Graciete Pomba e Adelaide Formiga não o sabiam, ou sabiam-no, mas jamais o expressariam. Não por hipocrisia, ou conveniência, mas por acreditarem convictamente que eram amigas e que aquilo que as unia, aquilo que julgavam sentir, ou mesmo que deveriam sentir uma pela outra era amor fraterno. Uma amizade pura. Inabalável. Única. Quanto à sua unicidade, não se levantam questões, nem se exigem provas. Era, de facto, ímpar. Inimaginável, se preferirem. A verdade, porém, é que se odiavam. Não por palavras proferidas que magoassem, ou atos praticados que ferissem. Menos ainda por sentimentos mesquinhos, como inveja, que nutrissem em segredo. Apenas eram o oposto uma da outra. Alguém, que se manteve calado em distração, deveria tê-las informado de que se podiam, obviamente, relacionar, mas que não confundissem sociabilização com amizade. Alguém, que se demitiu do cargo antes de o executar, deveria ter dado o alerta. Acendido a luz vermelha da inquietação, mostrado o manual de procedimentos e apontado para a línea precisa em que se pode ler, de forma inequívoca, que Graciete Pomba jamais poderá ser amiga de Adelaide Formiga.
Porém, elas ali estavam. Na esplanada de um simpático café, de frente para a larga e longa linha de água entre o ouro, a prata e o bronze da superfície espelhada, naquele ponto em que o rio já é mar, banhadas pelo sol matinal e cheias de coisas para dizer, apenas não uma à outra, claro. Um cenário tão excecional desperdiçado daquela maneira, no habitual encontro das duas, aos sábados de manhã. Como foi que caíram naquela esparrela? Enquanto aguardavam o pequeno-almoço reforçado, agora elevado ao estatuto internacional de brunch, Pomba fingia, de olhos fechados, que apenas amolecia e apreciava o momento, sobrecarregando-se de energia solar, usando o rosto como painel rotativo e basculante, como a cabeça de um girassol. Fingia que estava demasiado mole para iniciar a conversa de cha-cha que se seguiria, enquanto a sua mente lançava dardos envenenados a Formiga, tendo o nariz desta como centro do alvo. Mas bem que podia ser qualquer outra parte do corpo da outra. O fígado, por exemplo, ou aquele rímel de última categoria com que, em vão, tentava arrebitar as suas nanopestanas, conseguindo apenas uns borrões e umas bolas espessas de produto. Tudo nela a irritava solenemente. A pequenez de pensamento, o modo tacanho de se ficar pelos detalhes, sem entender as vastas interligações do pensamento, o seu olhar míope e redutor, o seu entediante microcosmos. O mundo abreviado da formiga, rasteiro, sem perspetiva, simplesmente tirava-a do sério e do divertido também. Por outro lado, condoía-se intimamente quando era bombardeada com pensamentos malvados para com a pequena Formiga, principalmente quando entravam em velocidade cruzeiro, como era o caso, e aguçavam a brava urticária que lhe provocava Formiga e tudo nela. No geral e no particular. A pobrezinha era boa pessoa, apenas chata, chata, chata… Aquilo doía muito. De mais. Esganiçava-se em detalhes de importância zero, sobre assuntos penosos e sem qualquer interesse. Apreciava, quase com carinho, pequenos detalhes passíveis de crítica, minudências e pormenores, com que retirava mérito ao que era meritoso. Ao invés de falar do casaco, deliciava-se com o tom errado de um dos botões, só para dar um exemplo. Ora, nem o casaco importa, menos ainda a linha com que este é cosido, ou os botões eleitos. Que maçada!! Havia em Formiga uma miopia substantiva. Ela apenas conseguia ver o adjetivo. Isso resultava numa sintaxe lamentável, numa gramática limitada e limitativa, num estreitamento de visão que ora irritava, ora dava pena, ora era risível. Era nesse limbo emocional que vivia Pomba em relação a tudo o que dizia respeito a Formiga.
Porque estavam, então, ali? Porque se enganavam forçando-se a acreditar que eram amigas? Ela não gostava de Formiga, é que nem um bocadinho, tal como aqueles bocadinhos de mundo que a outra costumava tomar como grandes temas de conversa. Sentia, porém, que a outra a admirava de lá de baixo, da sua subcave de humanidade. Percebia como se orgulhava de sair consigo, como a sua presença a enaltecia. Além de que, estes encontros, deveriam ser momentos de aprendizagem para a pobrezinha, sempre tão confinada à má-língua e ao bota-abaixo de tudo e de todos. Sempre tão azeda. Estar com Pomba devia ser uma lufada de ar fresco, um voo picado sobre outras realidades. Pomba, porém, jamais esqueceria que sabia de cor e salteado o porquê desta inexplicável e irreal amizade – leia-se amizade com todas as aspas que se conseguirem reunir para o efeito. Recordava como nenhum outro, o dia em que se tinham conhecido, num daqueles brutais acasos do destino. Uma brincadeira do divino, seguramente. Lembrava-se bem de como a providência as tinha juntado, num dia de tremendo temporal. A coitada da Adelaide Formiga, com o seu metro e meio de altura e uns míseros 40 quilos de gente, segurava-se ao poste de um semáforo para não ser simplesmente arrastada pelo vento ciclónico, que varria as ruas num tenebroso dia de inverno. Uma tromba de água acompanhada de tornado, como diriam mais tarde as notícias desse dia. Num gesto inédito, Graciete Pomba, parada nos semáforos, que, a vermelho, avisavam interdição aos condutores, abriu a porta do pendura a custo e gritou para que a pobre mulher entrasse. Formiga, hesitante, com receio de ser lançada pelos ares se largasse o poste de metal ao qual se agarrava com o desespero de quem tenta salvar a própria vida, acabou por não se atrever. Com a água a inundar o carro e sentindo que não podia deixar agora a meio o seu gesto de altruísmo, Pomba saiu do carro, o qual contornou a custo e, agarrando Formiga pelo braço, atirou-a praticamente para dentro do seu jipe.
Logo que voltou para os comandos do veículo, Pomba arrancou devagar, contrariando as rajadas de mau humor que assolavam as ruas da cidade e fazendo frente à água, em quantidades desmesuradas, tanto a que vinha dos céus como a que já se acumulava em terra, em caudais que já não permitiam ver os limites dos passeios. Não tinham tido ainda tempo para trocar uma única palavra, no meio de tão intimidadora aflição, quando Formiga puxa do travão de mão do carro, impedindo a sua progressão e fazendo com que este guinasse ligeiramente. Pomba alucinava com a estupidez da outra. Ia gritar-lhe impropérios, lançá-la porta fora quando, à sua frente, resvés ao para-choques do jipe, tomba a gigantesca estrutura metálica do semáforo, agora já iluminado de um pouco esperançoso verde. Em frações de segundos, o cérebro de Pomba entendia que se não tivesse parado para ajudar a pobre mulher, aquele semáforo ter-lhe-ia caído em cima, esborrachado o carro e matado, seguramente. A procissão de trânsito parado à sua frente, lho indicava. A curtíssima distância que poderia ter andado, deixá-la-ia exatamente no local onde a torre metálica agora jazia, impedindo ainda mais o trânsito e aumentando o pânico.
Perante tal episódio de vida e de morte, era inevitável perceber que alguma força maior as tinha juntado e que o facto de terem salvado a vida uma da outra não podia circunscrever-se a um momento cristalizado no tempo e armazenado no passado e esse seria, provavelmente, um ponto de união entre ambas. Além de que, depois de conseguirem pôr-se a salvo, na casa de Formiga, que era a mais próxima do local do predestinado encontro, as duas mulheres desabafaram receios e obrigados e esmiuçaram os sortilégios de tão sinistro e abençoado encontro. Era o karma a exercer o seu poder. O eterno retorno de cada uma das nossas ações. Assim se expressava Pomba, enquanto Formiga rezava uma infinidade de Pais Nossos e Avé Marias, musicados, então, por uma assustadora trovoada, cujas sonoras descargas elétricas acabaram com a eletricidade em menos de nada. Às escuras, aquelas duas estranhas que o destino e o mau tempo acabavam de unir em comunhão de medos, com sentimentos de gratidão mútuos, experimentaram uma quase aproximação divina, ou kármica, ou apenas um episódio intenso, brutal, que lhes roubou as palavras enquanto inventava um laço imaginário de união fraterna, que ambas, percebem, agora, ser uma invenção do pavor que sentiam e da adrenalina com que acabavam de ser injetadas. Claro que tinha sido uma incrível coincidência de atos consecutivos, mas daí a forçar uma amizade, o salto tinha sido demasiado grande. Sem dúvida maior do que as pernas de ambas. Principalmente bem maior do que os curtos membros inferiores da pequena Adelaide Formiga.
Sim, Pomba que se desenganasse e deitasse fora a ideia de que a amiga a idolatrava. Como estava enganada. Como a sua alma carecia urgentemente de novas lentes e quão estigmatizada estava igualmente a perceção da sua mente. Formiga partilhava secretamente das mesmas repulsas que Pomba, mais ainda devido ao seu caráter, sempre pronto a encontrar os defeitos na perfeição, as amolgadelas na lisura, as invisíveis curvas da reta. Tinha olho para isso, o que é que podia fazer? Era a sua grande mais-valia, que lhe conferira e garantia o cargo de chefe do departamento de qualidade de uma grande fábrica de microchips internacional. Tinha olho para os defeitos. Faro para as imperfeições. Não foi, por isso, de estranhar que logo naquele primeiro dia tornado noite pela tempestade, tivesse sentido uma certa antipatia por Graciete Pomba. As suas atentas antenas, sempre a farejar o ar detetavam este género de animosidades. Não tinha culpa. Sempre fora assim, muito sensitiva. Não queria ser mal-agradecida, nem parecer antipática e quase se sentia mal com alguns dos pensamentos que assomavam o seu cérebro. Mas apenas quase. Estava treinada para dar ouvidos à sua intuição e ela encanitava-se, para não dizer exasperava-se, um pouco com os ares de superioridade da outra, mesmo no momento de aflição. Karma? Bumerangue de ações? Que disparate tão grande, perante tamanha manifestação das forças divinas que regem tudo o que é vivo e tudo o que é coisa à face da Terra.
O feeling de Formiga merecia 20 valores, dizia de si para si, que mais ninguém se interessava por esse tipo de autoavaliações. Não se tinha enganado, mesmo com apenas alguns segundos de avaliação e um cenário tão medonho. A mania das grandezas de Pomba, sempre a olhá-la de cima, os seus reparos alados e sonhadores, mesmo quando avaliava coisas bem terrenas e óbvias, o seu discurso altaneiro, a sua imaginação fervilhante, sempre lá nas alturas da loucura, roçando quase a insanidade mental… Tudo aquilo a tirava de si, o que, tendo em conta as suas diminutas proporções, não era tarefa árdua, sendo um exercício a que, de resto, estava bem habituada. Mas só saía de si um pouco e por breves nanossegundos, que tinha muito medo da vida lá fora e de não conseguir voltar a entrar num corpo que lhe era tão querido. Era, não duvidava, o seu corpo favorito em todo o universo, o paralelo incluído.
E quando Pomba se lembrava de lhe dar lições sobre o mundo e a vida, como se Formiga viesse de outro planeta e tivesse acabado de aterrar?! “Sabes, Formiga?” Era sempre assim, em tom paternalista e tutorial, que começava o tédio-mor. Claro que sabia. Já lá tinha estado e já o tinha feito. Muitas vezes até. Primeiro do que a outra, seguramente. Porque não haveria de saber? Só isso não era já arrogância e parvoíce em dose massacrante? Acharia realmente que ela, Adelaide Formiga, tinha saído de debaixo de uma pedra, no instante exato em que se conheceram? Que não tinha história passada? Que lá por Pomba se considerar mais viajada e mais rápida ninguém poderia ter aprendido as coisas de outra forma? Existem bons livros e bons cursos, e boa internet, e boa curiosidade e boas perguntas e boas respostas e cinema e documentários. Seria por ser pequena e magricela e a outra toda torneada e ‘bueníssima’? Acharia que não havia espaço em si para armazenar conhecimento e sapiência? Que irritante que tudo aquilo era. Mas, lá está, tinham-se salvado uma à outra e sobre isso, Deus é muito claro, e informa que o pagamento deve ser feito na mesma moeda, um pouco à semelhança do que acontece dentro da EU, excluindo as taxas aduaneiras. Ah, como a odiava bem lá no fundo. Deus que a perdoasse, mas por que raio tinha Ele, que é grande no seu saber, colocado aquela mulher no seu caminho? Agora, ali estavam, presas àquela não-amizade, condenadas a banais conversas semanais, sobre coisas. Pomba a contrariar os seus pontos de vista, ou a acrescentar-lhes filosofia barata embrulhada em pedantismo e voz doce e calma, mas sem conseguir ver um boi à sua frente, sempre muito insensível ao primordial detalhe, aos detectivescos pormenores da vida, aos ínfimos detalhes do ser e do fazer… Muito desagradáveis aqueles encontros. Uma coisa era certa, Pomba não deixava de ser uma boa ouvinte. É certo que tudo ouvia para tudo contrariar, ainda assim, ninguém mais a escutava como Pomba, lá isso! Não podia ser injusta.

By Vivian Maier
Formiga, que tinha uma manifesta intolerância à lactose e ao silêncio, e temendo já ter passado demasiado tempo em pensamentos pecaminosos em relação à amiga Pomba, já ensaiava mentalmente o próximo tema de conversa, o primeiro desse dia. Estava a precisar de trocar de carro, mas nada sabia de motores, cavalos, cilindradas e outros sustos da mesma família, pelo que pediria a ajuda de Graciete Pomba, já que esta dava sempre mostras de saber mais do que ela fosse qual fosse o assunto. Podia até ser uma boa ratoeira. Ou podia simplesmente aproveitar os olhos fechados da outra e ir-se embora para nunca mais voltar. Porém, era a vez de Pomba pagar o brunch, e a sua pequenez não previa o desaproveitamento contabilístico de um pequeno-almoço gratuito.
Na cadeira em frente, Pomba magicava um plano para se escapulir. Uma indisposição, uma quebra de tenção e de atenção também, um assunto urgente que se esquecera de tratar, uma torneira aberta… Faltava-lhe sempre a coragem. E aquele sol estava a fazer-lhe maravilhas. Percebia a impaciência de Formiga, que já se revirava toda na cadeira. Em breve falaria, já começava a conhecê-la. Nisto, ocorre-lhe que as duas mais não são do que a versão pseudofraterna de um casamento por imposição, em que ambos os noivos se sentem forçados a algo que não querem, mas se sentem compelidos a levar até ao fim, em nome de um sem fim de disparates, regras sociais e tudo o resto. Acontece que elas não eram casadas, e nada as forçava ao que quer que fosse. Podia introduzir outras amigas suas naquele encontro e, assim, diluir a aborrecida presença de Formiga. Esmagá-la com mais gente de mente aberta. Porém, passando em revista amizades e contactos, estranhamente nada lhe agradou mais do que ficar-se apenas com aquele piolho de gente, sempre tão empertigada com os seus ‘assuntozinhos’, sempre tão prestável.
– E se trouxéssemos um livro?
Deixando de parte o assunto carro novo – até porque ainda tinha de rever mais uma vez as suas finanças, que ainda só o tinha feito meia centena de vezes na última quinzena – esta foi a sugestão que Formiga, que já não aguentava manter-se calada durante muito mais tempo. Como se tivessem mantido um diálogo silencioso, apenas mental, telepático, Pomba soube exatamente do que ela falava e, virando o rosto, tentando, mas ainda não conseguindo, abrir os olhos, disse, no meio de um esgar que parecia sofrimento:
– Que grande ideia! Podemos fazer isso, ou palavras cruzadas.
– Podemos ler o livro durante a semana e debatê-lo aqui…
– Para já não, Adelaide. Trazemos o livro para ler aqui. Sem debates. Cada uma traz o seu e à sua escolha que isto não é um clube literário.
– Podia ser.
Formiga parecia inspirada. Havendo um tema de interesse, algo externo mas partilhável, quem sabe, talvez acabassem por se aproximar… Não. Não havia como. Pomba ia ler uma coisa e ela outra completamente distinta e sem outro moderador ou testemunha, a coisa podia ser muito desagradável.
– Esquece – apressou-se Formiga a dizer – apenas livros para nos entretermos durante a manhã.
– Isso. Bravo, cara Formiga, Bravo!
Nisto, servem os mais de 15 itens que haviam pedido. Lá se enchem as bocas e se acalma a mente. Enquanto se deleita com o seu ovo cozido em apenas três minutos, Formiga pensa que bem podia passar sem Pomba. A esta hora poderia estar em casa dos pais, a servir de mediadora às suas eternas discussões, ou estar a lavar a escada do prédio que bem precisa, já que a senhora da limpeza do condomínio parece não ter visão periférica, ou ainda podia aproveitar as manhãs de sábado para ir ao supermercado e pôr-se a par das cusquices do bairro… Curiosamente, nada disso era realmente preferível, ou seria? Com quem é que Pomba viria, sem a sua companhia? Não. Não podia fazer-lhe isso.

By Josef Koudelka
Enquanto saboreava aqueles que considerava serem os melhores scones de sempre, Pomba aceitava, como ato de caridade, o seu papel solidário naqueles encontros de sábado. Era como estar a levar a sopa à sua pobrezinha. Não podia deixar de o fazer. Se não fosse ela, quem o faria em seu lugar numa cidade cada vez com menos coração? E, depois, olhava para Formiga, com os seus dedinhos pequeninos e aqueles olhinhos vivos, muito estranhamente quase no cimo da testa e sentia algo parecido com ternura, como quando um pai olha a feiura de um filho e isso o enternece.
Formiga, roendo lentamente umas bem tostadas fatias de bacon – que não é mais do que uma americanice a esconder a verdade de um bom toucinho entremeado – percebia que pomba já se preparava para abrir as asas e voar um pouco por cima dela com alguma teoria bizarra. Sorriu. Ela que abrisse as asas, sempre precisavam de mais sombra agora que era quase meio dia.
Na hora da despedida, num tom quase nostálgico de quem tem pena que uma coisa boa acabe, Pomba diz:
– Para a semana à mesma hora, certo?
– Claro – diz Formiga – Como poderia perder o momento mais importante da semana?
– Tão querida, Adelaide! Também eu anseio pela chegada do fim de semana só para podermos voltar a ver-nos.
– Conta-me depois, quando tudo se resolver lá no teu emprego.
– Claro que sim. E tu não desates a comprar carro novo sem falares comigo.
– Era lá capaz disso, Graciete!
Moral da história:
Não avalie uma amizade de estômago vazio.
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