A Raposa e o Leão ou a Queda de Uma Bela Possibilidade em Três Atos

Primeiro Ato

Boaventura oscilava entre a excitação e o medo. Em bom rigor, nem era verdadeiramente excitação nem medo. Era bem mais do que apenas isso. Era euforia e pavor. Uma bipolaridade bastante explosiva para o seu sistema nervoso, já para não mencionar a sua condição cardíaca, sempre à beira de um qualquer ataque. Apenas lhe ouvia a voz e já estava naquele estado. Tinha de sair do foyer. De encontrar a rua. De apanhar ar. Estava a hiperventilar e Boaventura sabia bem tudo aquilo que se seguiria após conseguir chegar às urgências de um hospital onde seria tratado com desprezo, por mais “um dos seus ataques de pânico”, como se isso não fosse pior do que partir todos os ossos do corpo. Sabem lá a proximidade da morte de quem sofre de ansiedade extrema. Andava, mas parecia parado. A porta logo ali, mas tão, tão longe. Colocou a mão gelada na testa, desejando… não, ansiando – no teatro as palavras são de suma importância, vamos usar, portanto, as mais corretas e adequadas a cada situação, e esta era de alerta vermelho. Ansiava, sim, ansiava por ar fresco na cara e um peso no coração que abrandasse aquele descompasso, aqueles cavalos selvagens à solta no seu peito franzino. Uma rédea e uma forte mão de comando eram urgentes. Estendia já o braço. Fugiria dali.

Precisava de se acalmar. De sobreviver àquele tormento e evitar a dor que sempre se segue. Já a conhece de ginjeira. Há muito que não necessita de compêndios médicos alinhavados e sumariados no Dr. Google, para reconhecer os seus sintomas. Finalmente a rua. O frio da noite e o barulho das vozes na entrada do teatro que se esfumavam e diluíam no interior, pouco ou nada afetando o silêncio quase total daquela rua estreita e esquecida pelo trânsito àquela hora. Sentou-se no passeio. Levantou-se de imediato. Andou em círculos. Parou. Respirou com dificuldade. A dor no peito. O braço dormente. Irónico seria se, um dia, morresse mesmo de ataque cardíaco, o qual ignoraria – se isso chegar a ser possível, mas o medo da morte iminente nunca o permite, não é? –, por considerar que experimentava apenas mais “um dos seus ataques e ansiedade”. Agora, andava sem sair do sítio, numa espécie de marcha infrutífera, um marcar passo angustiante, mas que parecia acalmá-lo. Suava.

– Efigénio!

O estupor do Raul. Sempre que estava em público, ou o queria irritar – sim, reconhecia-lhe essa maldadezinha, essa mesquinhez enervante – chamava-o pelo primeiro nome, e como Boaventura odiava o seu primeiro nome. Estúpido de merda. Que fazia ele ali? Boaventura virou-se e viu Raul. Não estava só. Quem era o outro? Não! Atrás dele percebeu o mestre. Nem mentalmente conseguia proferir o seu nome. Apenas mestre. Mestre. A razão do seu pavor instantâneo. Da sua quase-morte iminente. Que fazia a besta ao lado do mestre berrando o seu primeiro nome? Tinha de sair dali. Não conseguia conceber a ideia de ter de falar perante o mestre. Correu. Estaria mesmo a correr? Imaginava patéticos todos os trôpegos movimentos que deveria estar a fazer. De volta o alvoroço cardíaco. O braço que doía. Agora de novo o ruído do trânsito. Uma praça cheia de gente. Sentiu-se tonto e perdido. Correu. Caiu.

Segundo Ato

Efigénio Boaventura, não obstante o embaraço e a estranha sensação que ainda acendia no seu peito a lembrança deste episódio, tinha-o quase esquecido. Tinha arrumado na parte sombreada da memória este primeiro contacto quase pessoal com o mestre Edouard Rocher, o argumentista, ensaísta, encenador e diretor artístico que tinha moldado toda a sua geração de atores e, genericamente, a de todos os artistas seus contemporâneos, reformulado modos e estéticas e, assim, abalado alguns pilares do teatro enterrados nos tempos e impeditivos da sua nova visão orgânica e holística da representação em palco. Ele tinha mudado o paradigma, encetado uma nova ordem das coisas com estrondo e sucesso. Era uma sumidade, aglutinando intelectualidade e emoção, filosofia e experimentação, poesia e guionismo. Só esta breve biografia mental e Boaventura já tinha colocado debaixo da língua a sua droga SOS. Um nanocomprimido que não tardaria a afugentar males maiores e a acalmar os tremores que acometiam todos os seus músculos. Pelo menos, assim o esperava. Assim era necessário.

By Stephan Vanfleteren

Começaria em breve a ensaiar uma peça com o mestre Edouard Rocher, estrela convidada da companhia, para um ciclo de três peças que se interligavam na narrativa e se sucederiam no tempo, mantendo a companhia ao rubro durante dois anos. Não podia recorrer à medicação SOS diariamente. Não era esse o propósito do comprimido, nem poderia viver em permanente SOS. Tinha de se recompor e preparar para o embate. Com tremores nas mãos e sobressaltos no peito subiu ao palco, onde aquilo que lhe pareceu uma infinidade de cadeiras estava disposta num amplo círculo, o que colocava em risco de queda aquelas que se encontravam mais à boca de cena, bem rente ao fosso de orquestra. Programava já, mentalmente, fugir daquela área. Boaventura estava sempre em modo preventivo, vivendo por antecipação, e essa era causa e consequência do seu permanente estado de ansiedade e inquietação.

– Ah, Efigénio. Finalmente! Vem cá conhecer o Edouard. Acho que és o único que ele ainda não conhece, pá. Até já lhe apresentei a equipa de limpeza. Andas fugido. Estás com medo?

Raul e o mestre ocupavam dois lugares centrais a meio da plateia. Com as luzes do palco acesas, não os tinha visto na penumbra da sala. Melhor assim. Conseguiria ir a direito, de cabeça erguida, sem o receio paralisante de um frente a frente, permitindo que evitasse o terrífico ‘olhos nos olhos’. Guiado pela luz de um telemóvel, onde um deles dedilhava algo, Boaventura chegou ao destino, já de mão em riste para o cumprimento que tanto aguardava como temia. Apenas a voz, como receara, não obedecia ainda. Presa nos confins do seu cérebro, onde, de resto, não encontraria palavras adequadas. Ficar-se-ia pelo silêncio imposto, para já. Edouard, e ainda que com um cerrado sotaque, expressou-se num português inesperadamente irrepreensível. Seria filho de uma porteira portuguesa emigrada “na Paris de França”? Essa possibilidade quase lhe devolvia a voz. Nova surpresa: o mestre apresentou-se com simplicidade e simpatia, uma dupla impensável no universo de egos inflamados como o das artes. Mais ainda vindo de quem já tinha alcançado fama mundial.

Também não era arrogante, nem afetado, como preconceituosamente tinha suposto. Era um tipo imponente, alto e estupidamente bem-parecido – bem mais do que as fotos que dele conhecia deixavam transparecer –, com uma pose soberba e uma voz que impunha respeito e admiração, de tão profunda e bem colocada. Tinha um estilo cool, ou, para fazer uso da língua materna do mestre, muito blasé, mas elegante e sofisticado. No total, era o tipo que bem se podia odiar de imediato. Tudo estava a seu favor. Tudo se apresentava contra Boaventura, um homem que se colava ao tipo banal, para não arriscar o mais acertado: ordinário. A abertura e curiosidade do outro, porém, que tudo quis saber sobre os projetos e interesses de Boaventura, eram desarmantemente atraentes e empáticos. Não eram meramente forçados por um qualquer patamar de civilidade. Eram genuinamente simpáticos. Demasiado para que não se sentisse ainda mais atraído por aquela figura que tanto idolatrara à distância e que, agora, ali tinha, à sua frente, à distância de um braço semiesticado, disponível para ouvir Boaventura e interessado naquilo que ia dizendo num discurso ainda atabalhoado pelo nervosismo: 20 anos de carreira, um currículo simpático e diversificado, uma paixão pelos clássicos, mas maior dedicação aos novos autores nacionais, algum reconhecimento da classe, um ou outro papel em televisão, que o teatro não alimenta famílias… Enfim, o normal para um ator acima da média (seria mesmo?), mas não excecional, não obstante o mérito que o ego de Boaventura atribuía a si mesmo.

Sem escárnio ou julgamentos e longe de cinismos ou paternalismos, Rocher elogiava o percurso, a sua resiliência em manter-se sobretudo nos palcos, e enaltecia aquele amor que ambos partilhavam pelo teatro e a crua arte da representação, sem rede nem plano B, que só o teatro permite, e que são, incontornavelmente, suas premissas. À boca de cena apenas verdade, crueza e o resultado da concentração, intuição e inspiração do momento. O teatro era queda livre e em direto. Um assustador bungee jumping. Um voo rasante pela capacidade de sobreviver, enquanto se é olhado e julgado ao segundo e em tempo real. Sem artefactos, sem possibilidade de remediar ou pedir perdão. Tudo ou nada. Fibra, nervos e coragem. Disso se faz um ator. Disso nasce uma interpretação. Com essa massa se molda uma personagem.

Boaventura ia ganhando à-vontade e alguma segurança. Aventurou-se, mesmo, em algumas perguntas. A confiança ia chegando. A voz também e não tardou a achar-se, de novo, especial. Apostava que Raul tinha falado bem de si, melhor do que dos restantes elementos da trupe, que o tinha vendido como a estrela da companhia e que o outro podia até temer o seu estatuto de ‘povo das artes’, ali, sempre rente ao escrutínio diário e não protegido por uma redoma de sucesso e bajulação suficientemente gigantes para entorpecer e distorcer a realidade, adormecer a crítica e embevecer até os detratores, como era, obviamente, o caso do mestre. Um mestre já não é questionado, apenas ouvido e seguido. Em torno de um mestre prolifera uma ceita cega de seguidores que vai alargando o círculo que impede a entrada de pensamento crítico. O mestre, pensava já, era, afinal, um tipo como outro qualquer.

Terceiro Ato

Os ensaios, sob a batuta do mestre Rocher, revelaram-se intensos e esgotantes, mas igualmente reveladores e inspiradores. Eram verdadeiros workshops de autoconhecimento, de descoberta do eu, do outro e de cada uma das personagens. Como que por hipnotismo, cada um dos atores já não era a sua pessoa e transformava-se na personagem, com profundidade e musculatura. Todo um quadro mental que se instalava ao vestirem aquela nova pele. Rocher era demoniacamente exigente, mas impunha-se pela inteligência e pela capacidade sub-reptícia de levar os outros a excederem-se, a almejarem a perfeição por caminhos aveludados, quase sem darem por isso. Um trabalho que implicava repetições, paragens, conversas, algumas exaltações e uma espécie de transe que ninguém por ali conhecera até então. Rocher não era um mestre, era um mago. Chegava a assustar, a forma como conseguia entrar na mente de cada um, nos seus medos e fragilidades. Desconstruía e reerguia personalidades como quem mexe num lego ou reformula um puzzle que parecia completo e terminado, criando novas imagens e possibilidades, remodelando o barro. Riso, choro e gritos eram comuns a cada ensaio, em cada conversa com Rocher. Uma orquestração mágica, quase diabólica, em que o mestre jamais erguia a voz, jamais se exaltava, mesmo quando tudo se desmoronava em palco. Retomava-se o trabalho, retocava-se o barro e todos entravam, à vez, na sua roda de oleiro até que obtivesse as formas que lhe iam na cabeça, as peças que criara já em teoria e cujas imagens rodopiavam no seu olhar em transe.

By Jack Davison

By Man Ray

Conseguia, sem grande esforço, ou intenção, descascar todas as camadas de cada ator. Todos se iam despindo de coisas, umas inúteis, outras sem as quais julgavam não sobreviver, deixando-os indefesos, nus e carentes. Um estado de vazio que os tornava no recetáculo perfeito. Nesse grau zero do ser, absorviam novas personalidades com a mesma avidez com que um corpo nu numa calota de gelo veste peças de vestuário, ou como um estômago à míngua se agarra a uma sopa quente e reconfortante. Todos deixavam de ser quem eram e embarcavam em ser quem desejavam, quem deveriam ser na peça, segundo os traços do autor e as indicações do mestre. Um poder apenas imaginável numa varinha de condão, num truque de ilusionismo, num passe de magia, numa rocambolesca alquimia do ser. Um exercício desgastante, mas revigorante. Todos percebiam a razão de ser de tão estrondosa fama. Rocher era divino. Feito de uma massa interdita aos homens. Ele tinha tocado o Olimpo e afagado os Deuses.

Um processo que operava em sentido inverso no caso de Efigénio. Boaventura, agora já cheio de confiança, e com o ego nos píncaros, acreditava, por esses dias, que o homem se drogava. Não que tivesse visto ou ouvido o que quer que fosse, mas aquele olhar vítreo, aquela hiperconcentração, aquela energia inesgotável eram sobre-humanas. Aquilo só podia ter origem artificial, sintética, química, seguramente. Um drogadito, pensava. Não o dizia com desilusão, mas com algum regozijo. Aquilo tornava aquele Deus mais humano, trazia-o para bem mais perto de si, talvez mesmo para um nível abaixo do seu, que tudo conseguia sem tocar num charro que fosse. Tudo natural e puro.

Uma tomada de consciência que o levou a questionar e contrariar todo aquele louco processo de hipnose e de transe coletivos. Alguém tinha de se manter consciente e acima de tudo aquilo e esse alguém seria ele. Voluntariara-se com determinação, à revelia do óbvio, do pretendido e do desejado. Uma voz dissonante que o mestre começou por ouvir, interessado em desbravar sempre novas possibilidades e atender a outras perspetivas. Fê-lo apenas até perceber que não escutava outra coisa que não meras imbecilidades de um ego desproporcionalmente afetado. Foi ignorando Boaventura até ao dia em que este, cheio de si mesmo e de muitas outras coisas, se aventurou no desconhecido. Se precipitou na falésia da vaidade, no poço da autoestima.

– Rocher, alterei o guião. Quase todo, devo dizer-te. Passei noites nisto, mas acho que melhorei bastante a tua peça. Ora vê o que proponho?! Em palco apenas a minha personagem e tudo o resto em voz off. Em vez da busca do futuro numa paisagem distópica, uma quimera, praticamente uma banalidade, demasiado vista por aí, o homem parte em busca do seu irmão gémeo, que eu próprio interpretaria também, claro. Como já temos os cenários prontos, sugiro que os reaproveitemos e coloquemos a ação na paisagem do Burning Man. Não é um chuto no olho, isto?

Enquanto Efigénio Boaventura se limitou a palpitar sobre as suas falas, a sua personagem e a conjeturar teoricamente sobre o caminho a seguir e o propósito da peça, Edouard Rocher foi aproveitando a loucura do ator para usufruto do grupo, sempre que tal era possível. Logo que o pobre se revelou arrogante, prepotente e desrespeitoso para com o trabalho de Rocher e de todo o grupo em véspera do ensaio geral, escusado será dizer que Rocher o comeu vivo, com a mesma delicadeza com que o tinha ignorado sempre que abria a boca para dizer disparates. Convenceu-o de que só ele poderia ficar de fora da peça, como meta-personagem que tudo abarca e entende. Um ator-espectador. Uma coisa inédita e deveras especial. De tal forma especial que teria de ser feita em casa, longe do teatro, onde, de resto, Efigénio jamais voltou a entrar, levando até hoje, uma vida de clausura naquele tipo de caixa onde vivem os egocêntricos e os preconceituosos, achando, ainda assim, que tinha estado na origem de mais uma descoberta de Rocher. Tinha sido ele a levar a luz ao mundo do mestre. No seu lugar, brilhou um Edouard Rocher sem mácula, num regresso aos palcos inimaginável e irrepreensível. Choveram prémios e subsídios. Choveram aplausos e elogios. Rendeu-se a crítica e os não crentes às metodologias do mestre. Fizeram-se filas de quilómetros, com gente vinda de todo o lado, algumas diretamente do Burning Man, por coincidência, para assistir, em palco, à transformação de um homem num Deus, por via de uma atuação transcendente e arrepiante, a qual Boaventura acreditava dever-se a si. A mente é um lugar complexo e, por vezes, tacanho.

 

Moral da história:

O excesso de confiança é próprio dos seres ‘pequeninos’, não em altura, mas em dimensão humana. A melhor certeza do universo é a dúvida. Quando esta se vai, é o princípio do fim. No teatro e na vida.

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2 Comments

  1. As Crónicas do Guerra

    Uau…! Uma história super original e fora da caixa! E escrita de um modo muito envolvente e distintivo…! Parabéns!

    • Marina Rocha Ribeiro

      Muito obrigada e Muito obrigada!! Ainda bem que está por aí

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