A Nova Mãe, Olhos Azuis, Falsidades e Miopia

Queria tanto que a mãe fosse diferente. Mais como as outras mães. Mais como as outras pessoas. Mais… Mais sofisticada, sem dúvida, e mais alegre também. Mais esperta e, já que estava nos ‘És’, também mais espirituosa. Com um humor mais requintado. Acima de tudo, mais graciosa e sensual. Porque não sexy? Mas isso já seria pedir demasiado aos anjinhos. Uma mãe, inevitavelmente, com melhor bom gosto e um guarda-roupa mais atual. Não suportava os ‘casaquinhos de malha’ de uma vida, sem os quais a mãe não saía de casa, que “o tempo prega muitas partidas”, repetia ela, para se justificar, perante o seu olhar de desespero, e para se perdoar, pelo peso extra que sempre carregava, de inverno ou verão, outono ou primavera. Uma mãe que falasse mais baixo e que só o fizesse depois de pensar um pouco no que pretende, de facto, dizer. Já agora, que não confundisse silêncio com aquele balbuciar em segredo, como quem resmunga para dentro, ainda assim bastante audível. Uma mãe que não passasse o tempo a querer agradar a todos, conhecidos e estranhos, sem o conseguir, na verdade, por causa do ponto prévio, o de ser espontânea e desbocada. Que tivesse mais pensamento crítico e soubesse distinguir a ironia e a hipocrisia de todos os olhares condescendestes que sobre si lançavam e que ela, gentilmente, aceitava como simpatia.

Queria uma mãe mais independente, de pelo na venta. Com um emprego sonante, fazendo coisas importantes, influenciando vidas e futuros, com um título conquistado à força de capacidades intelectuais, argúcia e milhões de seguidores. Uma mãe que fosse ao ginásio e se maquilhasse. Que distinguisse yoga de pilatos e estivesse a par das tendências. Que não parecesse burra e boçal. Capaz de argumentar sobre quais as melhores dietas e que reconhecesse os princípios ativos não dos medicamentos, mas das conversas e relações interpessoais. Uma mãe atenta e preocupada. Imune a distrações maternas e avessa a desorganizações domésticas. Não suportava ver tudo ao monte, por onde calhava, ou melhor, por onde cabia, mesmo quando já não cabia. Queria uma mãe com cérebro, corpo tonificado e que fosse em tudo brilhante e atraente. Forte, mas delicada. Que virasse cabeças ao entrar numa sala e que as fizesse rolar numa argumentação. Porque não podia a sua mãe ser um pouco como todas as outras mulheres do universo materno? Era pedir muito? Demasiado? Não cabe aos filhos bater o pé por mais liberdade, a qual os pais, preocupados, limitam até que a conquistemos a finca-pé? Não era inédito que fosse uma filha a ansiar por mais ordem e disciplina? Sentia-se abandonada. Uma alienígena. Era a única das amigas a ir sozinha de táxi, à noite, para casa. Todas as outras tinham os pais à espera para as levar, fosse dia ou noite. A única sem hora de recolher. A única que tinha de decidir a sua própria vida e desenvencilhar-se dos seus apuros, enquanto a mãe, pai incluído nesta designação, pairavam num universo paralelo, enterrados num laboratório sinistro.

Todas as suas amigas tinham mães incríveis. Lindas de morrer. Closets cheios que nem montras no Natal. Jamais sairiam à rua com os sapatos trocados ou as blusas desapertadas, apenas por esquecimento, pressa e violento desinteresse como era o caso da sua mãe. Mantinham as casas aprumadas e prontas a serem fotografadas por exigentes sites internacionais de decoração, as refeições a horas, os filhos lindos e felizes e os maridos ‘satisfeitos’. Não que alguma vez tivesse ouvido o pai reclamar. Pelo contrário. Aquilo tinha sido bruxedo do forte. Mãe de Santo e pai de beato tudo em um. O pai não tinha olhos para ninguém mais. Nutria por aquela semilouca de cabelo farto, encrespado e eternamente despenteado uma paixão assolapada. Tudo nela era objeto de admiração e elogio. Falavam em código de coisas absolutamente maçadoras que só dois ratos de laboratório entendem. Nem sequer eram os típicos nerds, eram apenas estranhos, maçadores, enfadonhos e desajeitados. Passou a infância a ser esquecida nos degraus da escola, com funcionárias a bufarem de ira, enquanto aguardavam consigo a hora de tolerância. Sempre que conseguia, esgueirava-se e ia a pé. Sozinha. De qualquer forma, antes isso do que passar pela vergonha de ver a mãe chegar, num carro a cair de podre. “Oh, é só um carro. Leva-nos confortavelmente e sem engasgos do ponto A ao ponto B, o que mais se pretende de um veículo?” Esta era a recorrente retórica da mãe, acompanhada de um enigma: “Como se pode ter vergonha de um carro? Um carro é um objeto, sem vontade própria, sem autodeterminação. Nada do que faça pode ser embaraçoso para nós.” A sua mãe simplesmente não entendia, apenas porque não via. Não concebia o mundo como os restantes terráqueos.

Sentada nas escadas, a tentar descortinar o roncar roufenho do carro da mãe, ao qual já faltavam peças e não apenas charme. A imaginar a mãe ao volante, sempre perdida pelas ruas de sempre e que já deveria conhecer de ginjeira, com os seus casaquinhos de malha, com os botões em total desacerto de casas, e os olhos brilhantes de alegria, sem perceber o desespero de todos. A situação e a falta de atitude da mãe chegaram a tal ponto que até as funcionárias já passavam raspanetes à mãe. “Assim não pode ser!” Uma frase que jamais se atreveriam a proferir a qualquer outra mãe, mesmo a outras que também se atrasassem. Mas a sua mãe era a sua mãe e muitas coisas que não sucediam a outras mães invariavelmente aconteciam com a sua. Não se lamentava de falta de colo, mas de colo desajeitado. Não de ausência de amor, muito pelo contrário, chegava a ser embaraçoso, mas acusava o desgaste de uma relação sui generis com a mãe. Sempre foi mais adulta do que a mãe e isso era desesperante. Mais do que isso. Era revoltante e inadmissível.

 

Porque não podia ter uma mãe igual às outras? Que embaraço! Que ódio! Não podia contar com ela para nada que não fosse matemática, química, física e biologia. Tudo o resto, cozinhar inclusive, eram mistérios que não descortinava, nem se esforçava. Comeu mais pizzas, hambúrgueres e enlatados no decurso da primeira infância do que qualquer adulto em toda a sua vida. Felizmente tiveram o bom senso de aceitar isso, logo que se começou a queixar. Sim, não era fã de comida rápida, já lhe bastava o ritmo alucinado dos pais. Tudo o que pudesse vir calma, cândida e desapressadamente era bem-vindo, mais ainda a comida. Lá veio a Amélia e com ela a comida vagarosa, os legumes, as sopas divinais, os estufados, as pastas, as sobremesas, o pó longe das superfícies, a louça lavada, as bainhas feitas à medida das suas pernas e a seu gosto… Um dos melhores dias da sua vida aconteceu quando a Amélia mudou a sua máquina de costura lá para casa. Havia um antes e um depois desse dia. A mãe estarrecia com os modelos que inventava, olhando a filha como quem admira um gigantesco Rembrant pela primeiríssima vez ao vivo. Os olhos da mãe faiscavam orgulho, mas logo regressava para aquele seu planeta onde as pessoas deviam usar fardas iguais, para evitar distrações, ou simplesmente prescindir de roupa, o que, no caso da mãe, iria dar ao mesmo, desatenta como era para o universo mundano que todas as outras pessoas habitam.

By Jerry Schatzberg

Em casa da Catarina, sentia-se em casa. Ou seja, sentia-se como desejaria sentir-se quando estava na sua casa, o que não acontecia. O que nunca acontecera. A casa da Catarina era citada e ostentada em revistas de decoração internacionais. A mãe tinha uma das mais cobiçadas contas de Instagram de toda a história do Instagram, e noutras redes sociais já não havia lugar para mais gente ávida de um vislumbre da sua vida. O pai da Catarina era charmoso, cool, mandava fazer fatos por medida e não havia uma professora no colégio que não se acotovelasse para ter a turma da Catarina, a fim de poder estar na mesma sala do que aquele homem, nem que fosse apenas nas reuniões e eventos escolares a que ele não faltava. Os irmãos da Catarina eram todos louros e de olhos azuis e eram a visão que mais a atormentava sempre que se via ao espelho, já que este teimava em recordar-lhe as suas assimetrias, as suas idiossincrasias: um olho de cada cor, como a sua própria mãe, e o cabelo de tom indecifrável, entre o laranja e o bordeaux, como o do pai. Não. Nada de exótico, apenas malformações genético-estéticas e anacronismos cromáticos. Mais perto da aberração do que da exceção. Tudo muito ao lado. A mãe da Catarina, segundo dava conta a imprensa para quem isso era notícia, teria um amante famoso. Até isso tinha o seu charme literário.

Um ator, agora no estrangeiro a fazer carreira e a ganhar prémios em tudo quanto era festival. O pai da Catarina também tinha uma ‘assistente pessoal’, que muito lhe assistia, a acreditar pelo que a Catarina lhe confessava entre soluços. Se ao menos os seus soluços fossem dessa natureza. Mas não eram. Os seus soluços eram de vergonha e embaraço. O pior castigo de todos era ter de sair com a mãe, apresentá-la a alguém e ter de a odiar um pouco mais de cada vez que ela a humilhava. Ora se esquecia da cara das suas melhores amigas, a quem solicitava o nome a cada novo encontro, ora cometia inconfidências humilhantes, como aquela vez em que, da janela do quarto, lhe solicitou que lhe fosse comprar tampões, como se não tivesse percebido que o Ricardo estava presente e o Ricardo era o amor da sua vida desde o primeiro ano do primeiro ciclo. Enquanto se sumia no chão do jardim, ainda conseguiu ouvir o pai, que também assomou à janela, solicitando que trouxesse dos maiores, pois precisavam de fazer uma experiência. Jamais conseguiu olhar para o Ricardo sem achar que ele mantinha ainda aqueles mesmos olhos esbugalhados e um sorriso de surpresa nos lábios, que ela acreditava que lhe tinha ficado estampado indelevelmente no rosto desde esse triste episódio. Ele jamais os perderia, aos seus olhos, e ela jamais recuperaria a coragem de pensar que ele, um dia, conceberia a possibilidade de beijar a filha da mulher que solicita tampões pela janela e do homem que com eles faria experiências. Não falou com os pais durante um mês, mas eles nem deram por isso, já que viviam presos num silêncio cúmplice a roçar o patogénico, nem se aperceberam que os seus beijos e abraços não eram retribuídos. Odiava-os todos os dias um pouco mais, todos os dias um pouco mais fundo, pois era crescente a sensação bomba-relógio de que a qualquer instante algo de muito humilhante poderia acontecer e só por isso, aconteceria de facto. Isso mesmo lhe dizia a experiência filial.

Um dia, Catarina bateu-lhes à porta a meio da noite, em total desespero. Só se apercebeu disso algumas horas depois, já que o seu sono era do tipo blindado, imperturbável mesmo perante ruídos apocalíticos e movimentos tsunâmicos. Incrédula, viu a mãe desajeitadamente a consolar Catarina. Quase lhe pareceu humana. Catarina chorava sem mexer um músculo do rosto, num transe assustador. Afirmava aos gritos, mas mantendo a expressão impávida, que o pai tinha entrado no seu quarto e que tentara ter relações com ela. Que a mãe não estava em casa e que os irmãos não acordavam com os seus gritos de socorro, que pareciam mortos ou dopados. De entre todas as coisas que a mãe poderia dizer à sua melhor amiga, acalmou-a dizendo-lhe que o pai não era seu pai, pelo que deveria relativizar o sucedido e acalmar-se para que não esquecesse qualquer detalhe que pudesse fazer a diferença no seu relato do sucedido à polícia. Que seguramente o pai biológico seria mais decente e que o homem que estava casado com a mãe, se sentiu apenas atraído por ela, que era linda e boa menina, mas que ela não tinha culpa dos atos hediondos daquela criatura que nem como padrasto, nem como homem se sabia comportar. Não queria acreditar naquilo que ouvia. Catarina também não.

– Como não é meu pai?

Catarina gritava cada vez mais alto como se as palavras só conseguissem sair da sua garganta no volume máximo, com colunas avariadas. A mãe olhou-a com espanto.

– Mas, claro que não é. Vocês não sabiam?

A mãe olhava para uma e para outra perplexa, como se não entendesse o que se estava a passar.

– Mãe, como podes dizer uma coisa dessas? Mesmo que fosse verdade, como poderias estar a dizê-lo, agora, neste momento, dessa maneira?

– Mas eu achei que era do conhecimento de todos.

– Porque insistes em dizer isso, explica-te?

– Minhas queridas, a mãe da Catarina e o padrasto têm ambos os olhos azuis e a Catarina tem olhos pretos. Logo, sabendo que é filha biológica da mãe, só o pai não o poderia ser de verdade.

Aquele momento ‘Poirot de laboratório’ exigiu a intervenção do pai, que esclareceu que a combinação de olhos azuis só permite crianças com olhos da mesma cor. Assim, o pai biológico da Catarina não podia ser o ‘pai’. Acreditando que isto era do conhecimento geral de toda a população mundial, aos seus pais não tinha ocorrido que aquele fosse um segredo de família, ainda que cientificamente muito manco, e que Catarina jamais desconfiara.

By Robert Deutsch

– Não te apoquentes, querida Catarina – continuava a sua mãe, naquela macabra tentativa de consolo –, não terás de estar junto dele muito mais tempo. Em breve irá preso, segundo amigos nossos de um laboratório de investigação, por envolvimento numa rede de tráfego de droga ou de pessoas, não me recordo bem, só memorizei que é muito grave. Ficarás livre dele para sempre. Agora, querem um gelado?

Gelado estava o ambiente. A falta de tato dos pais era capaz de congelar o Sahara. Se fosse suicida, teria cortado as veias nessa noite, ali mesmo, uma a uma até lhe ser possível, pois nem sabia como encarar Catarina. Tudo aquilo era surreal. Quer o que Catarina soluçava, quer o que os pais iam debitando sem a menor noção do despropósito. Acolheram-na nessa noite, a primeira de anos de coabitação que se seguiram, já que o padrasto de Catarina foi mesmo preso, num dia que amanheceu nas redes sociais com declarações horrendas da mãe de Catarina, com um look soberbo, que se demarcava do homem que já tratava apenas por ‘ex’. Ainda que continuasse a viver com a mãe e os meios-irmãos, Catarina passava a maior parte do tempo naquela outra casa, onde verdadeiramente se sentia em casa e segura. Um lugar de verdades cruas e sem maquilhagens. Um lugar louco, porque real.

Catarina apaixonou-se pelos novos ‘pais’, a quem se referia como “os mais cool do mundo” e criticava a amiga por não sentir igual fascínio por eles. Afinal, eles tinham descoberto como levar as células vivas e saudáveis a combater autonomamente células doentes ou invasoras. Era a aurora de um mundo sem doenças, pelo menos para os mais ricos, já se vê que a ciência só é magnânima apenas em teoria, na prática reinam os laboratórios farmacêuticos que bem saberiam disputar o saber que aquele casal de ‘loucos’ doou ao planeta. Veio o Nobel (exageramos?, Talvez!), mas muito antes dele a certeza de que não precisava de uma nova mãe. Parecia-lhe agora, por A+B, que sempre a tivera. Necessitava, sim, de novos olhos. Iria mudar as lentes do coração, para evitar mais miopias, e ajeitar-se noutro canto do mundo, a fim de prevenir outros erros de perspetiva. É verdade, o Ricardo ligou-lhe ontem.

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2 Comments

  1. Ana Zanatti

    Querida Marina, cada um destes textos transporta-nos para a imensidade de universos que a preenchem e ao partilhá-los permite-nos viajar por todos eles. Obrigada… agora que viajar não está no nosso horizonte, estas viagens são ainda mais valiosas. E como alguém disse: a leitura, os livros, enchem-nos de vitaminas. Um beijinho com toda a amizade
    Ana

    • Marina Rocha Ribeiro

      Querida Ana, muito Obrigada!!!
      Que bom é saber que apanha boleia nesta pequena companhia, mais ainda de destinos de pequeno curso, tão banais (ou excecionais) como são aquilo que sentimos e testemunhamos todos os dias. Bj Gd, agora ainda mais saudoso

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