Faltava o quarto da menina Adérita. Por mais voltas que desse, a fim de tornar menos monótona a rotina diária, que invariavelmente se repetia até à náusea, acabava de forma inevitável a cumprir a ronda de sempre. Todos os dias, após concluída a limpeza dos quartos, dizia para si mesma que na manhã seguinte faria tudo ao contrário, começando pelo que habitualmente era o fim. Logo que fosse buscar o carrinho com os acessórios de limpeza, seguiria pela copa, e não pelo corredor dos quartos, a fim de variar o circuito higiénico matinal. Planos de véspera que se tornavam infrutíferos logo que pegava ao serviço. Talvez não fosse pessoa matutina, daquelas que têm o cérebro mais ágil pela manhã. Talvez fosse por os seus dias começarem demasiado cedo, por volta das cinco, a fim de entrar ao trabalho às 6h30, sem dar tempo à cabeça para se repor, para se habituar à ideia de ter um dia inteiro pela frente. Talvez fosse por ambos os anteriores pontos. Acreditava, porém, que se devia ao facto de ter um lado obsessivo-compulsivo que encontrava maior lógica na ordem que sempre dera às coisas.
Mentalmente, fazia mais sentido virar à direita logo que saía dos arrumos, já com o carrinho munido de tudo aquilo de que necessitaria, e seguir em frente, sempre a direito, pelo corredor dos quartos, em vez de voltar à esquerda e percorrer a copa, contornando a cozinha e chegando, então, à sala comum, no final da qual voltaria a encontrar o corredor dos quartos, mas na outra ponta. O facto de ter um estômago sensível teria determinado essa sequência e não outra, pois assim evitava os cheiros vindos da cozinha, também ela já em ebulição a essa hora, onde odores a café com leite se misturavam com os da sopa e outros preparos, que punham já a tampa dos panelões numa efervescente dança barulhenta, contribuindo para uma cacofonia de ruídos e odores que a indispunham. Era também mais cómodo privar o cérebro de ter de pensar numa operação onde imperava a óbvia propriedade comutativa da adição. O resultado teria sempre de ser igual e o mesmo é dizer que no final teria de ter limpado todos os quartos, independentemente da ordem, de começar numa ou noutra ponta, de o ter feito sequencial ou alternadamente. Hoje, o dia nem sequer se tinha habilitado a ser exceção, já que nem lhe ocorreu que poderia, que deveria ou que pretendia fazer diferente. No fundo, Odete convenceu-se de que não queria, pois se assim fosse, tê-lo-ia feito, ou já o teria feito outras vezes. Era indiferente. Não sabia sequer porque perdia tempo com essa lengalenga de mudança. Se há uma coisa boa na rotina é precisamente a sua repetição, que nos desimpede espaço no cérebro para magicar outras coisas, enquanto mecanicamente se executam as tarefas de sempre, pela ordem de sempre, sem nelas termos de pensar, sem requisitos de medição e avaliação. Já está tudo no processo.
Lá estava o quarto 29, o último, o da menina Adérita. Menina porque solteira, e porque chegada de um tempo onde ser menina ou senhora tinham algum significado social ou mesmo cultural, pois que ali não havia criatura abaixo dos 80 anos, e a menina Adérita era até a mais velha no momento. Aliás, tinham já encomendado o bolo de aniversário da menina Adérita, para assinalar uma data que se aguardava com grande entusiasmo, afinal, não é todos os dias que se cumprem cem anos de vida. Três dígitos. Caramba! Que vida longa, e com a cabeça no lugar. Nada de demências ou ‘apardalamentos’ da idade. Tudo funcionava. Mais devagar, mais roufenho, mais enferrujado, mais brando, mais suave, mais frágil, muito mais frágil, mais surdo, muito mais surdo, mas tudo estava operacional. Ainda que todos os dias colocasse um resguardo na cama, a fim de evitar eventuais incontinências, todos os dias o encontrava seco, ou quase. Nunca aquela mulher usou uma fralda. Odete só desejava para si uma velhice como a da menina Adérita.
Bateu à porta, chamando pelo nome.
– Menina Adérita, posso?
Lá a encontrou no ritual de sempre, já com o seu colar de pérolas ao pescoço, frente ao lavatório da casa de banho, a fazer a higiene da sua placa dentária. Pois, a dentição dificilmente percorre um século sem danos.
– Então hoje não precisou da bengala?
Menina Adérita, olha em redor, como se esperasse encontrar a bengala encostada ao lavatório. Os seus olhos passaram como radar pelo quarto. Acabou por pousar os olhos nela logo que a encontrou, ainda encostada ao cadeirão, perto da cama.
– Nem nos apercebemos. Não precisámos.
Ainda que sobejamente habituada e familiarizada com as idiossincrasias de cada um dos habitantes, Odete não deixava de se admirar pela curiosa forma com que a menina Adérita se apresentava ao mundo, num divertido plural. Nunca eu. Sempre nós. Ela mais ela, ou ela mais Deus, pensava Odete divertida. Era quanto bastava. Nada havia de majestático naquele nós, mas era, ainda assim, impressionante e significativo de uma singular forma de ver o mundo e de nele estar. Nós. Essa era a particularidade mais particular da menina Adérita.
– Vou esperar que saia antes de abrir a janela, que hoje está um dia frio e ventoso e não quero que a menina Adérita se constipe.
– Oh. Não faz diferença. Nós vamos morrer hoje.
Odete olhou-a. Estava sem dentes. Tinha-os voltado a colocar no copo. Tanta limpeza e depois não colocou a placa. Talvez já houvesse alguma demência, apenas camuflada por uma infinidade de outras pequenas coisas que já não se fazem, ou já não se fazem da mesma maneira, à mesma velocidade, tudo enganando, até o próprio cérebro.
– Não diga isso. Está lá dia para se morrer. Espere, não vá assim. Deixe-me pôr-lhe o xaile. Assim. Onde é que está a pregadeira que costuma colocar a apertá-lo? Aqui está ela. Vê?! Está muito melhor. Agora vá, que o pequeno-almoço já está a ser servido.
Odete também já não perdia tempo a olhar os quartos. Sabia bem por onde começar. Abriu a janela, puxou a roupa da cama para trás e deu início ao seu próprio ritual. Dobrou em quatro o resguardo, que parecia nem ter tido corpo por cima durante toda a noite. Colocou-o no lixo. Foi pôr a almofada a apanhar ar à janela, equilibrada no parapeito. Voltou à cama. Esticou o lençol de baixo e deixou a cama assim, a apanhar ar. Entrou na casa de banho e começou a faxina. Primeiro o lavatório, depois o poliban e, por último, a sanita. Tudo desinfetado. Um pouco de lixívia, sempre. Em todo o lado. Era dia de substituir as toalhas. Por ser o último dos quatros, só já tinha as que tinham bordado o número do quarto, 29, e o nome da menina Adérita. Não apenas Adérita, mas Menina Adérita. Odete riu. Daí o nós, era a menina e a Adérita. Ou seria por causa das vezes infinitas em que todos lhe perguntavam: “Então, como é que estamos hoje?” Estamos. Como se a pergunta também incluísse o questionador. Abriu a janela da casa de banho antes de lavar o chão, para que secasse rapidamente. Voltou à cama.
O vento tinha feito cair a almofada no chão do quarto. Ainda bem que o vento estava de feição. Não apenas tinha empurrado a almofada para dentro, como estava a arrefecer a cama rapidamente. Puxou o lençol de cima, esticando-o com zelo, que Odete não sabia fazer as coisas pela metade, nem mal. Tudo a preceito, como se estivesse a aguardar uma inspeção real. Entalou bem os lençóis, apenas na zona dos pés, para que não prendesse os movimentos de quem tivesse de sair da cama a meio da noite, fazendo-os tropeçar. Uma queda, naquelas idades, pode facilmente ser o princípio do fim. Verificou se a cama estava no nível zero, o mais baixo. Por vezes, os idosos mexem nas coisas, intencionalmente ou sem darem conta, pelo que tinha na sua rigorosa checklist alguns procedimentos imperiosos. Verificar a altura da cama e até onde o lençol de cima poderia ficar preso no colchão eram dois deles. Sacudiu bem a almofada, que esticou para fora da janela enquanto lhe dava vigorosas palmadas. Viu o pó elevar-se no ar. Verificou que não havia manchas de baba na fronha, pelo que voltou a colocá-la na cabeceira da cama. Sobre ela, colocou o edredão, sobrepondo-lhe ainda uma coberta, com a mesma cor camel de todas as camas. Uma forma de uniformizar as habitações, não obstante poderem estar decoradas e ter roupa de cama pessoal, ao gosto de cada um. Um lar não é uma prisão. Quer dizer, é, mas não se deve parecer a uma. A bem da verdade, é uma prisão pior, na medida em que muitos dos idosos nem dali querem sair. Aguardam apenas. A morte, claro. Não é um corredor da morte, mas há igualmente uma sentença e um final previsível e espectável, apenas sem data marcada e sem agendamentos humanos. Tudo depende da saúde de cada um. Ou seria da vontade?
Só faltava limpar o pó e lavar o chão. Limpar o pó era rápido. Por sobre a cómoda, apenas uma jarra, sempre com um pé de flor, que a menina Adérita cuidava de trazer do jardim, e que substituía assiduamente, e uma moldura de prata com uma foto dos pais no dia do seu casamento. Odete gostava de olhar aquela foto, pelo muito de promessa que continha. Os noivos muito sérios, mas de mãos dadas, o que, achava Odete, era inédito naqueles tempos idos, há mais de um século, e uma indelével denuncia de amor. Uma nota óbvia de paixão… Odete surpreendeu-se. A menina Adérita estava de volta.
– Já?! Minha querida, nem sequer me deu tempo de terminar. Deixe-me fechar a janela, espere aí.
– Não nos sentimos bem.
– Mas comeu?
Menina Adérita ouvia muito mal. Odete percebeu que não tinha ouvido, ou não queria responder e insistiu. Agora mais alto.
– O que é que comeu?
– Chá e uma torrada, mas não temos fome. Não nos sentimos bem.
– O que é que sente? Está mal disposta?
– Vamo-nos deitar.
– Isso. Deite-se que eu ajudo-a.
Odete retirou o alfinete de peito com que tinha prendido as pontas do xaile que havia colocado nos ombros da menina Adérita. Colocou-o na gaveta da mesa de cabeceira. Dobrou o xaile e sobrepô-lo nas costas do cadeirão. Desviou a roupa da cama que acabara de fazer. Elevou um pouco a cabeceira do estrado. A menina Adérita já se sentava na cama. Tirou-lhe as pantufas de carneira e ajudou-a a deitar-se.
– Quer um pouco de água?
– Não. Estamos bem assim. Estamos prontas, agora.
Odete sentiu um calafrio.
– Pronta para o quê, menina Adérita? Está à espera da médica? Avisou-a de que estava indisposta? Não se preocupe, eu mesma a chamo.
– Não se apoquente. Não adiantará. Está na hora.
Odete sentiu-se incomodada, assustada mesmo. Ligou para a enfermaria. A médica não estava na sala de consultório. Odete solicitou que um enfermeiro viesse. Não tardou nem um minuto. Octávio entrou bem-humorado, como sempre.
– O que é que temos aqui?
Menina Adérita olhava calmamente, ora para o enfermeiro, ora para o relógio de pulso. Odete fixou aquela mulher, separada de um século de vida apenas por alguns dias. Era muito tempo. Nada havia a esperar num lar, naquele ou noutro qualquer, mesmo que fosse no próprio lar, que não a morte. Naquela idade, já não há surpresas, nem alegrias extremas, nem dores atrozes, apenas espera e certeza. Espera-se a morte e tem-se a certeza de que ela está para breve. Quando se vive muito tempo, experimenta-se essa sentença, essa fatídica sentença. Odete emocionou-se.
– Está na hora –, repetiu a menina Adérita, – Estamos prontas.
– Claro que está pronta, até porque o que lhe vou fazer não requer esforço nem cuidados. Vamos só medir a tensão, ver como é que está esse coração e verificar se a sua caixa de medicação está correta…
– Parece tudo bem, minha querida. O que é que comeu? – perguntou Octávio docemente.
– Comemos uma torrada.
– Já se sentia mal antes de comer ou só ficou assim depois do pequeno-almoço?
– Não se preocupem, nós vamos morrer hoje.
– Não vai, não senhora, que eu não deixo. Quem é que me ajuda a soprar cem velas para a semana? E quem dança comigo? Nã, nada disso, o que vamos é ver como está essa diabetes. Endiabrada, imagino.
Octávio, com a sua calma, o seu tom de voz amigo e agradável e a sua boa energia, era capaz de dar alento a uma sala de moribundos. Se não fosse enfermeiro daria um ótimo animador cultural. De resto, era mais eficiente nessa tarefa dos que os próprios animadores que, de quando em vez, traziam atividades ao lar.
Depois de picar o dedo magro e seco da menina Adérita e verificar os índices que a máquina lhe retribuía, Octávio disse:
– Podia estar melhor, mas também não está grave, está dentro do espectável. Vamos deixá-la repousar e daqui a uma meia-hora volto para ver se está melhor. Ou antes disso. Tente descansar, minha querida.
Odete já não lavou o chão, não fosse o cheiro dos detergentes incomodar ainda mais a pobrezinha. Passou antes a mopa e saiu em silêncio, mas não em sossego. Decidiu que vigiaria a Menina Odete. Arrumaria o equipamento, deitaria o lixo fora, tomaria o segundo pequeno-almoço do dia, já eram quase 10h, e trataria de ir deitando um olho ao quarto 29. Quando regressou, Octávio também se encaminhava para lá. Entraram. A menina Adérita estava de olhos abertos, deitada de costas, tal como tinha ficado. Odete deixou que Octávio fizesse as despesas da casa.
– Menina Adérita, como se sente?
– Estamos bem.
Octávio pousou a mão na testa da menina Adérita. Tirou do bolso um termómetro e aproximou-o da testa da idosa. Menina Adérita pareceu incomodada. Olhou para ambos e disse:
– Deixem-nos ir em paz.
Odete e Octávio entreolharam-se. O termómetro não anunciava perigo, tudo o resto parecia normal, igual ao de sempre. Apenas uma indisposição. Um dia pior do que o habitual. Apenas um sinal de resmunguice e impaciência a que uma quase centenária tem direito. Deixaram-na em paz, como solicitou.
Odete foi chamada à escola do filho. Uma queda. Uma ida ao hospital. Um braço partido.
No dia seguinte, consciente do propósito de sempre, e pela primeira vez sem voltar atrás nessa determinação, avançou pela copa, contornando a cozinha e driblando o cheiro a sopa que já se misturava no ar com o das torradas e do café com leite, e iria iniciar a sua ronda de limpezas pelo costumeiro final, rompendo com esquemas mentais pré-definidos. Quarto 29, lá estava ele. A porta estava aberta?! A cama desfeita e vazia. O quarto vago de vida. Odete não precisou de fazer perguntas. Olhou para a cómoda, de gavetas abertas. Sobre ela, nem sinal da moldura de prata, onde dois amantes mostravam ao mundo o muito que se queriam. A menina Adérita bem sabia. Estava na hora de irem. Para dentro repetiu: “Nós vamos morrer hoje.”
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