Tudo começou de forma sub-reptícia. Sorrateira. Lenta e paulatinamente. Tão Paula-tinamente, que Pureza Mil-Joias, que odiava de paixão nomes de pobres, como Paula e Carla e outras urticárias congéneres, não deu por ela. Por ela ou por ele, que se assumia como pessoa contemporânea, muito pertença do seu tempo, inclusiva e quase, quase progressiva (faltava-lhe apenas um planeta ou dois de distância para tal), desde que não lhe viessem falar de casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou abortos instantâneos. Isso não. Tinha um ror de amigos gay, pois claro que tinha, todos giríssimos e de ótimas famílias, mas todos bem casados, com piquenas da sua estirpe, e cheios de filhos do melhor que há, com apelidos hifenizados e tudo, que assim é que deve ser. Onde já se viu que assim não fosse? Isso era coisa de pobrezinhos, sempre tão empenhados em que deem por eles e pelas suas bizarrias. Gente que desconhece o chique que é ser-se discreto, low profile. Espécimes de pessoas que bradam aos céus o direito – o direito, imagine-se! – a abortarem só porque foram violados, ou não têm dinheiro para pagar a existência das crianças, ou apenas porque sim. Como? Que barbaridade! Nosso Senhor tudo cria. Se não se armassem ao pingarelho, a querer inscrever as crianças em bons colégios, com a nata da nata, e insistissem que todos eles fossem para a universidade, as crianças nem ficam assim tão caras. Há sítios por aí, que ouviu isso numa notícia com ótimo ar, que dão roupa aos pobrezinhos e ainda em muito bom estado. E há comida no banco da comida ou banca dos enlatados – tinha enorme dificuldade em lembrar-se do nome da coisa, mas era da querida Isabelinha, amiga de toda uma vida. De que se queixam? De não sermos obrigados a saber com quem dorme a gay people? Mas aí reside o fascínio da coisa. Ninguém tem de saber com quem nos enrolamos. Isso vale ouro. Não saberão isso? O que seria se o seu Carloto soubesse com quem ela dorme. Era o fim da harmonia social. Não entendia. O mundo andava do avesso.
Talvez por toda essa inversão de sentido das coisas que estavam tão bem como estavam e que agora teimavam em mudar, Pureza Mil-Joias não deu por ela logo de início. Ela ou ele, que também não me metia em discussões de género e todas essas patetices. Só conhecia dois géneros, o bom e o mau. O das boas famílias e o dos possidónios. O do encarnado e o do vermelho. O da retrete e o da sanita. O do enterro e o do funeral. O dos retratos e o das fotografias. O das carteiras e o das malas. Claro que havia um terceiro género, o melhor de todos, mas esse era demasiado restrito e elitista, e nem todos estavam aptos a entender toda a abrangência do conceito. Era o género ‘bem’. Ser bem era tudo na vida. Tudo aquilo a que se podia aspirar. Não era determinado pelo dinheiro, mas este teria de estar sempre presente, claro, mas se apenas dinheiro houvesse, por muito boa formação e educação, ou mesmo com uma soberba presentação e bom-gosto, se não se tivesse um apelido bem, um passado carunchoso que se perdia nos corredores do ‘bem’ a sério… Nada feito. Nada, mesmo! Claro que o apelido tinha de ser próprio, que não é por se casar com alguém do género bem que se passa automaticamente a ser bem. Pelo contrário. Nada pior do que um pobrezinho num ciclo bem. Não sabem estar e mesmo que o saibam, ninguém lho permite. Quem disse que a vida é fácil? Se é para escalar, que vão para as montanhas e deixem o social em paz.
Com tudo isto já se tinha perdido de novo nos seus pensamentos. “Típico de um Mil-Joias” – todos uns vagos –, riu divertida, embora ainda olhando para a aquele quadradinho de papel onde complexas parcelas impressas num tom de azul de que não desgostava, lhe anunciava, ao que tudo parecia, que tinha imenso dinheiro negativo no banco. Uma fortuna estupenda, mas antecedida de um sinal de menos. Logo, era uma fortuna negativa. O que quereriam dizer com tal enigma? Como positivá-la? Seria o negativo o novo positivo? No que toca à SIDA, por exemplo, pensou, negativo é do melhor que há. Devia passar-se o mesmo com aquele teste do banco. Certamente! Além que não podia agora enredar-se em hipotenusas e power points da matemática, que a sua paixão sempre tinha sido o voluntariado. Nada a punha mais bem-disposta do que ajudar os pobrezinhos e até os desfavorecidos. Ainda hoje, por exemplo, logo ao acordar, tinha dado a manhã de folga à sua Genny – de seu nome Eugénia, mas logo encontrou melhor petit nom para a criatura, que é preciso manter a pobreza longe de casa, por causa do contágio, o mesmo com a depressão, como tomara nota na sua agenda há já alguns anos. Ao cabo de 30 décadas de serviço exemplar e dedicado, entendera que a coitada merecia um folguedo.
– Vá lá, para a rua, ter um bocadinho de sexo e a ver se ganha umas cores.
Não queria acreditar na resposta descabida, na afronta da pespinhenta:
– Mas, menina, a manhã acaba em meia-hora, que deve ser o tempo que levo a despir a farda e a preparar-me. Nem vale a pena o trabalho.
– Olhe, mais fica.
Desalentada e magoada com a mal-agradecida, recordou as palavras da avó Carminho:
– Os criados só são merecedores de ordens.
Como ela tinha razão. Bom. O melhor seria amarrotar o tal pedaço de papel com dinheiro inverso, ou negativo ou lá como deveria ser chamado. Enquanto a máquina fosse bolsando notas, nada de apoquentações. Depois desse primeiro pedaço de informação bancária, outros se seguiram, bem como alguma correspondência demasiado maçadora para que a conseguisse ler até ao fim. Porque não mandavam mensagens por WhatsApp? Num grupo com gente gira. Dessa maneira leria tudo até ao tutano. Mas papel timbrado? Com chantagens do género ‘Se não pagar…’, Ui, que medo. Não sabiam quem era, seguramente. Também não podia entrar no banco e dizer apenas. “Olhe, lá, sabe quem eu sou?”. Não tinha esse tipo de educação, pelo que, todo o seu sangue puro lhe recomendava ignorância pura.
Foi o que Pureza fez. Foi ainda o que tentou fazer quando se deu o primeiro sequestro. Levaram-lhe o piano de cauda e ainda um Stradivarius, todo ele em tom mel escandinavo, deixando claro que ou pagava ao Fisco ou nunca mais os veria com vida. O que ela chorou. Fisco, que nomes os dos gangsters portugueses. Devem ser rappers e assim, e fazem um complemento de rendimento com este tipo de raptos. O tal Fisco e a sua turma devem ter passado a palavra, pois não tardaram em raptar-lhe, em pleno dia, todas as relíquias da ‘garage’. Os vizinhos, todos de olhos postos naquele assalto, não foram capazes de pedir ajuda, ou de gritar por socorro. Ela foi a única com sangue frio para pedir auxílio.
– Acudam, por favor, que me raptam os Mazeratti. Acudam os meus meninos, por favor.
Com a aflição, quase entornava o copo de gin, mas lá se recompôs a tempo de não perder uma gota. Estão a entender o que quer dizer ser ‘bem’? Também é isto. Este autocontrole, este discernimento, esta agudeza de espírito, esta fibra.
Apareceu alguém? Quer para impedir a malandragem dos raptores ou para lhe salvar aquele gin do melhor que há, que é igualzinho ao que bebe a Isabelinha de Inglaterra? Era vê-los, aos cobardes, cheios de medo, de narizes colados às suas janelas ou observando-a por detrás de finas cortinas. Se calhar, conjeturava agora, foi a própria vizinhança quem passou informação preciosa aos bandidos.
– Vão lá à hora do Martini, que a tia nunca sai sem um cocktail ou dois, pois não é ‘bem’ estar sempre completamente sóbrio.
Claro que não lhe passava pela moleirinha – Pureza adorava expressões do povo, estava até em vias de adotar ‘paus’ em vez de euros, mas sentia séculos de ‘benzura’ a oferecerem uma certa resistência ao termo – incomodar o querido Carloto, ele próprio cheio de afazeres em todos os negócios de família. Ele era a propriedade, a cortiça, as montarias e, agora, até a Becas, a sua mais fiel amante, com invenções de gravidez e outras dores de cabeça. Já lhe tinha dado o nome de uma clínica de desintoxicação fetal em Londres que era do melhor que há, mas alega muito temor a Deus e mais não sei o quê, como se falassem de aborto. Tão tola, mas os Gautlieb sempre foram exóticos. Quem lhe mandara a ele meter-se logo com aquela puritana? A prima dela, de sangue alemão, que também se perdia de amores pelo seu Carloto – como ela se orgulhava dele – seguramente teria um pensamento bem mais pragmático. Já a outra, como todo o romantismo gaulês… portanto, o adorado Carloto estava fora de questão e se mantivesse a ‘garage’ sempre fechada com o sinal de ‘Em Limpeza’, ele jamais daria pelos raptos. Quanto às notas de resgate, ela tinha-as picotado e puxado o autoclismo, que a retrete leva tudo. A esta hora estavam na barriga de uma baleia. Só pedia a Deus que a pobre monstra não desse à costa ali numa das praias de Cascais. Os piquenos estudavam coisas inteligentes no internato suíço, mas isso é que jamais. Seus queridos filhos. Eles que aproveitassem a juventude, sem alarmes. Por falar nas crianças, também tinha recebido uma nota qualquer do colégio interno, mas não lhe deu atenção. Deviam estar vivos e bem, que ainda ontem falara com eles via Skype. Estavam esbaforidos, após uma chiquíssima e elitista aula de esgrima. Amorosos, só pediam mais mesada. Não são mesmo de incomodar. Nada como uma boa educação, orgulhava-se.
Às amigas falou vagamente de todo aquele transtorno, e delas recebeu a preciosa dica de fazer de conta que não se passava nada, que era a única forma de nada realmente se passar. Não é que tinham razão?! Mas tiveram-na por pouco tempo. Foi então que aconteceu o inimaginável. Nem em filmes tinha visto tal coisa. Sequestraram-lhe a casa. Bando de invejosos. Não podia ver uma pessoa bem de bem na vida. Logo vinham leis e outros tantos disparates e ainda bandidos sequestradores. Dessa vez, a polícia apareceu, graças a Nossa Senhora de Fátima, sua padroeira do coração. Achou que ficaria tudo resolvido. Qual quê!? Estavam de conluio com os bandidos. Não mexeram um dedo que não fosse para revirar a mansão de alto a baixo. Desesperada, lá ordenou à Genny que fosse para a sua casa, e ela que não se esquecesse de levar as garrafas. Todas. Que entre vinho do melhor e gin de igual calibre é que não se podiam separar. Lá foram. Num Volvo gigante. Nunca tinha visto nada assim. Muito prático e era do tipo comunitário, pois ia cheio de gente que julgou da família de Genny e a quem todos cumprimentou com um beijo solteiro, para depois perceber que a mal-educada nem aos primos falava. Parece que os pobres não se falam entre si, ao contrário das famílias bem. Tomou nota, para evitar futuros embaraços. Desceram numa zona sem iluminação, e o Volvo giro lá continuou viagem. Não deixou de ficar impressionada por a sua Genny ter tantos conhecimentos e até um veículo comunitário. Seria ela comuna? Receou um pouco. Menos impressionada ficou ao ver o… como dizer. O… casebre. Era isso mesmo, o casebre em que a pobrezinha morava. Não admira que nunca quisesse sair lá de casa. Nem uma pintura de jeito, coitada! Porém, todas as suas reticências se juntaram numa alegre dança ao ver o filho mais velho de Genny. Que pena não ser bem. Era de se perder a cabeça. Todo ele com muito bom ar. Tinha um perfil sedutoramente bélico. Vestia uma espécie de farda, como aquelas daqueles tipos muito bravos e endiabrados que apagam incêndios e coisas do género (nunca se recordava do nome militar dessa nobre atividade), e claro que tinha aquele típico ar aborrecido dos pobrezinhos. O mais curioso, ainda assim, é que lembrava, em tudo, mas tudo mesmo, o seu Carloto quando tinha aquela idade. Que agradável coincidência. Aquilo começava a valer a pena. Não fora Carloto ser um querido e Genny uma simples criada e ainda diria que ali tinha havido coito. Que divertida ficava só de pensar em tal absurdo.
– Não se saiu nada mal, Genny. Olhe só que criatura adorável que é o seu ‘piqueno’!
Pureza, começou depois a avaliar a decoração. Não desgostou do ton sur ton, dos tons crus, dos armários que lembravam laca chinesa, das ramagens tropicais das cortinas… Claro que os bibelots de fancaria tiravam-na do sério, mas olhar o mancebo que já se refastelava no sofá, levou-a a considerar tudo aquilo puro kitsch de qualidade. Daquele que algumas revistas lá de fora falavam com rasgados elogios e que estava muito ligado às novas gerações e aos revivalismos e àquela coisa hipster. Estava a ficar encantada. Não ter dinheiro era o novo ‘riquismo’. Lá comunicou a sua descoberta social às amigas. Levando-as em animada excursão no Volvo da Genny, guiando-as pelo bairro sob o olhar quente do piqueno da sua Genny. Um pagode. Amaram tudo aquilo. Sentiam-se como se fossem a ‘Anita de visita ao Bairro Social’. Já falavam em criar um grupo. Podia chamar-se Guetolândia e elas ‘guetis’, e podiam brincar aos bairros pobres o dia todo, levando a palavra do ‘bem’ onde jamais se sonhou que ela chegaria. Seriam pioneiras. Visionárias. Beneméritas. Já se viam no papel de Madre Teresinha do Gueto. No seu árduo papel de líder das ‘guetis’, Pureza não tinha mãos a medir. Ele eram os chás e os cocktails servidos no meio de todos aqueles naperons e andorinhas de parede. Teve o maior sucesso durante uma tarde, começando a esmorecer ao lingo da primeira semana. Findo o Earl Grey e o gin do melhor com Dubonnet, as ‘guetis’ começaram a entediar-se. Num inesperado momento de total sobriedade, Catuxa, até então melhor amiga de Pureza, disse, sem se preocupar com deveres de lealdade:
– Isto de não ter dinheiro tem imensa piada, desde que se tenha dinheiro. Vamos antes regressar para casa que estou a ressacar com falta de gente bem por perto. Além de que não me dou bem com cheiros estranhos e tapetes que contornam retretes.
Todas acharam que era a melhor ideia de sempre. Apenas regressar ao dinheiro, que aquela pobreza tomava conta do seu bom gosto e requinte.
– Ainda acabamos para aqui a tricotar almofadas com frases possidónias.
Nisto, desatam a correr, em colorida e vaporosa debandada. Só quando entraram no refrescante ambiente dos seus veículos com motorista, repararam que Pureza, na ombreira da pequena porta de batente único de Genny, lhes acenava com o seu lenço de seda pura. As mais espertas entenderam. As outras nem por isso. Nem Pureza teve a certeza de ter entendido bem. Sem dinheiro, a que poderia ela voltar?
Por ela passa o portento do piqueno Carloto e logo se voltou a distrair. Ia buscar uma malhinha, que o entardecer pode ser traiçoeiro, e iria conhecer melhor o bairro e perceber quem por ali era expert em mixologia. Só esperava que não pensassem que seria ela a pagar.
Moral da história:
Não deixe de ir à escola. Conhecimento é tudo na vida!
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