Sabia que não podia contar a quem quer que fosse. Teria de ser o seu segredo. Teria de morrer antes de o revelar, se preciso fosse. Quem acreditaria naquilo? Aquilo que até a si soava a loucura? Como dizê-lo sem parecer que tinha ensandecido de vez? A sua credibilidade já tinha os seus dias. O que seria dela se contasse, a uma única pessoa que fosse, aquilo que lhe estava a acontecer? Nem Kafka, nos seus mais insanos delírios, iria na sua conversa. Ninguém estava preparado. Nem ele próprio. Era mais plausível acordar transformado numa carocha ou mesmo num balde de tinta azul-índigo do que contar aquilo. Aquilo. Apenas ‘aquilo’. Assim se referia o próprio Albino ao assunto que tomava, agora, conta dos seus dias. O dia todo e toda a noite. Não conseguia desligar-se ‘daquilo’. Só mesmo se estivesse louco – aí, sim, verdadeiramente louco varrido – é que poderia ignorar ou esquecer, temporariamente que fosse, aquele tema. Era como uma dor. Nem o hábito faz esquecer uma dor. Pode aprender-se a viver com ela, mas ela está lá. Omnipresente. Omnisciente. É uma coisa que se faz notar, e que nela reparamos, mesmo quando desejamos que ela desapareça. Que suma de vez. Mas ela insiste. Persiste e, cada vez mais presente, torna-se num caso sério. Aguda. Crónica, e toda a nossa vida passa a girar em torno dela. Da dor. No seu caso, do segredo. Era um segredo. Uma loucura. Um assunto de uma outra dimensão. Recente, mas lancinante.
Num fim de noite, enquanto limpava o balcão do bar, secava e arrumava os últimos copos, e recolocava nas respetivas prateleiras as garrafas encetadas nessa noite, Albino apanhou o susto da sua vida. Julgava ter fechado a porta do bar. Julgava estar sozinho. Foi, por isso, em sobressalto que se virou quando ouviu aquela voz rouca e profunda atrás de si. Algum bêbedo esquecido na casa de banho do bar. Devia ter verificado melhor.
– Amigo, está na hora de ir para casa. Já estamos fechados há mais de uma hora. Tem carro? Precisa que chame um táxi?
Albino estava mais do que acostumado a clientes difíceis, embriagados, destemperados e até violentos, mas quando se virou, nada o podia ter preparado para o que viu. Ainda que de contornos bem visíveis, o homem não era opaco, ou compacto, ou… humano. Aquilo que encarava era uma figura translúcida. Achou que era ele quem tinha bebido de mais, ou que estava na altura de mudar de lentes, ou que estava, mesmo muito, necessitado de férias, ou apenas de dormir. Esfregou os olhos, mas era ainda fantasmagórica aquela imagem que se lhe dirigia. Um tipo encorpado, vestido de forma meio exótica, mas nada que fosse absolutamente inédito no seu bar, onde cabia este mundo e o outro, em termos estéticos ou outros. Era um dos segredos do seu bem-sucedido bar: a diversidade da clientela. Uma fauna eclética e maioritariamente pacífica. Todos se sentiam lá bem. Não era um clube de nicho, para punks, nerds, roqueiros, motares, solitários, betos, hipsters ou quaisquer outros. Era apenas um bar cool, com um design e uma decoração contemporâneos, entre o industrial e o rústico, com bom ambiente e uma atmosfera descontraída. Tanto se podia ir para lá apenas para ficar a um canto a ouvir música, como podia ser o espaço eleito para um primeiro encontro. Não foi, portanto, a estranheza daquela roupa – muito embora a cartola fosse um pouco excessiva –, entre o démodé e o futurista, quase a roçar uma espécie de steampunk, nem o enorme porte do homem os causadores de todos os arrepios que sentia no corpo, e sim a falta de foco. Aquele gigante era quase transparente, ou isso, ou estava desfocado, como uma certa personagem de Woody Allen. Queria ignorar aquilo que lhe ia na mente, mas apenas lhe ocorria que aquilo correspondia à imagem infantil e cinematográfica que se constrói de um… fantasma.
– Não sou um fantasma, pá. Sou o génio do álcool.
Também lia pensamentos? Albino começava a ficar, mais do que assustado, verdadeiramente aterrado com aquela experiência. Molhou a cara ali mesmo, no lavatório do balcão. Contrariamente ao que intensamente desejou, enquanto mantinha os olhos fechados e esperança no coração, aquela figura ou imagem – nem sabia muito bem como designar ‘aquilo’ –, ainda ali estava, quando ergueu de novo o rosto. Sentado ao balcão, agora. Sorriso nos lábios. Cabeça meio baixa.
– Ofereço-lhe uma bebida e depois terá de se ir embora.
Ainda que meio pateta, esta era a forma de normalizar a situação. Talvez tratando ‘aquilo’ como sendo humano, ele se tornasse humano e agisse como um e acabasse por se ir embora. Não sabia que de outra forma agir, ainda que, por absurdo que pareça, soubesse que estava a ser ridículo. Um homem transparente não apanha táxis, não tem casa para onde voltar, nem provavelmente beberá copos em bares. Mas, que comportamento ter perante tal coisa? Como lidar com fantasmas ou o que quer que fosse que ali estava à sua frente?
– Ó, homem, não sou um fantasma, já lhe disse, e sempre vivi aqui, não há outro sítio para onde voltar. Sair daqui só será possível após terminar mais esta missão. Se a falta de um nome o inquieta, por aí além, chame-me Eu-Génio.
– Ok, ok. O que quer, então Eu-Génio? Porque está aqui?
Albino tentava agir com cautelas, sem saber se estas seriam as cautelas certas a ter em casos destes, se é que havia outros casos daquele género e suspeitava que não. Ou as pessoas se limitavam apenas a calá-los devido aos mesmos receios que o assolavam, a si? De que o achassem louco? De que estivesse realmente louco?
– Por, finalmente, me ter libertado de uma vida imerso em álcool, concedo-lhe três desejos. Pense bem naquilo que verdadeiramente quer, pois eles realizar-se-ão. Pela minha experiência, e olhe que é longa, sugiro-lhe que pense durante uns bons dias. Avalie a sua vida. Pense em três coisas que verdadeiramente deseja.
– Coisas materiais?
Albino arrependeu-se antes mesmo de concluir a curta pergunta. Tinha passado de homem assustado perante algo em que dificilmente acreditava, para negociar desejos concedidos pelo génio do álcool. Hilariante. Quão infantil e ganancioso pode um homem ser? Aquilo devia ser o epítome do disparate. “Não acredito em ti, ao ponto de nem saber bem se existes, mas daquilo que prometes dar-me, podem ser valores materiais?” Riu-se. O outro riu-se com ele, uma vez que parecia ouvir ou ler os pensamentos de Albino.
– Não é assim tão disparatado, não te apoquentes. Não é esse, afinal, o princípio de todas as religiões? Acreditar às cegas? Confiar no vazio? Andar às escuras? Dar um salto de fé?
Ia responder, mas, o homem translúcido já lá não estava. Albino assustou-se. Seria aquilo um esgotamento? Claro que não. Sentia-se ótimo, mas não seria assim, que todos os loucos se sentem? Nunca é o louco a entrar num consultório e a dizer ao médico. “‘Sotôr’, interne-me, pois estou a perder o juízo. Drogue-me, que perco a razão.” Os loucos não sabem que estão a enlouquecer. Na visão de um louco, o mundo é que está doente. Eles continuam a ser eles, inteiros, racionais, cheios da sua lógica. Assim, estaria ele, Albino, a ensandecer? Por outro lado, pensar em tudo aquilo, conseguir elaborar esses raciocínios, não seria um sinal claro de que estava lúcido? Inquieto, assustado e sem sono, subiu ao andar de cima, onde vivia, para se dedicar a uma noite em claro, preenchida com os mais bizarros pensamentos e considerações.
A ser verdade, e não sabe bem porquê, mas colocava a si mesmo essa estúpida e insana possibilidade, não seria de fazer o que o translúcido lhe dizia? Não deveria parar para pensar em três coisas que verdadeiramente desejava e que poderiam mudar, para melhor a sua vida? Que homem poderia descurar um sortilégio destes? Não valeria a pena considerar essa possibilidade, ainda que remota, como sendo real? Quem arriscaria perder tal coisa? Três desejos. Três coisas. Apenas três, mas que se realizariam. Isto tomando em conta o que dissera o translúcido… Era a primeira vez que tomava consciência disso. Ao outro, em vez do mais óbvio, que seria transparente, chamava-lhe Trans-Lúcido. Lúcido. Seria uma forma de, ao admitir a existência de um fantasma, Albino assumir, no seu subconsciente, que estava a perder as suas faculdades mentais? Ao introduzir lucidez no nome do outro… Um freudiano deliraria de felicidade com aqueles seus pensamentos, parou para reparar.
Se não estava louco, poderia – outra hipótese que se colocava em plena insónia – estar perante o seu alter-ego? Ter capacidade de se desdobrar? Em vez de louco, já se estava a colocar no extremo oposto, o de ser especial. Precisava de dormir. Mas como conseguir tal proeza, depois daquilo que acabava de experienciar? O mais prático, e talvez mais repousante, fosse mesmo pensar nos seus três desejos. Nunca pensara nas coisas nesses termos. Em quantificar coisas exatas e específicas que pudessem melhorar a sua vida de forma permanente, para todo o sempre. Quer dizer, a ter de pensar em algo, que fosse, de facto, qualquer coisa ou coisas que tivessem longevidade, que se mantivessem no tempo, no futuro, como ancoragem de felicidade e bem-estar. Não iria pedir um robô de cozinha, ou um carro, nem esgotaria um desejo numa viagem. Tinha de, ainda que tudo não passasse de um sonho ou partida do além, ou aquém, tinha de, continuava a matutar, pensar bem no que realmente desejava. Diz, quem estuda estes assuntos, que as pessoas, para serem verdadeiramente felizes, precisam apenas de três coisas na vida:
Alguém a quem amar
Algo em que se ocupar
Algo que almejar
Por esta ordem. O mesmo é dizer: um amor, um trabalho e um sonho.
Era um bom ponto de partida, ainda que deixasse de fora a saúde, sem a qual, qualquer um dos anteriores não se aguentaria. Amar na saúde e na doença, pois apenas na doença, poucos se aguentam e poucos o permitem, menos ainda em situação profissional. Por fim, que sonho acalenta um doente que não apenas o de ficar bom, ou, senão completamente curado, pelo menos melhor? Ou seja, quando não se tem saúde, ela ocupa todos os recantos da existência. Tê-la, ou melhorá-la é tudo aquilo que importa. Torna-se no elemento aglutinador de toda uma vivência. Lembrou-se, depois do que sempre ouvira o seu avô dizer-lhe. De que um homem precisa apenas de saúde e paz, que do resto, correrá atrás. Palavras sábias e poéticas, que sempre lhe fizera sentido, mas que agora, que as proferia, soavam-lhe a discurso de candidata a Miss Universo. Divertiu-o o facto de estar a pensar em evitar embaraços frente a uma figura que não podia existir. Existiria?
Tinha de organizar as suas prioridades. Fazer algumas listas, mentais que fossem. Não sabia quando voltaria a dar de caras com o Trans-Lúcido, como já lhe chamava, mas caso ele voltasse a surgir-lhe, gostaria de já saber o que solicitar ao indivíduo. Saúde e Amor, sem dúvida, por esta ou pela ordem inversa. Ao cabo de vários dias de intensa e imersiva introspeção, tinha chegado a estes dois itens, que já conviviam no fundo da sua wish list. O assunto, porém, não era pacífico. Desejar paz, não aglomeraria saúde e amor? Não seriam eles sinónimos de paz? Um homem não se sente em absoluta tranquilidade quando corpo, mente e espírito estão em sintonia? Não bastaria paz? Não lhe pouparia ela dois desejos? Sentiu-se a agir de forma vil, sovina. Seria a saúde e o amor incluído na paz, versões básicas daquilo que poderia vir a receber caso os pedisse isoladamente?
– Que idiota!
Repetiu isto um milhão de vezes para si próprio. Sentia-se estúpido pelo tempo que dedicava ao assunto, quando, com o passar dos dias e a ausência da ‘miragem’ daquela outra noite, começava a duvidar de que realmente aquilo tivesse acontecido tal como o memorizara. Podia, de facto, estar louco. Começava a desembaraçar-se do seu próprio embaraço pessoal quando, numa quinta à noite, com a casa cheia, se depara com o Trans-Lúcido. Agora que o susto daquela primeira noite começava a ter a mesma consistência da massa corporal da miragem, ela surge-lhe à frente. O seu olhar estarrecido não passou despercebido aos dois funcionários que o acompanhavam atrás do balcão.
– Albino, estás pálido, pá. Sentes-te bem? Faz uma pausa. Nós tomamos conta disto. Sem stress.
Não sabia como agir e estava prestes a denunciar a presença do outro, quando o autodesignado génio o informa de que apenas ele o pode ver e ouvir. Tal e qual como os pastorinhos, pensou o confuso Albino. Assustado e com o coração a rebentar-lhe no peito. Aquilo era a sério? Estaria mesmo a acontecer-lhe aquilo? Aquilo. E o que era aquilo? Não podia ser o génio do álcool. Que raio de coisa era aquela?
– Achei que estava na hora. Já passaram duas semanas. Pensaste nos teus desejos? Já percebi. Volto quando estiveres sozinho. Logo que feches a porta.
Albino ainda ouvia as últimas palavras e já o outro se tinha sumido, numa espécie de breve e suave explosão, como aquela a que se assiste quando rebenta uma bola de sabão. Surreal. Pegou numa garrafa e enfiou-se no escritório. Bebeu mesmo pelo gargalo. Achou que, se estava a enlouquecer, bem podia estar bêbedo. Não faria diferença. Enquanto ‘aquilo’ se mantivesse no mano-a-mano, parecia-lhe mais fácil de aceitar. Mas, em público, ao estilo milagre ou dentro do género mau guião de telenovela… Olhou para a garrafa. Tinha feito desaparecer um génio e metade de uma garrafa de whisky. Nada mal. O que se seguiria? Antidepressivos? E se aquilo fosse estratégia do génio que, para ter menos trabalho, quisesse assustá-lo ao ponto de ele desejar coisas mais acessíveis, como sanidade? Para isso, bastaria que o génio deixasse de lhe aparecer, o que não era lá um grande feito para um génio, além de que seria o que o Trans-Lúcido mais queria: libertar-se de Albino e despachar aquele assunto.
– Já que vieste para aqui, achei que podíamos falar agora.
O homem transparente estava de volta.
– O que és tu? Não és humano e não podes ser um génio, e logo do álcool. Por amor de Deus, quão idiota me julgas? Estou louco, é isso, certo? Começo a ver coisas…
– Vocês, humanos, são demais! Sempre a lógica e a matéria. Lá porque não alcançam mais do que isso, não quer dizer que não existam outras coisas em redor, mesmo por baixo dos vossos narizes e das quais jamais se dão conta. Nascem e morrem cegos para todas as peças que julgam não encaixar nesse vosso miserento puzzle. Como sabem que peças encaixam, se não têm a foto completa? A que vem na caixa? Ainda assim, gostam de se armar em Deus o tempo todo. Tão patéticos! Queres os desejos ou não? Há por aí muita criança no mundo doida para que eu lhes apareça, mas como não lhes é permitido beber, são poucos os casos em que as consigo ajudar.
Albino tinha, até aí, mantido o espírito aberto, não fosse dar-se o caso de aquilo, por obra sabe-se lá de quem ou do quê, ser uma possibilidade real. Três desejos, sempre são três desejos. Quem desperdiçaria tal coisa em nome da lógica e da sanidade? Mais valia louco e feliz, certo?
Passou a noite a discutir e a filosofar com aquela louca entidade. O bem, o belo, as desigualdades, as mulheres, o sexo – é verdade, parece que também existe entre génios, desde que compatíveis. O do álcool estava apenas destinado aos génios dos estupefacientes, a morte – esta não ocorre aos génios – e tudo o mais que encontraram no caminho daquela conversa. Falou com ele sem parar durante uma semana. Quando se apercebeu, estavam a conversar, mas já não no escritório do seu bar. Estava em plena clínica de de desintoxicação, inserido num plano intenso de reabilitação de alcoólicos. Os empregados tinham-no encontrado a falar sozinho, ou melhor, a conversar com uma garrafa de Johnny Walker, podre de bêbedo e, como ele parecia não os ouvir, chamaram bombeiros e médicos… Estes, poucos resultados conseguiram. Enquanto isso, ele não parava de falar sozinho, mas como se interpelasse alguém, a quem chamava de génio. Internamento. Claro.
Quando percebeu o que se passava, entendeu que não havia génio, nem desejos, apenas álcool na sua cabeça. Não o tinha percebido. Como não tinha dado por isso? Logo ele, mestre do autocontrolo. Acatou tudo como um bom aluno. Antes isso do que estar louco, preso ou no hospital, congratulava-se. Isso ajudou-o a superar todos os passos e a superar-se a si próprio. Tornou-se um dos elementos de suporte do seu grupo de tratamento, ajudando outros e empenhando-se em sair dali o mais rápido possível. Não se pode dizer que fosse abstémio, mas nunca tinha bebido compulsivamente, o que lhe teria dado para beber até à exaustão? Não admira que visse génios. Uma coisa era certa, Alguém escreve mesmo certo por linha tortas. Foi na clínica que conheceu a mulher com que sabia que se casaria. Isabela. Médica. Linda. Foi correspondido. Em troca de um pedaço de pesadelo, tinha encontrado o amor da sua vida. Não se podia queixar. Era um amor tão pleno, profundo e completo que se sentia em paz com o universo. Voltou ao bar. Há meses que não entrava lá. Receava uma recaída. Um deslize. Tinha agora tanto a perder, que não podia correr riscos. Entrou. Tinha saudades. Gostou do cheiro. Das sensações que o lugar sempre lhe trouxera… Julgou que desmaiava. Esparramado num sofá, a um canto, batendo o pé a compasso no chão, Trans-Lúcido aguardava-o. Parecia feliz por vê-lo, como se fosse um reencontro agendado, ao qual ele, Albano, chegava atrasado.
– Não vamos recomeçar com a conversa sobre a veracidade da minha existência, certo? Já ultrapassámos essa parte. Recordas-te?
A voz daquela ‘coisa’ tranquilizava-o. Como se, após meses a lidar com estranhos, esta voz fosse família, conforto. Aceitou a loucura. Sentou-se frente ao ‘génio’, aceitando que deveria ter bebido, que estaria ébrio e a delirar, que em breve o levariam de volta para a reabilitação, que…
– Descansa, nada disso acontecerá. Não vais perdê-la. Cumpro sempre as minhas promessas. Vim aqui como combinado. Não te recordas?
O que responder? Não estava certo de coisa alguma. Pareceu-lhe familiar, mas tão familiar como algo que se sonhou e não necessariamente como algo que se viveu.
– Só aqui estou para me despedir, e certificar-me de que estás satisfeito com os teus desejos.
Tentou lembrar-se da sua infantil lista de três desejos: Amor (check), Paz (check) e… Qual era o terceiro? Levantou o olhar, tentando recordar-se. Ao baixar os olhos, uma viagem que alongou pois não sabia se havia de agradecer ou de mandar bugiar aquela alucinação, Trans-Lúcido já lá não estava. Já não era. Teria imaginado? Teria inventado tudo aquilo? Desde o início? Teria de procurar ajuda?
– Calma, ainda aqui estou.
– Onde? Deixei de te ver…
– Com quem falas?
Preocupada com aquele regresso ao bar e achando que seria bom Albino ter companhia nesse primeiro momento, ou apenas porque o amava demasiado e quis perceber a sua reação ao retomar a vida anterior à desintoxicação, a mulher foi ao seu encontro, alterando os seus planos à última hora. Albano vira-se, assustado, transpirando e a sentir-se à beira de um colapso. Conseguiria ela ver o génio do álcool? Não o vendo, perceberia que ele estava louco? Sentia que ia morrer. O sacana do génio. Realizava-lhe desejos para depois lhos retirar. Para, no fim, o matar. Aquilo era um destino pior do que o de Dorian Grey. Trasn-Lúcido era Lucifer. Tinha-se vendido. Ia morrer. Não aguentou a pressão, aquela sensação de fim de linha. Contou tudo à mulher que amava. Que lhe tinha aparecido o génio do álcool, que lhe tinha concedido três desejos, que dois já se tinham cumprido, que ele era transparente e usava uma cartola como o boneco do whisky, que ela, se calhar, nem o amaria de verdade, que teria sido o génio a fazer com que ela o amasse…
Ao longe ouvia a voz, em tom clínico, da mulher. Aguardavam o resultado das análises. Ela falava numa recaída. Estava particularmente interessada em saber qual o grau de alcoolémia. A voz dela estava cada vez mais longe. Albino percebia que o tinham sedado, para acalmar o seu estado de ansiedade. Percebia a lentidão com que tudo lhe chegava. Sons, sensações, a própria luz. Parecia vê-la viajar até chegar a si. Deu por si à beira do célebre túnel de luz, descrito nos casos de quase morte. Tinha chegado a sua hora.
– Não sejas dramático, Albino. Recompõe-te. Estás a olhar fixamente a luz do teto e não a do Paraíso. Não vais morrer. Já te esqueceste do teu terceiro desejo?
Ainda a voz de Trans-Lúcido. Albino, em pleno torpor, recordou-se do seu terceiro desejo. Isso mesmo. Morrer de velhice. Uma forma de ter uma vida longa e, minimamente, saudável num único desejo, pois que alguém demasiado débil jamais chega a velho. Albino teria de aguardar o fim da sua vida, para perceber se tudo tinha sido verdade ou se tinha estado bêbedo o tempo todo… De novo a voz da mulher.
– Como não tem álcool no sangue? Podem repetir as análises, por favor?
Moral da história:
Nunca compre peixe às segundas-feiras, pois os pescadores não vão para o mar aos domingos.
Deixe um comentário