Lá vinha ela. Conhecia-a tão bem que julgava já saber ao que ela vinha, consoante a sua forma de andar. Hoje vinha pedinchar. Tão transparente. Tão previsível. Ele tinha assumido uma personagem da qual, agora, particularmente agora e por maioria de razões, não lhe apetecia despir. Sempre enfrentara e sobrevivera às investidas matreiras dela recorrendo à única arma à disposição dos educados e humildes: a falsa ingenuidade, ou, dito de outra forma, fazendo-se de parvo. Assim, sabia bem que, para ela, não passava de um tolo, um pobre coitado sem grande inteligência para ver o óbvio, alguém que, por mais abusiva, descarada, ingrata ou chula atitude que ela tivesse, estaria sempre lá, julgando ver coisas boas na chulice dela. Na sua soberba, ela nunca ousou colocar a hipótese de ele ver, de ele saber, de ele apenas ter pena dela. De ele, afinal, ter ainda mais soberba – entendia, mas fingia não entender – e que se limitava a agir de forma disfarçadamente paternalista, para não a magoar, para ela jamais suspeitar de que ele se condoía com a falta de caráter que ela revelava, perante alguém de quem se dizia amiga. Avaliando tudo isto, ele questionava-se sobre qual dos dois seria mais cínico e hipócrita. Se ela, que não perdia uma oportunidade para o explorar, se ele, que só aparentemente se deixava levar nas cantilenas dela, apenas por uma qualquer variante de vaidade, preferindo ser falsamente idolatrado e sentir-se preciso e querido do que simplesmente mandá-la dar uma volta sem bilhete de regresso. Via-a melhor do que qualquer lupa. E, sim, ela hoje vinha necessitada. Toda dengosa e bamboleante, como fazia quando a idade e o corpo tornavam isso apetitoso. Agora, apenas decadente e lamentável. Ele sabia, porém, que hoje, algumas reais necessidades se mesclavam com a sua mera natureza chupista.
Mesmo quando podia e devia ter feito pela vida, ela simplesmente preferiu que a vida, e principalmente o dinheiro, viesse a ela, sem esforço ou necessidade de grande trabalho. Para tal, sempre contou com a graça e benevolência de todos aqueles que mantinha a rodopiar no amplo diâmetro do seu vórtice. Os seus almoços, digam lá o que disserem, eram mesmo de graça. O que nem sempre tinha graça. Sempre um cartão desmagnetizado, uma carteira esquecida ou perdida, um pedido descarado – “Hoje concedo-te a honra da minha companhia se me pagares o almoço”. Outro tanto acontecia com tantas outras coisas, incluindo no emprego. Trabalhos começados que outro acabaria por concluir no seu lugar, uma baixa oportunista, uma mãe doente, um familiar a necessitar de apoio… Era hábil, é certo, mas não ao ponto de não se perceber como tudo advinha de matreirice, de preguiça e um ego desproporcional e injustificadamente insuflado. Era gira, engraçada, espirituosa, alegre e até desejável, o que levava tanto os absolutamente tolos como os astutamente espertos a não se incomodarem com gastos. Agora, porém, tudo mudara. Os tolos e menos tolos estavam casados e já sem grande paciência para os esquemas dela, o dinheiro que chegava à conta bancária era mesmo à conta e os almoços gratuitos passaram a escassear, nos outrora carnudos lábios dela desenhava-se agora o inevitável código de barras da idade, ela mostrava ossos onde deveria estar carne e carne onde deveriam ser visíveis ossos… Tudo mudara e ela não percebeu que teria de ter mudado de estratégia, ou tê-la adaptado para que tudo pudesse continuar mais ou menos na mesma. Não fosse ela tão preguiçosa e talvez o tivesse percebido e agido a tempo. Mas ela lá continuava a acionar os seus velhos mecanismos.
– Querido Zé, que alegria ver-te por aqui. Já quase não visitas aqui o nosso departamento de marketing. Já não gostas de mim? Mas que bem que tu estás e olha-me só esse blazer de caxemira. Sim, que eu reconheço bom material à distância. Nem preciso do toque para sentenciar. Deixa-me dizer-te que és encantador. E um cavalheiro. Aqui no marketing, proliferam burgessos. Gentalha. Ninguém com a tua classe e caráter. Sabes que os homens…
Ele pediu a todos os santos e equiparados que ela não repetisse a sua gasta metáfora dos têxteis, mas ninguém o acudiu.
…são como as fibras. Ou se nasce de um bom material ou nada no mundo consegue transformar poliéster em seda, ou poliamida em lã de merino. Não tem a ver com sangue, mas com educação e a tua, nota-se de longe, foi e é esmerada. Até o teu porte é distintivo, e a forma como falas pausada e delicadamente, sem atropelar os outros, sempre disponível para ouvir e, mais importante do que isso, para escutar. Um senhor. Sabes que…
Enquanto ela continuava com a sua ladainha, com frases e fórmulas que pareciam saídas de uma qualquer fábula antiga, em que uma raposa matreira, mas de intenções óbvias, tenta alcançar o queijo amanteigado que quase escorre do bico de um corvo vaidoso, recorrendo ao elogio fútil e denunciador do propósito velhaco, ele teve ainda mais pena. Um sentimento tão pungente que se sentia emocionado. Como era triste ser como ela. Tão superficial. Tão desprezível. Era quase infantil. Ele sabia ao que ela vinha. Talvez ela ainda nem soubesse, mas ele sabia bem que ela queria um jantar e companhia para poder continuar a fazer de conta que era feliz e independente, e muito moderna e sofisticada. Talvez o tivesse sido, um dia, ou dois, talvez, há muitos anos. Talvez tivesse tido esse sonho, o qual nunca soube realizar. E ter-lhe-ia sido bastante fácil. Bastaria ter investido toda a energia gasta a obter borlas e favores numa relação, no emprego, a manter relações de amizade duradouras, pois que ela era super-extrovertida e até tinha sentido de humor acutilante e nada disso lhe teria sido difícil. Simplesmente não soube dosear a coisa, nem introduziu a parcela idade nesse cálculo inicial. Ela não percebia, ou fingia não ver, que não passava de uma mulher de meia-idade solitária. Não tinha a ver com o facto de estar só, ou viver sozinha, prendia-se na triste constatação de que não tinha amor em seu redor. Não tinha sido abandonada. Tinha sido a própria a deixar-se ao abandono. Preferiu facilitismos, a compreensão de senhores mais velhos, e o seu dinheiro também, excedeu o limite do seu lençol, viveu para lá das suas posses, remediou-se depois com velhinhos e malcasados e continuava com os expedientes de sempre para as contas do quotidiano. Ganharia assim tão mal? Seria uma doença do foro psiquiátrico ou neurológico? Seria mesmo necessidade? Nesta fase também já o era, pois que pessoas benevolentes rareavam na proporção exata em que se esvaíam os seus encantos. A idade não assusta, mas a decadência é uma espécie de peste: ninguém quer estar por perto com medo de ser arrastado no contágio.
Ela continuava a desenlear uma meada de elogios que, de tão excessivos e despropositados, já o começa a embaraçar, quando ele aguardava apenas que ela lhe pedisse o queijo amanteigado que ela tanto desejava e que ele devia ter pendurado no seu bico. Sempre cedera e imaginava que o voltasse a fazer hoje também. Que acabaria por abrir a boca e deixá-la levar o que quer que fosse de que precisasse. Uma boleia? O próprio carro? Dormir um fim de semana na sua casa? Dinheiro para mais uma plástica? Já lhe tinha calhado de tudo um pouco. Tomaria ela notas? Conseguiria estar a par de todas as necessidades que inventara, ou não, a todas as pessoas com quem se cruzara ou já andaria a repetir necessidades?
Ela, com a sua pose e guarda-roupa de chefe de cabine de uma qualquer obsoleta e financeiramente impraticável companhia aérea, cujos tempos áureos ainda faziam suspirar tantos passageiros agradecidos, a quem todos ela olhava como se fossem meros passageiros de classe turística com bilhetes muito low-cost. Ela, na sua pose irrepreensível, com os seus vestidos monocromáticos de tons saturados. Ela, saída de uns novos anos 70. Ela, por quem ele, um dia, se imaginou apaixonado e com quem sonhou poder vir a casar. Ela, que se mostrava tão demais para o bico dele. Seria isso? Seria essa sombra de amor, essa gota final que sempre acaba por escorrer pela borda exterior da chávena, que o impedia de lhe dizer quão desprezível era a forma como ela se tentava sempre aproveitar dos outros, como se estes não valessem mais do que os préstimos que lhe pudessem dispensar? Seria apenas pena? Estaria ainda reconditamente apaixonado? Seria ela a tal? Não. Apenas o seu casamento não passava pela melhor fase, mas isso não lhe dava o direito de achar que ainda sentia amor por esta senhora de meia idade, já sem noção de tempo ou regras, que se lançava sem visão periférica para caçadas onde já não tinha a menor hipótese. Não sendo, por que razão pensara nisso, então? Não. Também lhe ocorria uma certa vontade de a matar, ou de, de alguma forma, se ver livre dela e provavelmente também não o faria. Deviam ser apenas coisas mirabolantes que o tédio lhe enviava por mensagem a fim de o distrair daquele supositório. Detinha-se, agora, em coisas mais prosaicas, enquanto ela continuava a pestanejar cílios e a abanar ancas à sua frente, sugerindo que se encaminhassem para a cafetaria onde estariam “mais à vontade”. Para quê, santo Deus!? Mais à vontade para a matar ou para lhe fazer a vontade? Para que lado penderia, sendo que sempre pendeu para um só lado? Questionava-se, nesse momento, mais sobre de que forma reagiria ao pedido dela, do que, especificamente, em perceber qual seria o pedido.
Sentia curiosidade sobre si. Ela tinha-o feito pensar na forma cobarde e nada frontal como sempre tinha vivido aquela relação a qual nem podia adjetivar de amizade, pois isso envolve elos e sentimentos que não aqueles que sempre estiveram envolvidos. Mais de teor pseudossexuais do seu lado e, obviamente, de interesses variados do lado dela. Ela sempre conseguira dele o pretendido, enquanto ele nem sabia onde ela vivia. Mas não devia viver muito bem, por estes dias, por contraste com as grandezas de outros tempos. Isso era fácil de avaliar, pelo pelo ratado dos seus casacos de peles perfumados com aromas de mofo e paredes húmidas. As mãos de unhas cuidadas, mas pintadas com cores de desespero diziam outro tanto. Percebeu que já estavam na copa. Percebeu também que os seus olhos fixavam com avidez não o deprimente e alambazado decote da blusa dela, por onde um milhar de rugas se organizava ao estilo de pequenos afluentes de um delta ressequido e abandonado, mas uma longa faca de serrilha. Que o peito falso dela também jamais se assemelharia a seda selvagem ou puro linho e que a faca deveria ser para cortar o pão para as torradas da tarde. Que estragos faria a lâmina no discurso dela? Interrompê-lo-ia ou teria ela capacidade para continuar a debitar oralidades vãs enquanto a faca apenas perfuraria as bolsas de silicone já quase com duas décadas que já pendiam demasiado para o ventre? Continuaria ela, já a caminho do hospital, a pedir-lhe o queijo amanteigado que só ele tinha? Por certo, ela não estava de olho no queijo, que o colesterol, a diabetes ou uma aguda intolerância à lactose – que a idade não perdoa uma raposa velha – não lho devem permitir há muito. Ela devia estar de olho em algo mais premente. Uma renda de casa, uns papéis a que ele deveria fazer vista grossa quando chegassem ao departamento financeiro, onde já era diretor… Percebeu que tinha a faca serrilhada na sua mão direita. Sentia o cabo de madeira preso com toda a sua força na sua mãe. Como ele se encaixava bem nos seus dedos cerrados. Tomou-lhe o peso. Nisto, a chefe de cabine espeta-lhe um beijo na face. Não percebia a razão, mas voltou a prestar atenção à conversa enquanto avaliava como a faca era leve.
– Então, meu querido, pareces distraído. Vais fazer-me esse enorme favor?
Moral da história:
Podendo, viaje sempre em primeira, mantenha-se longe de facas de serrilha e era ainda outra coisa, mas já me esqueci, pelo que não devia ser assim tão importante.
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