Esta é a história, abreviada e fantasiada, de Itália. Não do país, está bom de ver, que isso daria uma inglória trabalheira, com tanta Lombardia que nos daria Toscana pela Umbria, ou pela barba, e isto sem entrar na Sicília, de onde poderíamos não voltar vivos. Salvar-nos-ia a bela e elegante Sardenha, mas mesmo assim, não foi por aí. Itália, assim batizada mais por pirraça da mãe – apostada em chocar a sogra – do que por um qualquer insano amor pelo país ou pelo nome, viu fixar-se nessa matriz todo o desenrolar da sua vida. Um simples ‘porque não?’ serviria de bizarro lema a cada decisão que tomava. Era até mais do que isso. Era a necessidade de fazer precisamente o contrário do que poderia achar, de caras, correto, se pensasse, um segundo que fosse, na melhor decisão, ou na possibilidade de acerto. Algumas vezes, esse enervante e já viciante oponente, coincidia com o caminho das facilidades, o que a fazia acreditar que era uma boa bitola, assim como o jogador que acredita que, por acertar 10% das vezes, é bafejado pela sorte, sem dar crédito às exatidões estatísticas da muito correta matemática. A maioria das vezes, porém, apresentava-lhe sempre desafios complexos, nos quais acabava por se enredar sem vislumbre de lógica ou sequer de desejo próprio. Era uma espécie de personalidade autofágica ou com lúpus, na medida exata em que tudo aquilo que fazia parecia contrariar e matar aquele outro tanto que realmente desejava ou lhe era agradável ou até saudável. Se porventura a sua decisão colidia não apenas com o seu íntimo, mas também com a visão de terceiros ou meros segundos, então, era certo e sabido que menos ainda hesitaria em avançar para o erro.
O mais fascinante em Itália, a mulher, não o país – nunca é demais lembrá-lo – é que mesmo no turbilhão de contrariedades que a movia, era uma bela e bem resolvida mulher. Não obstante a estranheza das suas resoluções, tinha força e energia para fazer frente, e ainda para dar as costas, a todas as contrariedades. Uma espécie de fuga para a frente, mas sem que o perigo corresse atrás dela. A fuga pela fuga. O não pelo não! Era uma criatura extravagante e extrovertida, muito obviamente vocacionada para as artes performativas, razão clara pela qual optou, de forma habitualmente obtusa, pelo curso de Matemática Aplicada, que jamais aplicaria no que quer que fosse, menos ainda na matemática. De resto, não concluiria o curso, mesmo tendo acabado por se destacar com algumas teorias insólitas e despertado o interesse do departamento, o que, precisamente, despertou nela aquela vontade irremediável de partir noutra direção: um curso de cabeleireiro, após ter constatado que não tinha o menor jeito para se arranjar, ao contrário da maioria das raparigas da faculdade. Acabou, sem qualquer esforço aparente, por acabar nos desfiles de moda enquanto hair stylist. Primeiro, nos nacionais e, sem muita demora, nos das principais capitais do universo fashionista. Aborreceu-se, claro. Aquilo eram facilidades a mais. Manequins giros à disposição, festas feéricas e gente gira, droga à discrição, viagens, hotéis maravilhosos, um salário incrível… Demasiadas facilidades e maravilhas para o seu temperamento masoquista. Era tempo de partir. Lá foi Itália para a América. América, não o país, mas uma cantina de má fama, ali para os lados de um sítio qualquer, onde decidiu trabalhar como empregada de mesa. Tinha conhecimento zero sobre o mundo da culinária, pelo que achou ser o mais desacertado e ela era perita em desacertos. Mas isso era no que Itália estava disposta a acreditar. Todavia, num dia de desespero, em que o cozinheiro esteve dois dias fora por conta de uma autoinfligida intoxicação alimentar, por conta de umas ostras que teimou em reaproveitar para não desequilibrar as finanças do restaurante, Itália pôs-se literalmente à prova em frente ao fogão. Inventou e, como sempre, das tripas fez coração, pois que as à moda do Porto estavam já demasiado batidas. Um estrondoso sucesso. Triplicou a clientela num piscar de olhos e viu-se elevada à qualidade de nova chef do momento.
Itália desesperava com as facilidades na medida exata em que nos outros, todos eles, nascia um desprezo e inveja de morte daquele seu toque de Midas. Não entendiam que, quando nada se sabe sobre um assunto, tem-se uma liberdade incomensurável, já que não se teme errar, nem se espera acertar. Só assim se alcança a grandeza. Demasiadas contas de resto zero e cálculos exasperantes culminam na normalidade, no espectável. O seu arroz não era malandrinho, era todo ele gingão. Nas suas mãos não havia paladares que se opusessem, tudo era permitido e bem-vindo. Os seus penteados eram esculturas de cabelo, antenas diabólicas, criações inauditas. A Matemática uma louca dança de números e possibilidades.
Nesta sua lógica de vida, dos homens esperava apenas o puro prazer, mas raras vezes era puro e menos vezes ainda era prazer. Nada havia de errado com a sua orientação sexual, quando se entregava na cama de mulheres acontecia o mesmo, apenas os outros não acertavam o passo com o seu desconcerto afetivo. O pior de tudo é que, nem o sexo era maioritariamente de qualidade como ainda acontecia que se apaixonavam demasiadas vezes por si. Ao primeiro ramo de rosas ou I love you num fim de mensagem e já Itália abria as suas fronteiras a novos foragidos. Foi facílimo passar a imagem de rainha do gelo, de mulher insensível, de louca louva-a-deus. De Itália diziam ter o coração de pedra, de ser mais insensível do que o frio mármore, de matar os machos após o coito. Isto porque as pessoas apenas têm de rotular, de criar imagens dos outros que possam encaixar nas suas palavras e predefinições. Quando não encaixam, não se dão ao trabalho de refazer a imagem do puzzle, limitam-se a limar a peça desajustada até terem nomes, cores e padrões para ela. Em menos de nada, Itália era uma cabra. Já nem país, nem mulher. Apenas uma cabra. Claro que adorava cabras e pensou mesmo em dedicar-se à pecuária, mas não concebia um mundo em que ela acompanhasse todos os ciclos da vida de um ser que pudesse vir a acarinhar. Poderia ser doloroso e já lhe bastavam as dores físicas, as quais, é bom de perceber, não combatia com drogas, por serem um caminho demasiado fácil, que toda ela contrariava de forma compulsiva. Felizmente, era saudável e pouco dada a maleitas, isto se excluirmos esta sua rara forma de lúpus que a fazia contrariar a sua natureza a todo o instante, que lhe devorava as defesas, deixando que se atacasse a si própria. Ou, dirão os mais dados à Filosofia, que essa era precisamente a sua natureza? Que contrariar-se era a sua forma de estar? Seriam absolutamente necessários os antirretrovirais e as cortisonas? Havia quem avançasse com teorias outras, um pouco mais exotéricas e existencialistas, em que o destino era o grande escritor e encenador da obra humana, na sua individualidade e no coletivo. Não entremos, sequer, pela teologia, que a fé é apenas para os devotos e mesmo entre estes há dúvidas a esclarecer. Enfim, opiniões não faltavam, menos ainda má-língua e incompreensão.
Vivia precisamente um desses momentos de in between, sem emprego e sem companheiro sexual quando ocorreu a Itália algo em que jamais havia pensado. Um pensamento que a colocou ao nível de qualquer Deus existente ou fabricado. Era imbatível. Invencível. Praticamente eterna, no sentido em que tudo aquilo que decidia fazer, sendo exatamente o oposto do que muitas vezes lhe ocorria ou até apetecia fazer, se revelavam na coisa mais acertada, já que nelas encontrava sortilégios que, de outra forma, jamais conheceria, alegrias que jamais experimentaria. Melhor do que ser Deus, considerou lógica a hipótese de que era uma bruxa, o que está bastante acima de Deus, já que é permitido às bruxas uma existência terrena, plena de luxúria e não apenas no plano metafísico. No fundo, o que é uma bruxa? É alguém que consegue tudo aquilo que quer. Ora, não era certo que mesmo por meios enviesados e trilhos tortuosos, não era precisamente isso que alcançava no final? Mesmo sendo fugaz a plenitude final, já que logo ansiava por nova provação, não chegava sempre inteira, mais livre e conhecedora às inóspitas e distantes metas que a si mesma impunha? Não precisava de respostas. Decidiu que seria uma bruxa, facto de imprimiu sob a sua assinatura em todos os cartões e mensagens digitais e que figurou, inclusive, durante o tempo necessário, no seu curriculum. Pois choveram pedidos, vindos de todo o planeta, para consulta privadas, mezinhas e curas milagrosas. Houve cegos que passaram a ver e surdos que passaram a escutar. Um inferno, que a tornou ainda mais rica e desesperada para fugir de si mesma.
Percebeu, muito pouco depois, que também isso era saturante, já que lhe era fácil, quase natural, ser má e bastante mais prático do que agir sempre de forma empática em relação aos demais. Andava no meio de todas estas considerações, limpezas e mudanças interiores quando sentiu algo estranho no peito. Um ataque cardíaco, seguramente. Seria o fim já que não era dada a aspirinas ou outros comprimidos. O que quer que fosse não se realizava, pois que continuava viva e a respirar sem dificuldades de maior e sem dores alarmantes. Mas o que quer que fosse crescia desalmadamente. Um dia, percebeu tudo. Estava apaixonada. Apaixonada por si, pela vida, pelos outros em geral e pelo seu vizinho casado do rés-do-chão frente em particular. Ora aí estava todo um complexo caso que em tudo a contrariava e que mereceria toda a sua atenção e empenho. O mais difícil de todos os trilhos até então calcorreados.
Era preciso usar de bruxaria para conquistar o vizinho do rés-do-chão frente, e precisaria de bastantes cálculos matemáticos para afastar a mulher dele do caminho. Necessitava ainda de toda a sua expertise de coiffeur para tratar da sua imagem e captar a atenção do fulano e, por fim, seduzi-lo. Lembrou-se ainda daquela parvoíce de que o povo fala, e que preconiza que os homens se conquistam pelo estômago, pois também aí tinha uma palavra, para não dizer todo um tratado, a dizer. Tinha tudo a seu favor, inclusive o facto da mulher do vizinho do rés-do-chão esquerdo estar grávida, ou seja, em teoria pouco avançada, estaria igualmente mais recetiva a enjoos do que a sexo. Chegada a esta parte, a do sexo, pensou que poderia não saber tudo o que havia para saber, razão pela qual se inscreveu num breve curso online de prostituição. Em menos de nada, dirigia uma rede de meninas do melhor que há e com quem aprendeu aquilo que aqui não se reproduzirá. A certo ponto, achou que estava no ponto e avançou com o difícil plano de retirar o tipo do ninho.
Ouvimos, depois, dizer que sim, que conquistou o vizinho do rés-do-chão frente. Que ele saiu de casa. Que foi constrangedora a mudança para cinco andares acima. Que Itália se cansou rapidamente do coitado e que acabou por entregá-lo, quase inteiro e sem mossa, na sua antiga morada, por ainda não se terem cumprido os dois anos de garantia assegurados por lei. Que Itália é agora astronauta, imagine-se a irónica coincidência, em Itália, onde é convidada de honra no Vaticano, onde corta o cabelo ao Santo Padre, também por lá cozinha para o Ronaldo e recebeu o título de Rainha dos Duros. Foi por lá que percebeu ainda o quanto o seu nome era adequado, tanto ela como o país eram doidos por… botas. Uma afinidade tão singela, mas com tanto significado, afinal, é com os pés que se ‘caminha’ e esse era outro ponto em comum, já que adorava boas camas. No final, congeminava Itália, tudo se interliga, neste mundo que não é mais do que uma ervilha e esse era um ponto em comum com outra princesa da vida. Parecia-lhe que estava a deixar de ser tão tóxica.
Mas esta é apenas a história de Itália, dificilmente a verdade sobre ela.
Moral da História
A verdade nem sempre é interessante e o interesse raramente está na verdade.
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