Ele desesperava.

– Já está a dar o anúncio do Gino-Canesten e o jantar ainda não está na mesa? Não tardam os do Imodium Rapid e nada de jantar? A que se deve tanto atraso? O que anda a cozinheira a fazer?

– A cozinheira? Que conversa é essa? Agora sou tua cozinheira? Estive o dia todo a trabalhar como tu. Levanta o rabo do sofá e vem já fazer o arroz, se queres jantar mais cedo. Sozinha a fazer tudo, não jantamos senão dentro de uma hora e já estou a ser otimista.

Bolas. Tinha-se esquecido de que estava na casa que partilhava com a Fortuna e não com a Riqueza. Que mau! Se não tivesse cuidado, ainda era apanhado em falso. Achou que o tempo iria limitar ou mesmo eliminar possíveis enganos e trocas, mas sempre que se sentia mais cansado, percebi um certo esforço em manter-se dentro da personagem. Isto de ter duas mulheres era bestial, mas, a nível mental, era muito exigente e cansativo. Mais ainda tendo-se apaixonado por duas mulheres tão distintas. Mas confundir o palacete aristocrático de Fortuna com a moradia contemporânea de espírito hippie de Fortuna não era apenas um erro crasso, era tentativa de suicídio. Tinha de se manter mais atento. Um destes dias tinha dito a Fortuna que ia à copa. À copa. Por sorte Fortuna era descontraída e achava sempre que ele tinha apenas piada e que efabulava por ser, de certa forma, louco e um homem fora do comum. Mas sabia ela quão fora do comum. Os bígamos não são raros, veja-se o caso, assumido às claras, desse bravo capitão de abril, o Otelo Saraiva de Carvalho, que era, clandestinamente, o seu grande herói. Grande e único. Duas mulheres e a dias. Que grande feito! E sem mentiras. Ah, se, um dia, chegasse aos calcanhares do mega capitão! Era esse o seu único sonho.

Por muitas voltas que desse à cabeça não conseguia decidir-se ou saber exatamente como seria o futuro, ainda que fosse certo que estas situações não são eternas. Eventualmente, um dia qualquer, os caminhos das suas duas vidas paralelas cruzar-se-iam, devido a uma curva que não deveria existir, já que seguia por duas retas, e tudo acabaria mal. Muito mal. Pois se até as linhas dos carris acabam em bifurcações, porque não os seus dois amores? Além de que o mundo é uma ervilha e Portugal, então… a cabeça de um alfinete. Mas como optar? E porquê optar? Não podia prescindir de uma das suas mulheres. Amava ambas. Em medidas e quantidades iguais. Com igual intensidade. Como ficar apenas com uma delas? Eram tão diferentes…

Riqueza era pespinhenta, sofisticada, nariz empinado, pele branca como o mármore, culta, ainda tinha sangue azul e um título nobiliárquico, dinheiro a rodos e era um verdadeiro animal nos negócios. Não obstante tudo isto, era muito discreta e educada. Reservada e meiga. Apenas não a contrariassem. Não estava habituada. Tinha a mania das limpezas, do método e da organização. Tudo estava indexado na sua vida. Desde a roupa, por cores nos vários quartos de vestir – que mais pareciam lojas e os seus apelativos expositores –, aos afazeres do quotidiano. Parecia um relógio suíço, sempre naquele afã de tiques e taques sincronizados e de cadência perfeita. Era uma delícia de mulher. Fiável até à quinta casa. Com ela, tudo corria como planeado, até porque tudo era esmiuçadamente planeado. Tudo ao cronómetro. Sem falhas. Sem hiatos. Não admira que, de todos os herdeiros da grande fortuna do antepassado marquês, Riqueza fosse a única que não apenas não tinha delapidado o dinheiro de família, como o tinha multiplicado vezes muito. Tanto que estava em permanente alerta. Sempre atenta às bolsas, ao iene, ao ouro. Principalmente ao ouro, único valor que considerava fiável e com real valor. Era a sua Cleópatra. Ela fazia acontecer. Era a imperatriz da estratégia e aquilo que não conseguia… comprava.

Fortuna, por seu turno, era uma nortenha louca e sedutora, daquelas que trocam de verdade os vês pelos bês e as voltas à cabeça de um homem. Cheia de onda e de sentido de humor. Tudo era decidido na hora, sem pressas ou cálculos. Tudo era improviso e aventura. Um dia era astronauta, no seguinte desenvolvia uma horta biológica e pelo meio ainda terminava mais um mestrado em qualquer coisa.  Desprezava o dinheiro ou, melhor, não lhe dava valor, o que parecia fazer com que o pobre do dinheiro, sem compreender esta falta de afeto, acabasse sempre por voltar para os braços de Fortuna, sem que esta fizesse muito por isso. Parecia que quanto mais o negligenciava, mais ele teimava em voltar, como acontece em certas relações tortuosas e tóxicas. Viver a seu lado era anuir a habitar uma extenuante roda viva, num permanente sobressalto de surpresas e novidades. Agora andava às voltas com a carne maturada, pelo que a casa do jardim estava transformada em oficina de talhante onde o cheiro a sangue e a putrefação se mesclavam nauseabundamente. “A carne mais maturada liberta mais sucos, o que a torna mais macia e tenra. Quando experimentares não vais querer outra coisa”, dizia-lhe ela, enquanto espreitava a carne quase com doçura. Bem que ele não se importava de provar e de entrar em todas as suas loucuras. Estas davam-lhe a clara e permanente sensação de estar a experimentar a vida e não apenas a observá-la. Tudo era vivido na primeira pessoa e isso fascinava-o, mas, no que toca à maturação da carne, porque não ir apenas a um restaurante onde a servissem, ao invés de terem de acompanhar todo aquele deprimente e nojento processo? No fundo, e tal como acontece com alguns queijos um pouco pelo mundo fora, trata-se de deixar ‘apodrecer’ a carne um pouco mais, em vez de se comer antes, após o normal e bem mais breve processo. Mas o habitual não era para Fortuna. Toda ela vivia concentrada no excecional e foi por isso que, já depois de se ter perdidamente apaixonado pela beleza e delicadeza de Riqueza e de se ter rendido ao conforto de uma vida de luxo e de luxos a seu lado, ele não resistiu a aventurar-se no corpo moreno, ondulante e tórrido de Fortuna.

Se Riqueza era o sedutor e prateado luar, Fortuna era o intenso sol do meio dia num dia de verão sem vento. Capaz de enlouquecer um homem. Ou isso, ou derreter-lhe a vontade. Foi o que aconteceu. Com Riqueza em Lisboa e Fortuna no Porto, ele correu o risco de manter o amor pelas duas, o que sempre lhe recordava o divertido e deprimente reportório de Marco Paulo. Ele vivia feliz com esta bipolaridade e estava decidido a mantê-la até ser possível.

Era nas alturas de maior cansaço que temia pelo pior, e esta falha de falar em cozinheira na casa que tinha com Fortuna era claro sinal de que estava a precisar de férias. Foi por isso que o sobressalto não foi maior quando Fortuna lhe anunciou que iriam receber, em breve, a visita de uma amiga lisboeta, uma tia ricaça com quem tinha estudado História de arte há quase uma vida, mas que adorava.

– Tu também a vais adorar. É superinteligente e boa pessoa, mas é o estereótipo da tia da linha, ‘tá-ver?’ muito snob a falar. Tudo lhe sai pelo nariz, mas o que sai é acertado. Não vais acreditar no nome dela. Chama-se Riqueza. Dá para acreditar? Deveria ser uma Constança ou Caetana da vida, ou apenas Mariana ou Leonor, mas não: Riqueza. Os pais deviam estar muito embriagados, ou isso ou foi promessa, que os betos são todos muito religiosos, ou fazem de conta que são. Não interessa, pois que vai dar ao mesmo…

Enquanto ele dava um mortal encarpado para o vazio, ela continuou com a corda toda, muito entusiasmada, sem perceber que ele estava com sintomas de ataque cardíaco desde que ela proferira o nome da amiga. Claro que desmaiou. Bem que se armou em forte, mas o coração andava farto de tanto sobressalto e foi logo avisando que logo após o Gino-Canesten e o Imodium Rapid, aquilo de que ele precisaria era de uma angioplastia ou algo ainda mais drástico, que exigisse peito aberto e costuras grotescas até ao umbigo. Até podia estar a fazer-lhe um favor e, no pós-operatório, tudo acabar em bem, por elas terem receio de que acabasse por morrer de vez, ou, pior ainda, ficar debilitado ou mesmo com algum tipo de incapacidade.

Decidiu aceitar o destino e aguardar o trágico desfecho do seu duplo idílio amoroso. Riqueza que viesse de ‘bisita’ para ‘ber’ se a carne maturada de Fortuna vale um inesperado ‘inbestimento’. Ela que ‘biesse’ ao ‘Puorto’ e logo de ‘beria’. Talvez fosse pelo melhor. Pois ela veio e… não era a sua Riqueza. Era outra! Havia duas Riquezas ricas em Lisboa (talvez na Grande Lisboa, que é um pouco mais abrangente). Ele não queria acreditar. Se o destino lhe enviava sinais, estes não contrariavam a sua vontade expressa de amar desalmadamente aquelas duas extraordinárias mulheres. Tudo o fazia crer que jamais seria descoberto e que se tinha amor em dose dupla para esbanjar por aí, que o fizesse alegre e impunemente que não seria o destino a interferir. Esta outra Riqueza veio e foi muito bem-vinda. Era uma galhofeira, vaidosíssima e que se enamorou por completo com o projeto de Fortuna. Um ou mais, que a lisboeta já falava em entrar com dinheiro para mais não sei quantas das loucuras de Fortuna. A sorte de Fortuna não tinha fim. Nem a sua, pensava. Uma sorte inesgotável.

Talvez uma mentira, uma única grande mentira, mas com bom propósito, já que o seu amor por ambas as mulheres era genuíno, fosse aceitável e não um pecado capital. Era capaz de viver com isso. De resto, já o fazia e há demasiado tempo para um país tão minúsculo quanto Portugal. Com negócios em todo o país, as suas ausências eram normais e rotineiras, além de que erráticas o que tornava qualquer desconfiança menos provável. O facto de também Riqueza e Fortuna terem vidas preenchidas e cheias de saídas profissionais, aligeirava o clima para ambos os lados. A vida, afinal, era bela, desde que se soubesse exatamente aquilo que se andava a fazer.

Entretanto, numa outra dimensão, ao telefone.

– Então, querida? O nosso babe, descaiu-se? Como foi? Conte-me tudo, tintim por tintim, que estou em pulgas.

A voz nasalada de Riqueza não deixava dúvidas a Fortuna sobre quem se tratava, muito embora ligassem sempre uma à outra sem identificação de número, para evitar catástrofes.

– Nada. Começou por ter um pequeno desmaio, o que me levou a crer que acabaria por ceder à pressão. Mas depois, simplesmente fez de conta que tinha sido apenas uma quebra de tensão. A sua amiga lá veio e tudo correu pelo melhor. Havias de ver o ar de alívio na cara dele.

– Ahahaha. Estupendo. Estávamos a dar-lhe uma saída airosa de mão beijada, mas se ele não aceita… Tanto melhor. A mim dá-me um jeitão, ter tempo para mim, os meus livros as minhas amigas… Tempo para estar sozinha e fazer uma série de coisas que ele nem desconfia. A menina sabe que agora fumo charros?

– Ai, sim!?

– Siiiimmm. É do melhor. Quando acompanhado de champanhe e um bom banho de espuma seguido de massagens. Oh! Nem queira saber.

– Hei-de experimentar que isso soa muito bem.

– Também vai lindamente com um par de sapatos novos, se quer que lhe diga, darling. Ahahaha!

– Como te compreendo, Ri. O que seria de mim sem as minhas pequenas diabruras lésbicas. Meu Deus, se ele sonhasse… Era capaz de ficar todo enciumado e até de nunca mais voltar. Além de bígamo, tornava-se hipócrita.

– Seguramente. Era, de facto, o mais certo e isso nós não queremos, não é? Quer, então, dizer que no regresso a Lisboa ele não vai ter uma notícia bombástica para me contar? Nenhuma revelação escabrosa sobre o facto de nos ter a ambas como legítima e dedicada mulher?

– Nada. Quando muito falar-te-á da copincidência de tre com hecido uma outra Riqueza, não vá o Diabo tecê-las, e ele tece-as com frequência, e acabar por se cruzar com ela. Por falar nisso, explicaste à Joana que sempre que o encontrar continuará a dizer que se chama Riqueza, certo?

– Certíssimo. Ela é ótima, não se preocupe a menina com isso. Não é à toa que é minha assistente. Discretíssima e inteligentíssima. Por falar em Joana, ela ficou encantada com a história da carne maturada, pelo que os planos de negócio delimitados por ela se mantêm, ok?

– Que bom, Ri. Estou tão entusiasmada com estar parceria. Já estava com a parceria amorosa, mas esta também é muito excitante.

– Um beijo, querida Fortuna! Agora, vou-me pôr estupenda para o nosso homem.

Moral da história:

Linha é ter sorte ou fazer fortuna. Bingo é ter ambas, mas isso parece que é matematicamente improvável. Por isso, desconfie.

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