Não gostava do que sentia, mas sabia bem o que era, do que se tratava. Aquele aperto no peito. A vontade de fugir dali. De se esconder. De deixar de existir. Ou apenas a vontade inexplicável de fechar a boca da mãe. Mandá-la calar-se. Obliterá-la para sempre da sua vida. Sabia bem o que lhe ia lá dentro. O que lhe turvava a mente. Sentia-se mal também por isso. Por saber exatamente o que estava a sentir, mas não podia negá-lo a si mesma. Era vergonha. Mais do que embaraçada, sentia-se humilhada. Como podia a mãe ser tão imbecil? Tão ignóbil e boçal?! Todos os adjetivos que atiramos à cara de gente parva e burra assentavam na perfeição à sua mãe e isso era algo mais a ter contra ela. Jurava para dentro que jamais voltaria a ceder a uma destas visitas a familiares e amigos. Só serviam para sentir pena da mãe. Ainda para mais em frente a uma presunçosa prima afastada. Uma petulante convencida, tão estúpida quanto desinteressante, mas que pela razão óbvia de a mãe ser uma presa tão fácil de enganar, ali estava a pavonear-se, a arrotar postas de pescada e a esforçar-se por sobressair. Uma provinciana como há muito não há memória.
O seu grande frisson do momento era a sua casa nova, razão pela qual convidara os pais a visitá-los. Apenas mais um motivo de orgulho, uma manifestação do sucesso financeiro do bem-sucedido casal que faziam questão de esfregar na cara dos parentes e conhecidos menos abastados, já que todos os outros nem perderiam tempo a aceitar convite de tão sinistro casal. Mas os pais, todos bonzinhos e reconhecidos pelo convite, no amplo deserto da sua vida social, lá se encantaram com a ideia e por haver obras em casa, lá a arrastaram.
– Aqui, é o WC social. Gastámos para cima de uma fortuna a mandar vir este mármore LINDO de Itália…
Já sentia vómitos. Não tanto pelo insuportável tom de voz esganiçado da prima afastada, nem pelas mediocridades que ia debitando com enorme destreza, colocando preço à frente de tudo o que enumerava, mas pelo ar embevecido da sua mãe. Parecia um burro a olhar para um palácio, sendo que aquilo era apenas uma miserável moradia, com um tanque azul, a que chamavam piscina, no quintal a que chamavam jardim. Tudo medonho, bem abaixo de sofrível. Tudo de pequenino rico. Materiais que, percebia-se, tinham sido indicados por decoradores tão de terceira categoria que tudo aquilo tresandava a mau gosto armado ao pingarelho.
– O chão é de pinho nórdico…
Ia mesmo vomitar. Estava indecisa em que tipo de linóleo wanna be real material o faria.
A mãe estava encantada com a quantidade de janelas em cada divisão, pois defendia que todos os dias se deveria arejar a casa toda. Renovar o ar. Voltar a repor energias e equilíbrio. O que não sabia é que a visita guiada pela casa não seria o pior. A cabra da prima afastada dava em cima do seu pai de maneira escandalosa. Correção: de forma obscena e pornográfica. E o que fazia a sua mãe? Olhava e sorria embevecida por se darem tão bem, apesar de praticamente nem se conhecerem. O panasca do marido da prima afastada era outro que tal. Parecia nem reparar, ou já estaria demasiado habituado para se preocupar com os avanços da mulher para cima do seu pai. O grave, todavia, a seu ver, era a evidente correspondência do pai. Os olhares à velho engatatão à porta de uma universidade. Conhecia-os bem. Que pesadelo! Agora sentia-se livre para ter muita vergonha de ambos.
– E os roupeiros, que grandes! Quem me dera ter apenas um destes…
A mãe que não se calava, inchando ainda mais o peito da prima afastada. Enchendo-a de ar quente e balelas. No chão novo em folha, soavam os pingos da baba do pai, ou assim lhe parecia, todo feliz e excitadinho com a atenção daquela estranha. Os homens são todos uns parvos, mas o seu próprio pai, à sua frente e da mulher? Que miséria! Tão degradante. A outra aproveitava cada gargalhada ou preço alto de um qualquer material para se inclinar sobre o pai, para lhe agarrar o braço e a mão.
– Vê como é macio… Repara como é soberbo…
De repente, falava quase exclusivamente com o seu pai, toda debruçada sobre ele, com muita linguagem corporal à mistura. O pai até já começava a sentir um certo embaraço, mas apenas por haver tanta audiência, pois parecia-lhe, para seu enorme horror, que ele se sentia lisonjeado com aquela vulgaridade. Iriam aqueles nojentos convidar os pais para uma troca de casais? Seria essa a sua onda? Seriam swingers? Ninguém mais via o mesmo do que ela? Do cimo dos seus 15 anos, seria a mais clarividente? E que número era aquele de andar uma trupe de gente de divisão em divisão a esmiuçar a intimidade daquele casal de anormais? Qual o interesse em ver todos os recantos da casa de outra pessoa? Que lhe interessava a ela, ou aos pais, de resto, conhecer todos os meandros da aspiração central ou da caldeira elétrica, ou da tubagem de PVC, e das subtelhas e do pladur… O pretensiosismo baratucho no auge. Os pais parecendo estar a ver o mundo a cores pela primeira vez. Completamente fascinados com tudo aquilo. Aquilo era um pesadelo e todos pareciam hipnotizados. Estávamos agora a ver a despensa. A despensa! Não dava para acreditar! Cada passo a mais no interior da intimidade daquela casa era uma peça de roupa que se tirava, num macabro striptease como nunca tinha imaginado. Já via os anfitriões completamente nus e ainda não tinham visto tudo. Como acabaria tudo aquilo? Não tinha curiosidade quanto a esse fim. Sabia apenas que estava no seu limite.
Nisto, paragem para um pequeno lanche. O pesadelo era completo. A prima afastada solicita a ajuda exclusiva do pai, para que se possam conhecer um pouco melhor, enquanto deixa o paspalho do marido a entreter a mãe. Aquilo era sinistro. Decide ir ver o que se passa com a prima afastada e o pai. Gargalhadas. Subentendidos e a estúpida a servir-se de qualquer pretexto para tocar no pai, ‘inadvertidamente’, claro. Apetecia-lhe dizer um monte de barbaridades, colocar toda aquela gente na ordem, mas por qualquer motivo não conseguia sequer abrir a boca. Como se, no fundo, achasse que não deveria interferir com a loucura daquele mundo de adultos malcomportados. Queria muito humilhá-los. Fazer-lhes ver quão patéticos eram. Envergonhá-los seriamente. Temia, porém, que qualquer faísca acabasse por resultar mal para os seus próprios pais, já que os outros pareciam ter expediente para sobreviver a isso e muito mais. Seria apenas isso, ou aguardava para ver os limites de tudo aquilo? E porque agiam todos como se ela nem estivesse presente?
Voltou para junto da mãe, onde lhe pareceu que também o idiota simpatizava em demasia com a sua ela. A mãe lá se mantinha fiel ao seu papel de tola-mor. Subserviente, parecendo não ver ou entender aquilo que era dito nas entrelinhas. Rindo por tudo e por nada. Rindo especialmente de assuntos sérios e parecendo não perceber as piadas expressas enquanto tal. A estupidez engordava a olhos vistos e caminhava a passos largos para a obesidade mórbida. Morreriam todos ali naquele momento. Imaginava que, anos mais tarde, quando lhe perguntassem do que tinham morrido os pais, ela recordasse este momento como o do óbito, sendo a causa um episódio agudo e intratável de estupidez e sordidez. A mãe poderia levar com o deplorável rótulo de doença prolongada, sendo esta a idiotice crónica e aguda.
Desistiu. Não se podia permitir durante mais tempo – um segundo que fosse – ser mera observadora de toda aquela insanidade. Como percebeu que não tinha estofo de interveniente, entendeu que o seu lugar teria de ser outro, mas jamais o de observadora passiva. Afastou-se. Caminhou para o jardim. Sentou-se na relva. Cabeça à sombra, corpo ao sol. Tentou abstrair-se. Fazer de conta que estava noutro local, com outras pessoas, vivendo qualquer outra coisa que não aquela demonstração de imbecilidade adulta.
Nisto, pressente uma presença. Uma respiração. Uma sombra, talvez. Abriu os olhos humedecidos pela raiva. Era a mãe. Durante um dolorosamente prolongado silêncio disseram tanta coisa que as palavras calavam. A mãe lança-lhe a mão. O desafio expresso para que se levantasse. Agarra-lhe na mão. Ajuda-a a levantar-se. Passa-lhe o braço pelo ombro e segreda-lhe.
– Não te preocupes. Ao teu pai disse que ela tem SIDA, e a ela disse que o teu pai é impotente há já cinco anos. Quanto ao idiota, desse dou eu bem conta.
O óbito da mãe tinha sido declarado manifestamente antes de tempo. Teria de alterar a data da morte da mãe. E não se podia esquecer de colocar na sua biografia que a mãe era uma verdadeira rockstar.
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