Ainda ninguém sabia. Não saber é bom. Só assim se dá continuidade à normalidade das coisas. Quando se sabe mais do que o suposto, não se age com normalidade. Age-se em função daquilo que se sabe, quase extemporaneamente, ludibriando ignorâncias, saltando etapas, respondendo fora do contexto comum, visando coisas que a mera banalidade do dia a dia não permitiria almejar, e provocando desfechos em função do conhecimento que se tem, ou apenas tendo em conta coisas mais que se julga saber. Assim, não saber era bom.
Rita ainda não sabia, pelo que tudo fez dentro da normalidade. Daquilo que costumava fazer em circunstancias semelhantes. Era apenas mais um dia. Relativamente igual a uma mão cheia de outros dias. Acabava de acordar num quarto que lhe era estranho, numa cama que não era a sua, rodeada de cheiros que não os seus, ao lado de um homem de quem se recordava – e deu graças a Deus por isso –, mas que provavelmente não voltaria a ver. Verificou melhor, não fosse, com o álcool e a excitação da noite, ter entrado no carro de um colega de trabalho e não daquele outro tipo incrível que lhe lançava pequenos lampejos de ‘Não te amo, mas agradas-me’ de um dos cantos do bar. Um ensaio, ou melhor, a antecâmara de qualquer coisa mais que poderia acontecer. Noutros tempos, chamar-lhe-iam corte, mais tarde engate, hoje tão somente, ‘estamos sós e apetece-nos, bora lá’. Pois essa coisa aconteceu e não com um qualquer colega que teria de voltar a ver, o que era sempre chato e embaraçoso, mas sim com o tipo incrível da noite anterior. Não gostava de se meter na casa de um estranho – na cama, não via o menor inconveniente, mas estar essa cama no interior de toda uma casa desconhecida, era uma ideia que a assustava. Exceto, como fora o caso, quando milimetricamente acertava na dose ideal de álcool. Aí, os critérios dilatavam-se um pouco e uma casa era apenas uma casa, desde que não fosse a sua, claro está, que isto de levar estranhos para casa, parecia-lhe arriscado demais. Mais ainda numa época de terroristas e fenómenos desumanos. Estas eram noites de exceção, até porque tinha de ter cuidado com o rim, um transplante que lhe salvara a vida há poucos anos e que tinha no álcool um inimigo identificado. Entendia, todavia, que sem uma certa normalidade, a vida não valia a pena. Apenas privações não permitiam essa tão desejada normalidade, pelo que, de quando em vez – mais de quando em quando do que de vez em vez –, instituía uma noite de desregramento, em que fazia de conta que nada havia a salvaguardar além da felicidade do momento, a cedência aos caprichos e desejos de um corpo são. Questões que minimizavam o mal-estar de momentos como aquele que vivia naquele instante. O de acordar ao lado de um homem que, seguramente, não voltaria a ver, numa casa que não lhe era familiar, rodeada de cheiros e coisas que não eram seus.
Olhou aquele homem, que dormia em silêncio, durante algum tempo. Sem se mexer, quase sem respirar, pois não queria passar ainda pelo constrangimento de conversas abaixo de banais com um homem que não conhecia. Enfim, lembrava-se da paixão e do desejo da noite passada, mas isso não diz tudo sobre quem quer que seja. Quase diz nada, a bem do rigor. Não queria saber sobre ele mais do que isso. Isso bastava. Isso chegava. Chegava igualmente a hora de se escapulir em surdina. Sorrateiramente. Já o fizeram antes, com sucesso. Havia prática. Havia memória sobre como agir. Foi, mais uma vez, bem-sucedida. Estava na rua. De novo livre. De novo ciente dos cuidados a ter com o seu corpo e a sua vida. Com aquele órgão precioso, que estimava e cuidava como se dele dependesse, já que, de facto, dele tudo dependia. De regresso à sua normalidade. Sentia, porém, uma certa e inexplicável relação com aquele homem incrível. Ele era, por assim dizer – que nestas e noutras coisas, para não dizer em todas, fugir à verdade de nada adianta –, melhor do que o habitual. Estava alguns furos acima das suas conquistas de rotina. Não se considerava feia, mas nunca tinha conseguido um tipo tão fantástico. Costumava ficar-se por segundas-feiras, por vezes conseguia uma quinta-feira, mas este fulano era um domingo de sol em período de férias. Fisicamente, ele era um knockout completo, e mesmo a conversa que tinham mantido tinha sido divertida, descomprometida e inteligente. Mas não podia alimentar idiotices. Não obstante tudo o que as mulheres tinham conquistado, é certo e sabido que não se pode namorar com um tipo com quem se dormiu na primeira noite, após um típico caso de engate. Sem reservas ou falsas moralidades. Eles nunca respeitam verdadeiramente essas mulheres. Essa era, para Rita, uma regra de ouro.
Porém, ao sair dali, da casa daquele estranho, sentia que deixava parte de si mesma para trás. Bebeu um café numa pastelaria na esquina do prédio de onde acabava de sair, de forma excitantemente clandestina. Numa mesa reconheceu Isabel. Amiga de curta distância, mas com quem tinha tudo e mais um par de botas em comum. Isabel vivia noutra zona da cidade, mas estava a regressar de férias e fazia tempo até serem horas decentes de acordar o irmão, com quem tinha deixado a chave de casa, para que ele tratasse dos seus três gatos, uma tartaruga e seis peixes. Um nano zoo que sempre lhe conhecera. Rita inventou uma insónia e o desejo de caminhar de madrugada pela cidade. Aproveitaram a ocasião e o facto de ser fim de semana prolongado para agendarem um jantar para essa noite. Como ainda ninguém sabia, despediram-se com normalidade.
Filipa ainda não sabia, pelo que cozinhava com afinco desde a cinco na manhã, dividindo por caixas herméticas as várias refeições, almoços e jantares, de que precisaria. Uma cansativa rotina de fim de semana, mas que lhe cedia mais descanso e tempo livre durante toda a semana seguinte. Já só lhe faltava terminar um panelão de sopa, verdadeiro ‘desenrasca’ em qualquer menu caseiro que, depois de repartida em doses individuais, congelaria. Depois disso, por volta das 8h, lá saía com Migas, a sua cadela, para o jogging em que ambas eram viciadas. Ainda na escada do prédio, cruzou-se com uma jovem mulher que a impressionou imenso. Não era linda, mas tinha um encanto sedutor, um ar sonolento de quem deve horas de sono à cama, mas que lhe ficava divinamente. Um rabo de cavalo às três pancadas, seguramente para disfarçar amassos da almofada, que a ausência de duche denunciava. Apaixonava-se por este tipo de mulheres, não necessariamente belas, mas que transpiravam independência e uma certa graciosidade. Percebeu, todavia, que esta não jogava na sua equipa, além de que, no que aos afetos diz respeito, Filipa estava de bem com a vida, ou quase. Calculou que aquela mulher fosse mais uma das conquistas de Francisco, o vizinho do quinto esquerdo, um tipo fantástico e absolutamente bem-sucedido no ministério das relações nacionais e internacionais, um diplomata na complexa área da sexualidade. Até Migas se tinha apaixonado por ele, com quem fazia sempre questão de ficar quando Filipa se ausentava em trabalho, já que as férias as passavam juntas. Francisco nada se importava. Sem ciúmes, Filipa achava mesmo que Migas, quando apareceu abandonada, ainda cachorra, à porta do prédio, procurava Francisco. Sim, os cães sabem procurar os donos certos, acontece que o notívago do vizinho não tinha regressado a horas e Filipa avançou com a óbvia adoção daquele pedaço de pelo cor de chocolate arruivado e língua cor de rosa. Migas concordou, mas a sua reação quando conheceu Francisco, o inquilino do quinto esquerdo, foi surreal. Parecia que estava a rever o dono após um longo interregno. Migas e Francisco amavam-se.
Em vez de se melindrar com a situação, Filipa, fotojornalista, percebeu que tinha encontrado a solução ideal para as suas frequentes ausências, já que Francisco era um tipo simpático, o único no prédio de quem se tinha tornado amiga. Mais estranha foi a reação de Migas a esta mulher que, de forma clandestina, quase parecia, descia agora pela escada e não pelo elevador, com os sapatos na mão e sussurros na voz. Migas atirou-se-lhe praticamente para os braços, lambendo-a onde calhava e onde conseguia. A mulher enterneceu-se e abraçou-a sem parar, deixando que a cadela desse largas àquela inesperada declaração de amor. ‘Também te adoro, miúda!’ repetia a mulher em voz baixa, forçando a cadela a descer as escadas. Era, sem dúvida, uma das ‘dormidas’ de Francisco. Sim, esta era um dos acasos e não uma conquista. Estas não saíam em silêncio, às escondidas, antes de ele acordar e sem antes tentarem um segundo encontro. Esta mulher não procurava uma réplica do terramoto da noite anterior. Não buscava um parceiro. Tal como Francisco, ela procurava aventura, sexo descomprometido ou qualquer outra coisa, mas não um possível ‘marido’. Apesar das olheiras, descortinou-lhe uns olhos verdes refrescantes e esclarecidos. Já na rua, a troca de afetos com Migas foi um pouco mais esfusiante, para não dizer escandalosa. Parecia que a cadela tinha entendido, sem urgência de palavras, a necessidade de silêncio e discrição. Logo que a porta do prédio se fechou atrás das três, Migas latiu, pulou, atirou-se para as pernas daquela estranha e lambeu cada centímetro de pele à mostra. Meio embaraçada e surpreendida, já que Migas não era a rainha do social, menos ainda com mulheres, Filipa foi-se desculpando e tentando afastar Migas de maiores embaraços, mas também a mulher estava deliciada com aquele amor à primeira festa.
Dirigia-lhe mimos iguais aos que Filipa lhe dispensava: chocolate, canela, gengibre… Talvez também aquela mulher gostasse de cozinhar, como ela própria. Quando finalmente se conseguiram despedir, Migas ficou parada a olhar a mulher, que acabou por entrar no café da esquina. Pareceu tranquila, ao perceber que não tinha ido longe. Só então partiu a correr atrás da dona. Talvez Migas fosse a única que já soubesse.
Ainda ninguém sabia, menos ainda o despistado Rodrigo. Passava horas fechado na sua casa/atelier, onde o cheio de tintas, óleos, solventes e removedores de tinta, aguarrás e óleos de linhaça distorcia mais realidades do que muitos opiáceos. Rodrigo seria muito provavelmente o último a saber, mas quanto a isso ainda nada se sabe. Nunca antes se preocupara com isso, mas a verdade é que sempre que Rita estava para chegar, tentava colocar em ordem o caos colorido em que vivia.
As bisnagas reuniam-se por cores, uma parada de pincéis ordenados por dimensão e grossura pareciam aguardar uma revista militar e o chão era mais ou menos desimpedido, para que a circulação não fosse tão penosa. Seria isto amor? Rodrigo não sabia bem. Tinha tendência a confundir sentimentos díspares, pelo que aquela necessidade de agradar e não parecer louco aos olhos de Rita, podia ser apenas respeito, ou temor, já que a frontalidade dela não deixava de ser assustadora e ele era mais do género metafísico, pouco dado a confrontos ou conversas sobre a vida real. Talvez por serem tão distintos –, ela com o seu discurso muito politizado e reivindicativo, sempre muito feminista nas suas posições, sempre muito na defensiva, e ele sempre a viajar por galáxias pouco exploradas e sem paralelo com o mundo quotidiano –, aquela relação inesperada era um balão de oxigénio para ambos. No mundo de Rodrigo, Rita podia descansar, baixar a guarda e limpar as armas e o ângulo reto da sua arquitetura, enquanto ele aproveitava para abrir uma pequena janela sobre o mundo lá fora e apanhar um banho de realidade, mas sem nunca se encharcar muito, que não era grande adepto de limpezas demasiado purificadoras. Ela era péssima a posar para ele, mas o seu corpo e expressão eram únicos, além de que dizia coisas que ele jamais ouvira acerca de qualquer assunto. Parecia um jornal diário. Ele ouvia, ou nem por isso, e deixava que o pincel viajasse ao ritmo dos movimentos de Rita, da cadência do seu ininterrupto discurso, já nem se preocupando com o plano inicial para a tela. Logo perceberam o lado terapêutico e catártico daquela relação e assumiram que deveriam tornar-se amigos e deixar a semiformalidade dos primeiros encontros, que eram mais do tipo artista-modelo.
Claro que Rita cedo desmontou esse clima inicial, com a sua curiosidade, quase descaramento. Quis saber tudo sobre Rodrigo. Se era de Lisboa, ser era gay, se era de esquerda, se era crente, se respeitava as mulheres, se gostava do pai, se gostava de desporto… Rita era pidesca na forma minuciosa com que perguntava e se imiscuía nos mais ínfimos e recônditos lugares da vida pessoal de Rodrigo.
– Fico nua à tua frente, tenho de saber quem és, não te parece?
Esta a forma como definiu e balizou zonas de ação no tabuleiro em que jogavam parte das suas vidas, duas vezes por semana. Ele ficava com a nudez dela. Ela podia desnudá-lo por dentro. Parecia justo. Ela fazia com que parecesse justo. Ele aceitou as regras. Gostava de a ver nua, a ela, que parecia mais forte a cada peça de roupa que retirava. Sem pudor. Sem vergonha. Para Rita, o corpo não era motivo de vergonha, de intimidação, apenas as ideias e as ações que estas determinavam podiam ser vergonhosas, baraços e embaraços para os homens. A forma do rosto, a cor da pele ou do cabelo, a altura, os feitos ou defeitos físicos não tinham expressão humana. Não definiam a pessoa. Por isso, tanto lhe aparecia depilada como não, maquilhada ou não, não se apoquentava com a celulite que, não obstante a sua magreza, já lhe espreitava as nádegas, ou os cabelos prateados que Rodrigo achava perceber na púbis de Rita. A forma descomprometida com que ela aceitava o seu próprio corpo e o exibia, tornava sedutor e atrativo cada potencial ‘defeito’. Tudo nela era natural, assumido e fascinante no parecer de Rodrigo, até então mais habituado a jovens na casa dos 20 anos, com ares de perfeição e superioridade e nádegas tão firmes e empinadas quanto os seus narizes e mamas de copas variadas, talhadas por um qualquer Photoshop clínico.
No corpo de Rita, nada era perfeito, mas tudo era sedutoramente natural e imperfeitamente sexy. Claro que Rodrigo fez avanços. Claro que ela os recebeu de bom grado, deixando claro que aquele não seria o início de um romance. Não foi, mas também não era uma simples amizade assexuada, se é que estas existem de verdade. Eram, sem dúvida, amigos, que tinham sexo casual, sempre que lhes apetecia, mas sem obrigações ou rotinas. Dias havia em que Rita mal abria a boca. Dias havia em que ele agradecia esse silêncio. Dias havia em que ele não pintava… Eram íntimos e, felizmente, ainda não sabiam.
Ainda nada sabendo, Rita discorria sobre as cidades e as casas, delas falando como seres vivos, orgânicos e inteligentes, com vontades e caprichos próprios. Entidades cuja autonomia tinha excedido os propósitos de acolher e bem receber as sociedades que nelas habitavam. Havia agora que domá-las, domesticá-las, humanizá-las, com novas formas de ordenamento, de fluidez. Falava das exigências estéticas e ecológicas das novas casas, da urgência de deixar o prêt-à-porter e aproximá-lo mais do taylor-made, da alfaiataria, não obstante a necessidade de acolher cada vez mais e cada vez mais diversificados cidadãos. Dizia-se apaixonada pelas pequenas e grandes praças e jardins nos quais, defendia, todas as ruas deveriam desembocar. Áreas de libertação do olhar. Pontos de fuga urbanísticos, ajardinados… Falou tanto e de forma tão apaixonada que excedeu o tempo da sua aula, o que só percebeu quando o professor de outra cadeira irrompeu pelo anfiteatro. Já era hábito. Rita falava de arquitetura como quem fala da vida, do amor e do sexo, numa qualquer mesa de café, junto de amigos. Os alunos não perdiam as suas aulas. Saiu da faculdade a correr. Ia jantar com Isabel.
Isabel chegou um pouco antes e não queria acreditar na coincidência. Ao balcão do bar do restaurante, aguardando mesa para jantar, estava o seu irmão. Apenas nove meses mais novo, Rodrigo era um sol na sua vida. O único que, tal como ela, entendia a necessidade de viver no improviso, no alinhavo diário, pespontando apenas onde necessário, quando necessário o seu tecido existencial, de trama laça e padrão caleidoscópico. Claro que, no caso de Rodrigo, um artista boémio, tudo isto, mais do que compreensível, era até expectável, quase um clássico. Mas este entendimento da vida servia igualmente bem Isabel, jovem psicóloga, que todos os dias via e aceitava a inconstância das certezas, a ténue linha que separa o haver do não haver, existir de não existir, ficar sóbrio ou decidir enlouquecer. Um lugar onde os erros podem custar vidas, mantém o espírito em permanente alerta e a vontade de ser feliz uma lei a cumprir a cada instante. Sem demoras. Sem adiamentos. Amanhã fica demasiado longe. Isabel mantinha os seus planos para o agora. Ela e o irmão eram uma espécie de seres voláteis, sem grande peso ou opacidade. Aves num mundo de rastejantes. Por isso sobressaíam, sobrevoando os demais com uma leveza inspiradora e contagiante. A contrapartida de tudo isto? Nem sempre eram levados muito a sério pelos burocratas e tradicionalistas do quotidiano. Se isso os incomodava? Rigorosamente nada. Rodrigo ria e falava animadamente com uma miúda aos pés de quem dormitava um cão enorme, de pelo apetitoso. Antes mesmo de falar ao irmão, não resistiu a fazer festas naquela montanha de pelo ruivo e sedoso.
Rodrigo abriu um dos seus irresistíveis sorrisos, sempre o mesmo de quando via a irmã. Tinha por ela verdadeira admiração, pois cedo percebeu que nem todos os irmãos desenvolvem aquele tipo de intimidade, mais ainda quando de sexos opostos. Eles eram tudo um para o outro, mesmo que isso não implicasse confidências íntimas e visitas diárias. Mas estavam lá. Sempre. Um para o outro, ou para aquilo que o outro solicitasse. Abraçaram-se e seguiram-se as apresentações. Rodrigo tinha despertado o interesse de um galerista, cuja reputação de descobridor novos talentos levara um conceituado site de artes a querer entrevistar o promissor pintor. A jornalista tinha sido bastante profissional e demonstrava inteligência e conhecimentos, todavia, a verdadeira empatia tinha acontecido com a louca da fotógrafa. Entre uma banheira com tinta, saltos a furar telas e outros tantos disparates, os dois acabaram o dia sem grande vontade ou necessidade de se separarem. Jantarem juntos pareceu o mais óbvio.
– Namorada?
A pergunta de Isabel foi-lhe sussurrada ao ouvido, enquanto, esfregando-lhe o cabelo ondulado, a irmã o beijava efusivamente.
– Não – limitou-se a responder Rodrigo. Seguiram-se as apresentações. Filipa, a fotógrafa, Migas, a cadela. Migas, todavia, já gania de entusiasmo a tentar atirar-se para cima de uma mulher que acabava de entrar. Era Rita, cujo cheiro Migas reconhecera. Antes mesmo de ver Isabel, Rita derreteu-se de novo com o entusiasmo daquela cadela de quem se recordava com igual carinho. Quando se ergue, a primeira pessoa que vê é Rodrigo, que abraça fortemente e com quem começa um diálogo que parecia não ter fim.
– Mas, já conheces toda a gente? – pergunta a divertida Isabel, cuja presença Rita ainda nem tinha notado.
– Como assim, toda a gente? – Questiona Rita.
– Bom, já conheces o meu irmão e até a cadela da amiga do meu irmão.
– O Rodrigo é teu irmão? Como? Poso para ele há que séculos, como é que só agora percebemos isso? Não te devo ter feito todas as perguntas certas, Rodrigo! – acrescentou ciente da sua fama de curiosa obsessiva.
Menos detalhada parecia ser a forma como justificava já conhecer Filipa e Migas, ainda que apenas de raspão. Um amigo. Um encontro casual nas escadas. Um amor ao primeiro latido… Filipa preparava-se para ajudar a encobrir o caso de Rita com o seu vizinho, até porque o seu radar lhe dizia que entre Rita e Rodrigo poderia haver algo mais do que poses e tintas, quando Rita, sem qualquer problema, acaba por referir uma noite de sexo com um quase-estranho de cair para o lado. Todos riram do caso e também do seu à-vontade ao denunciar-se sem reservas ou receio de críticas.
Acabaram por solicitar uma mesa para quatro, cinco, contando com Migas, que se aninhou debaixo da mesa, onde podia tocar os pés de toda aquela sua gente e, assim, dormitar, sem receio de que pudessem sair sem que desse por isso. Naquele ambiente descontraído, inebriante e intimista soltaram-se revelações e confidências. Filipa revelou que namorava com uma mulher mais velha. Rodrigo assumiu que já tinha tido uma experiência homossexual, a qual tinha odiado. Rita confessou ter uma paixão platónica pelo cirurgião que a tinha operado, a qual a levava, muitas vezes sem razões clínicas que o justificassem, a consultas cujo único motivo era rever aquele homem que lhe salvara a vida. Isabel sentiu-se de menos, por não ter nada à altura para confessar. Filipa quis saber a que tinha Rita sido operada. Ao saber da sua história de um dador anónimo, perguntou-lhe se não tinha curiosidade em conhecer o verdadeiro salvador e se não estaria a transferir para o médico a gratidão que poderia sentir por um estranho que doara parte da sua saúde a outro ser, por mero altruísmo. Lembrou-se depois do seu vizinho Francisco e o sangue gelou-lhe nas veias. Perguntou a Rita se era arquiteta e Rita, divertida, perguntou-lhe se era vidente. Filipa não conseguia prosseguir. Entre os brindes de vinho e a diversão de tanta conversa, julgaram que estaria a ter uma indigestão. Filipa lembrou-se ainda de outra coisa, mas não conseguia recordar-se bem do quê. Desmaiou. A noite acabou com o grupo nas urgências do hospital onde Rita tinha sido operada, já que tinha feito inúmeros conhecimentos entre a equipa médica que a acompanhava há já tantos anos. Telefonou ao seu cirurgião e a uma das enfermeiras-chefes. Isabel contactou o nome que, no telefone de Filipa, estava assinalado como número de contacto prioritário. O que se seguiu foi hollywoodesco.
Sem perceber bem porquê, Rita vê a mãe chegar ao hospital, translúcida e aflita a perguntar por Filipa. A seu lado, de mão dada à mãe, aquele estranho giríssimo em cuja casa tinha dormido e que vivia no mesmo prédio onde conhecera Filipa e Migas. Migas, cuja trela Rita segurava, desprende-se e corre ao encontro do homem. Tudo se torna bastante confuso na mente de todos os envolvidos, mas as atenções viram-se para o cirurgião que percorre a sala em busca de Rita, sua mais fiel paciente.
Neste preciso momento, ainda nenhum deles sabe exatamente tudo. Mas neste preciso momento, já todos desconfiam de coisas que ainda não conseguem identificar. Lá dentro, numa maca, nas urgências, Filipa saberá quase tudo, mas não está em condições de fazer todas as associações necessárias. Aquelas que mais tarde todos compreenderão. Que Filipa ama a mãe de Rita. Que Rita vive à conta do rim de Francisco, o solidário vizinho, fiel depositário de Migas e do semissegredo do amor de Filipa com uma mulher mais velha e casada.
O primeiro a descair-se e a desvendar parte do enredo é o médico, surpreendido por ver juntos os seus dois pacientes. Ele, o dador que quis permanecer anónimo. Ela, a recetora que ainda hoje lhe pergunta se tem notícias do ‘dono’ do seu mais precioso rim. Os olhos de Rita e Francisco cruzam-se, voltam a reconhecer-se. Os olhos da mãe de Rita evitam os da filha. O cirurgião sorri ao reconhecer Rodrigo e este pisca o olho à irmã, que mesmo sem mais explicações, percebe que o médico foi o seu caso homossexual. Isabel, mais uma vez, fica de fora de tanta coincidência, mas percebendo os metros de fita que um bom guionista ou realizador não retiraria de tudo aquilo. Rita, que nunca parava muito tempo num mesmo assunto, percebeu que aquilo, o espaço que todos ocupavam naquele instante, era uma das suas praças. Uma desembocadura afetiva. Um sítio privilegiado de encontro e reflexão. Um espaço ajardinado. Deveriam todos sentar-se e apreciar a paisagem, ou retomar o passo e seguir caminho? Entreolharam-se em silêncio. Agora, já todos sabiam.
Belo e sedutor! Estou encantado com a sua escrita.
Muito obrigada, Carlos Godinho.