras da casa principal e, mesmo sem autorização, para lá se dirigiu. Ágata Enterr’Alheira, que acabava de se desmaquilhar e dava a noite por terminada, estava de saída e esbarrou literalmente em Xico Ovelha. Como que possuído ou invadido por uma qualquer epifania, o homem soube ali, naquele instante, que era aquela a mulher daquela noite, até porque estava a reconhecer o quarto.

– Qual noite?´, indagou curiosa Ágata, cujos planos de fuga ocupavam todo o seu pensamento e se estava nas tintas para Xicos Ovelhas ou Zés Cabras.

– Dia tal do tal, faz precisamente hoje não sei quantas semanas. Fui aqui atendido como nunca antes e estou decidido a casar-me consigo.

GATA BORRALHEIRA POR MARINA ROCHA RIBEIRO

Que pedido tão ternurento e que volte-face a sua vida não iria ter. Acontece que dia tal do tal tinha sido quarta-feira e às quartas, o pai dava-lhe sempre folga, para que saísse para onde quisesse. Desanuviasse a cabeça. Precisava apenas de chegar de madrugada, para parecer que dormira em casa e sempre lá estivera. Hábil no jogo de entrar e sair sem ser vista pela mulher ou pelas enteadas do pai, Ágata aproveitava as folgas até ao limite, pelo que tinha a certeza de não ter sido ela. Ia precisamente dizê-lo quando homem tira do bolso uma lembrança que essa gentil mulher lhe tinha deixado. Incrédula, Ágata e a madrasta reconheceram, em simultâneo, a bolinha que o pai usava na boca naquelas sessões privadas. Seriam eles felizes para sempre? Já passava da meia-noite. Tudo podia acontecer.

 

Moral da história: Seja o que for que se faça na vida, deve ser feito com todo o brio profissional. Assim se distinguem os pequenos e insignificantes, dos grandes e magníficos. Já agora, plena igualdade de direitos no trabalho entre homens e mulheres. Por último, e com direito a tatuagem: nada se compara ao amor de pai.

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