Esta é a história real – uma vez que inclui títulos reais, verdadeiros, segundo garantem escritos antigos sobre o tema – de uma princesa e da forma extraordinária como quase conheceu o seu homem encantado, também ele príncipe, ou conde, para dar mais credibilidade a tudo isto, que as palavras no papel ganham um poder mais assertivo do que o mero blá, blá, blá da oralidade. Além disso, a realidade é sempre mais incompreensível e bizarra do que a ficção, e tem, ao contrário desta, uma enorme vantagem: não tem de parecer verdade, na medida em que já o é.
Tudo teve lugar, como é da praxe, num reino muito, muito distante, que bastante quilometragem de permeio dá ao leitor a vaga certeza de uma certa probabilidade, pois sabemos como são estranhos os estrangeiros. Nesse lugar distante do nosso olhar, mas não dos nossos ouvidos, vivia uma princesa, com o seu vaporoso guarda-roupa – todo ele em tons pastel, profícuo em brocado de seda e rico em renda guipure – e a sua tiara de diamantes e outras exóticas pedrarias. Era bela e formosa, pois que não há memória visual, nem relatos escritos que alguma vez tivessem dado conta de princesas horrendas, cheias de acne juvenil e embirrações próprias da adolescência, menos ainda que fossem obesas e tivessem cabelo oleoso.
Esta criatura de outra dimensão humana e pele imaculada gostava de cirandar pela propriedade real, cantarolando com melros e popas, dançando com veados e alces e ouvindo desabafos de ursos e outras feras, as quais, perto de si, adocicavam os seus ímpetos selvagens. Viviam em pleno a harmoniosa união simbiótica entre espécies e entre estas e o meio ambiente, tal e qual como numa fábula, mas passada na vida real. O psicólogo deste reino temeu, inicialmente, que fosse o despontar de alguma parafilia ainda pouco estudada ou mesmo o berço de manifestações de bestialidade, mas acabou por concluir, no seu relatório médico, que a jovem era apenas imberbe e meio tola e que mais valia ‘perder-se’ um pouco na floresta do que na droga. Os reis concordaram com o parecer médico e respiraram de alívio, já que tinham recorrido a inseminação artificial e como a semente do rei não era a mais aprimorada, acabaram por comprar um frasquinho de produto inseminador numa promoção online que, receavam agora, lhes viesse a sair cara. Uma rapariga tola pode ser um caso complexo e gravíssimo, mas, por oposição, uma princesa tola é até uma bênção dos deuses, na medida em que nada se espera dela a não ser que exista o tempo suficiente para dar um filho herdeiro e mais um ou dois suplentes, na eventualidade de alguma desgraça não prevista. Nesta base de entendimento simplória, mas muito cómoda, lá vivia a pequena, com os seus delírios florestais e muitas horas de mata.
Um dia, porém, e ele há sempre um dia, porém, a garota deixa cair o tablet num dos lagos da propriedade e fica, simplesmente, pa-ra mo-rrer! Quase, quase quando o seu indicador atingia o botão de publicar um dos seus posts diários sobre a Microflora Transgénica na Subcopa dos Fungos dos Filos Basidiomycota e Ascomycota do pequeno Reino Fungi, um horrendo sapo emerge das águas do lago e emite um descomunal arroto. Com a surpresa do inesperado, o susto provocado pelo sinistro som e o aspeto repugnante do bicho, claro que alguma coisa tinha de correr mal. Por sorte, apenas o aparelho eletrónico submergiu e não toda ela, que nesse dia, indo um pouco ao arrepio da sua paixão por vestidos, usava um fato de saia e casaco de delicado xantungue, o qual, uma vez mergulhado naquele lodaçal não teria salvação.
– Idiota, fizeste-me perder toda uma elaborada ideia que estava prestes a publicar. Bicho medonho e sarnento, não podias ter ido bolsar-te para o outro lado do lago?
Era tal a exaltação da jovem mulher – compreensível para quem está a par de que é uma influencer no nicho informativo que se dedica aos cogumelos e outros fungos –, que a princesa continuou a barafustar e a responder ao sapo, sem dar conta desse dado extraordinário: aquele sapo falava. Mas estava desvairada e nem que ele soubesse tocar berimbau e o céu em simultâneo ela teria dado conta ou importância.
– Quero uma reparação e quero-a agora. Imediatamente. Quero que procures e en-con-tres o meu tablet e ai de ti que o post se tenha perdido. Mais de um milhão de seguidores aguarda a conclusão de uma das minhas investigações. Sabes o que isso representa?
– Sem stress, princess! Sem stress, princess! Sem stress, princess!… – Repetia num ensurdecedor loop o irritante sapo, enquanto enrolava um cigarro daqueles muito estreitos de um lado e mais largos do outro, lambendo no final, com aquela língua grossa e asquerosa, a longa mortalha.
– Se a princesa não viesse para aqui beneficiar do meu wifi, para sacrifício dos meus dados mensais, talvez eu estivesse lá em baixo, bem tranquilo, no meu banho de lama medicinal, agarrado às minhas aplicações, sim, que eu sou muito aplicado.
– Não ouviste o que te disse? Vai imediata e celeremente buscar o meu tablet.
– Só se me deres um beijo apaixonado na boca.
– O que seria!? Beijar um medonho sapo, de pele viscosa e com essa língua nojenta…
O mero proferimento de tal relato de traços fisionómicos revelou-se demasiado para a esbelta princesa, que foi acometida de um longo e produtivo vómito, o qual projetou para as águas do lago, salpicando o já descrito cigarro do rugoso anfíbio.
– Ó menina, e agora, quem paga o prejuízo? Tens noção do que custa a um sapo, ainda que da seleta família Bufonidae digna portadora da ordem Anura, encontrar bom produto? E o que custa fazer e manter seco um cigarro não obstante o meu sedutor tato viscoso?
Entre a repulsa física e visceral e a incredulidade perante tamanha ousadia, a princesa não voltaria a precisar de dieta nos próximos dois anos, já que praticamente se desidratara até ao tutano com tanta má disposição gástrica. Sem demonstrações de grande interesse, mas de olhos bem arregalados para a cintura de vespa da pequena, o sapo lá ia sugando o cigarro para que este não se apagasse, o que o deixou todo insuflado, tendo quase duplicado de tamanho. Lembrando-se do seu primo daquela outra fábula idiota, que rebentou porque teimou que queria ser boi, o batráquio foi espaçando as passas que dava e também isso colocou na fatura.
– A delicada princesinha vai desculpar-me – ou não, faça como melhor lhe aprouver –, mas além da mortalha e do produto, ainda lhe exijo reparações pelos danos físicos e mentais. Para evitar contas desmesuradas e prestações e outras dores de cabeça financeiras, além do beijo na boca alimentado a paixão, ainda vou querer fazer skin therapy consigo. Uma hora, todos nus, na minha banheira de lama.
O sapo sentia-se em nítida vantagem e ia debitando em tom de insolência as suas fantasias, enquanto continuava a aspirar o fumo do cigarro, o que tornava a sua voz ainda mais horrível.
Doida por tratamentos de pele, ao ouvir a deliciosa união entre skin e therapy, a princesa quase, quase vacilou num resquício de nanossegundo que mediou um vómito e outro. Finalmente, já sem nada para botar para fora, a miúda retoma o desassossego inicial.
– Não voltes com a conversa do tablet se não estás disposta a negociar. Vou buscá-lo logo que concordes com as minhas exigências: beijo lânguido na boca e sessão de spa privado. E não desdenhes. Olha que ainda podes ter uma agradável surpresa e eu ser o amor da tua vida ou, melhor ainda, o melhor amante que alguma vez terás.
A repulsa já se misturava com o ódio e não fora a mente um pouco perturbada com as benesses medicinais do dito cigarro e talvez o sapo previsse o que se seguiu. De olhos semicerrados, a aproveitar a sua cena, agora que começava a bater, o sapo deixa de ver a princesa. Abre mais os olhos. Por fim, esbugalha-os. Tenta, muito calma e lentamente, rodar a cabeça para ver em seu redor. Nem sombra dela. Só podia ter sido um episódio alucinogénio, afinal, desde quando um sapo compreende uma princesa? E logo ele, que sempre se conhecera como sendo um sapo de pouca paciência para gente mimada. Se bem que, cogitava meio divertido, poderia ter sido o princípio de uma bela amizade fundamentada numa certa bestialidade, mas desde que consentido, todo o sexo é lindo, argumentava de si para si.
– Pois é.
A voz vinha de perto e sinalizava de forma inequívoca que não estava só como imaginara. Era uma raposa, ruiva, linda!
– Mas olha que a miúda é muita conversa, muita fábula, muita teoria, mas depois, é só fogo de vista. Tu não percas o teu tempo.
– Ó diabo. Mas, então, agora estou na dúvida, era a miúda que era irreal ou és agora tu, bela raposa, quem não existe?
– Não existimos? Como assim? Levaste alguma pedrada?
A raposa passou do confidente ao desconfiado em menos de nada.
– Pode dizer-se que sim! Ahahahah…
O sapo tinha entrado em modo descontrolado e a raposa seguiu caminho.
Nisto, de entre as águas, emerge um monstro lamacento, uma criatura medonha e gigantesca. Na mão, um tablet que ainda se podia ver, pelo menos por fora, todo ele luzidio e não sei quantos G…
– Olha, foste buscar o ponto G da miúda. Ahahahahahah
O sapo estava perdido, mas não tanto que não começasse a perceber que o monstro era a aventureira princesa, que preferira as águas meio contaminadas do lago a dar-lhe um beijo.
– Vá-se lá entender princesas. O que é que te custa!? Dá-me lá o beijo –, insistia já quase sem força ou voz, de tanto rir e de outro tanto a tentar parar de o fazer.
Não teve tempo de pensar o que quer que fosse depois disso. Apenas percebeu que algo prateado voava na direção da sua cabeça. Talvez se conseguisse desviar-se, mas isso iria requerer que se virasse, que se movesse e isso não conseguiria. Talvez se tentasse amortecer o impacto com a sua forte língua… Mas, uma vez mais, isso exigia atividade física e ele sentia-se de pedra. Percebeu que o objeto estava cada vez mais perto. Era um tablet. Por sorte, isso ainda percebeu, tinha os vértices curvos…
No dia seguinte, lembrava-se deste macabro sonho, ou teria sido realidade? Claro que não podia ser realidade. Fosse como fosse, aquilo dava um conto fantástico pensou, para os miúdos mais desprevenidos. Podia até inventar que sempre tinha havido beijo. Tinha de pôr tudo aquilo por escrito antes que a sua racionalidade o impedisse, em nome de não se expor ao ridículo ou algo mais. Talvez tivesse de limar umas arestas à história, reformular as personagens… Não podia arriscar um possível internamento, quando já todos olhavam para a sua pessoa como se fosse um extraterrestre. Além disso, quem acreditaria em tão extraordinária história? Era sabido que há mais de 200 anos que não se avistavam princesas por aquelas paragens.
O sapo volta-se, preparava-se para mergulhar na sua vidinha quando avista um tablet. Sobressalta-se. Não era o seu!
O filme deu brado, mas o livro vendeu como há muito não se via. O sapo saiu do lago e mudou-se para a sua própria poça de lama permanente, alimentada artificialmente à conta da sua conta, bancária claro. Dizem ainda que abriu um portal de sucesso a que deu o seu nome, o qual abre as portas a outras dimensões. Da princesa rezam lendas e aquele pedaço de tecnologia, que o sapo mandou carinhosamente emoldurar.
Moral da história:
Há sempre outro ponto de vista, nem que seja de aspeto esbugalhado.
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