A viver no campo, numa zona isolada e deserta, foi com um misto de curiosidade e animosidade que Raposa viu chegar uma nova moradora àquelas paragens alérgicas a urbanidades. Tinha sido a primeira a eleger aquela área de gigantesco nada, apenas campo, vinhedos e alguns montados, para propositadamente se isolar do mundo, em particular dos humanos, gente sempre muito intratável e irritante, pelo que não via com bons olhos a vinda de vizinhança, e ainda que também a recém-chegada procurasse o mesmo, autoimunizar-se, o facto de não se incomodar com a presença prévia de um morador já dizia muito sobre si. Raposa odiou imediatamente a outra. Além de um certo desrespeito, por se mudar para junto de alguém que, obviamente, procurava solidão, com a qual ela iria acabar, revelava ainda ser alguém parvo, para não ir mais longe. Caso procurasse, também ela, estar só e distante de tudo, então, não estava a alcançar o seu propósito, pois já existia gente por aquelas paragens. Se eventualmente não se incomodava com a presença de pessoas, nesse caso, porque iria viver em tão inóspita morada? Tudo ficava longe e por longe entenda-se ter de andar quilómetros de carro para chegar ao café, farmácia ou supermercado mais próximos. A bicicleta era uma possibilidade, mas poeirentos caminhos de terra batida, cães de rua que ladravam à sua passagem, uma perigosa e estreita estrada nacional como único acesso à pseudocivilização circundante e amplitudes térmicas que por ali oscilavam entre os 40º e os -40º, sem paragens intermédias no termómetro, não viabilizavam esse tipo de eco-locomoção, tão do agrado de ecologistas, ambientalistas e outros emergentes defensores do planeta e da sustentabilidade.
Fosse quem fosse, não seria boa gente, concluiu determinantemente Raposa logo que viu passar o primeiro camião de mudanças. Sentia-se capaz de atacar um galinheiro, se por ali os houvesse, apenas para libertar toda a raiva que a invadia. A outra só podia ser uma grande vadia. Devia dirigir um qualquer antro de venda de sexo e sabe-se lá que mais, por isso lhe agradava a falta de vizinhança. Não era uma solitária pura, pois os verdadeiros eremitas, adeptos da meditação e da silenciosa contemplação – entre os quais genuinamente se incluía, ainda que não meditasse –, procuram locais inabitados, com zero habitantes registados nos Censos. Sentia-se violada, ameaçada. Invadirem assim o seu espaço, o seu território, erguendo uma casa com uma arquitetura medonha – e bonita que fosse –, aquilo era por demais! Já a desprezava.
Passou as primeiras semanas a tentar ver que tipo de mobiliário era descarregado para dentro de casa da ‘outra’ – assim lhe chamava, com toda a propriedade, pois que só havia duas almas por aquelas bandas, ela própria e, agora, a outra. Uns pequenos binóculos que usava sempre que ia à ópera, não se revelaram suficientes, pelo que teve de recorrer aos grandes, com zoom 15×50, com os quais se entretinha a descobrir a fauna local, incluindo aves de rapina. Em boa hora os tinha comprado, já que pelas suas lentes foi capaz até de perceber a marca das etiquetas da roupa da outra, sempre que não entravam em caixas e mais caixas. Foi forçada a reconhecer que não deveria ser uma qualquer bimba, que tinha um certo bom gosto e que, inclusive, reconhecera no espólio que deu entrada na moradia algumas boas peças de mobiliário e uma coleção de quadros muito decente. Isso em nada a animava, já que a decoração de interiores da outra não minimizada, menos ainda neutralizava o dano maior da sua mudança: o facto de existir e de estar ali. Tanto mato por perto e tinha de ficar ali, mesmo ao seu lado. Cerca com cerca.
Tomando as suas dores, os cães de Raposa, todos eles uns belos Rafeiros do Alentejo de porte gigante, não tardaram a odiar de morte os bibelots de colo, com pelos apanhados com laços e uma variedade infinita de guarda-roupa para todas as estações do ano, com que a outra se pavoneava pelo jardim. Descobriu até uma pequena piscina para os mini canídeos. Que pessegada! Era, sem dúvida, a dona do Bataclan. A Madame do prostíbulo. Estava agora mais do que certa a sua primeira intuição: A Maria Machadão de Jorge Amado tinha-se mudado para a quinta ao lado da sua. Não tardaria a romaria de carros, cuja passagem encheria de pó as paredes da sua casa, recém-pintada e cobriria de alergia o seu jardim, tão mimosamente plantado. À outra não faltava dinheiro, que fez nascer o seu próprio jardim em meia dúzia de dias, graças a quilómetros de tapetes de relva, centenas de plantas prontas a ir para a terra, árvores que já projetavam invejáveis sombras, e mão de obra ao desbarato para garantir que tudo sobrevivia, germinava e se adaptava. Depois de tudo terminado, o que demorou menos de nada, e dir-se-ia que teria sido a outra a primeira habitante daquele ex-pedaço de paraíso. Se o plano daquela doninha desavergonhada era passar por primeiríssima habitante daquele seu bocado de campo, ia ter já o que merecia. Raposa mandou fazer, com prazo de urgência, uma enorme placa de latão com a inscrição: Quinta Primeira – o que não deixava de ser um curioso contrassenso vocabular –, sob o qual ainda colocou o ano em que se tinha mudado, orgulhosamente só, para aquele local, uma data com raízes no século passado. Se houvesse dúvidas sobre pioneirismo, elas ficavam esclarecidas logo ali, à sua entrada.
Andava precisamente atarefada a manter brilhante e polida a peça que agora dava nome e idade à sua quinta, quando foi abordada, pela primeira vez, pela sirigaita, com um dos seus cães de bolso no colo, e toda vestida de seda bordada à mão. Uma espécie de quimono sem mangas, que muito irritou Raposa, por ser realmente belo e delicado. Dava à outra um refinamento alado, tornando-a num ser etéreo, flutuante, quase ave rara, no meio da rusticidade da paisagem e bem contrastante com os irremediáveis fatos de treino de Raposa. Uma das vantagens de viver isolada no campo era, precisamente, a permissividade de um guarda-roupa prático, que não causa preocupação ou cuidados de maior. Assim não pensaria a outra, pois claro, haveria clientela a chegar todas as noites, seguramente, pelo que tinha de estar sempre no seu melhor, para atrair e agradar a um público que, pagando, exigia bom trato e sofisticados requintes, os mesmos que Raposa fazia questão de não ter. Queria apresentar-se, deixar os seus contactos para qualquer eventualidade, ou apenas para conversarem, sempre que Raposa estivesse disponível. Já que viviam tão isoladas, seria boa ideia que se conhecessem melhor. Disse que se chamava Cegonha e que as portas da sua nova casa estariam sempre abertas. Não querendo passar por rústica e mal-educada, Raposa fez questão de estar à altura de toda aquela cordialidade, além de que não podia negar um certo fascínio e curiosidade provinciana acerca da vizinha, os quais poderia satisfazer de perto, sem necessidade de binóculos e outros artifícios, pelo que a convidou logo ali para jantar. Nada de cerimónias, foi avisando, “nem sequer sou exímia na cozinha”, alertou, para não desiludir. A outra, agora já com nome próprio, Cegonha, pareceu genuinamente feliz e Raposa lá se apressou a ir tratar do repasto. Para impor desde logo o seu estilo, e mostrar orgulho na sua simplicidade, avançou com uma entrada de chouriço assado na hora em assadeira de barro, acompanhado de vinho da cooperativa local – que também já lhe tinha valido como desinfetante em dia de poda de roseiras –, um bom prato de pipis e moelas, que o preparado e o molho são iguais, e um bom melão da sua horta para sobremesa.
À hora marcada, com uma suave maquilhagem e um encantador vestido rodado até aos pés de largo bordado inglês e costas destapadas, Cegonha apresentou-se como uma aparição angelical à porta de Raposa. Esta, ainda de avental, aceitou os mimos que a outra trazia: uma pequena lata de caviar, uma taça de tostas e uma garrafa de bom vinho, com um selo lacrado, dando conta de um prémio mundial, tudo harmoniosamente acondicionado num elegante cesto. Snob, pensou a anfitriã. Caviar é tão last season, para não dizer pretensioso, pensou por cima. Quanto ao vinho era bem-vindo, rematou o seu pensamento crítico. Percebendo que ainda estava de avental, apressou-se a retirá-lo e encaminharam-se para a sala de jantar, onde tinha uma agradável mesa em modo campestre. Cegonha adorou, ou fingiu bem. O pior foi a ementa. Intolerante à lactose, ao glúten, à gordura, vegetariana, diabética, vítima de refluxo gástrico, detentora de níveis de colesterol capazes de vencer qualquer campeonato do mundo ou apenas esquisita, enojadinha e adoentada – assim o entendeu Raposa –, Cegonha foi incapaz de comer o que quer que fosse de todas aquelas gordurinhas apetitosas que Raposa tinha, com tanto esmero, preparado. Só o cheiro a fritos que banhava a casa fez com que o delicado aparelho digestivo de Cegonha a empurrasse para a casa de banho umas nove vezes, ou mais, que Raposa, às tantas, deixou de contar. Sem saber muito bem o que pensar de tudo aquilo, Raposa estava prestes a odiar a convidada, mas esta, apesar do mal-estar, até era uma companhia agradável. Tudo queria saber com entusiasmo, tudo entendia e aceitava com naturalidade e, depois de reconfortar o estômago com uma boa camada de tostas e de caviar que ela própria trouxera, até se revelou uma boa companheira de copos. Além do requintado néctar de Cegonha, mandaram ainda abaixo mais três de ‘carrascão’, o que muito encantou a outra. Era, ao que parece, pintora, numa fase conturbada da vida, após o fim de uma ‘ralação’ amorosa que a enfiou numa espécie de espiral depressiva, daí a mudança radical de vida.
Boa ouvinte e mulher de enormes delicadezas, acabou por deixar em Raposa uma impressão que não era assim tão má. Cegonha, por seu lado, ficou encantada com a diarreia mental de Raposa, cujos pensamentos, mesmo os mais inconvenientes, eram despejados por um fluxo constante, sem passagem por qualquer filtro, como acontece aos autoclismos avariados. Aquilo era refrescante para a citadina Cegonha, nascida e criada em círculos perfumados a hipocrisia. No final do serão, já não faltava muito para o nascer do sol, lá ficou marcado novo jantar, desta feita na casa de Cegonha. Deram um dia de intervalo, para recuperarem dos excessos licorosos e despediram-se em silêncio e aos tropeços.
Depois de dormir quase 24 horas seguidas, raposa sentia que saía diretamente do seu jantar para o jantar da outra, mas até lhe sabia bem não ter de cozinhar. Já estava a sair, quando se lembrou que seria igualmente de bom tom levar qualquer coisa à vizinha. Já tinha a chave de casa no bolso e sentia enorme preguiça de voltar a entrar. Franziu o nariz e, perdendo o olhar em redor, teve a genial ideia de lhe levar um ramo de flores silvestres. Em boa hora o pensou. A outra adorou a singeleza do gesto, o aroma das flores e a beleza das mesmas, as quais desenhou na hora numa pequena tela em branco que tinha acabado de colocar no cavalete, numa espécie de estufa situada em pleno jardim, que muito seduziu Raposa. Devia mandar fazer uma coisa destas para guardar toda a tralha que se vai acumulando lá por casa, pensou. Provavelmente também o disso, já que era um pouco incontinente de raciocínio, e cegonha parecia rir de algo que tinha acabado de acontecer. Adiante.
Foi no atelier de Cegonha que lhes foram servidos os cocktails – sim, Cegonha tinha empregados e isso causou grande impacto na forma como Raposa passou a ver a privilegiada vizinha, mulher que ganhava o suficiente para pagar mimos de gente exterior, e isso era um luxo e um claro sinal de sucesso aos olhos de Raposa. Daí passaram para uma ampla sala de refeições cuja elegância da decoração, as paredes de vidro, a harmonia resultante de peças discordantes em estilo e materiais deslumbrou sobremaneira a convidada. Vichyssoise, “o clássico francês das sopas frias”, como lhe foi apresentado, e uma profusão de pratos com nomes ainda mais absurdos e impronunciáveis sucedeu-se a um ritmo calculado, como se alguém soubesse exatamente quando deveria trazer o seguinte. Alguém deveria saber mesmo, que aquilo tinha pontualidade, acreditou Raposa. Infelizmente, tudo era uma ervilha singular no meio de um vazio de coisas. No final de tanto ar decorado, Raposa tinha a cabeça à roda de tanta fome e o estômago deveras revoltado com tudo aquilo. Experimentou mesmo uns momentos de angústia gástrica, mas nada que os bons vinhos de Cegonha não conseguissem fazer esquecer. De tal forma que se esqueceu até de regressar a casa. Queixou-se, na manhã seguinte, da fome que tinha passado e, ao dizê-lo, percebeu que pela mesma experiência teria passado a desgraçada perante as adoráveis gorduras com que a presenteou. Decidiram, então, que nos próximos jantares cada uma comeria em casa aquilo de que mais gostasse e que se encontrariam apenas para partilhar o vinho. Dizem que funciona até hoje.
Moral da história:
As histórias acabam como muito bem entendermos.
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