Sentia um frémito no corpo. Um bem-estar que estava próximo da felicidade. Exultava boas vibrações. Uma espécie de formigueiro de prazer, apenas porque se sentia vivo, porque estava terminado mais um dia de trabalho e regressaria a casa para junto da mulher e dos miúdos. O sorriso deles era o seu bem mais precioso. Estava mesmo a pensar em cometer uma loucura e comprar flores para a mulher e uns bolos para os miúdos. Eram o centro da sua vida. Uma vida simples, é certo, mas uma vida boa, ou perto disso. Ultimamente, um pouco mais distante disso, por vezes, bastante distante disso. Entrou na pastelaria/café, onde se reuniam alguns colegas em fim de expediente, para ver dos bolos e beber uma merecida cerveja. Uma ou duas. Nesse dia não encontrou colegas, apenas os empregados do costume, que lhe trouxeram de imediato o pedido de sempre. Mais tempo ficava para pensar. E tinha muito com que se entreter, que a sua cabeça não parava.
A mulher andava estranha. Implicativa. Embirrenta, até. Nada do que ele fazia estava certo. Punha defeito em tudo. Qualquer coisa era uma arrelia. Um desconcerto. Uma zanga… Tirava-o do sério e ele lá tinha de ficar, nesse sítio estranho, fora do sério, onde ele próprio não se reconhecia. As coisas azedavam com uma facilidade trágica. A toalha fora do sítio, a boca que ele abria ao comer… Tinha de respirar pelo meio, que raio! Até os miúdos andavam sensíveis, sempre de olhos esbugalhados, a espiá-lo pelas frestas das portas como se fosse um estranho. Foi precisamente isso que o alertou. Foram os olhos ligados em máximos dos miúdos que iniciaram as primeiras palavras na folha em branco da desconfiança, que ele vinha a olhar há já algum tempo. Parecia que quanto mais feliz se sentia, mais ressentimento encontrava em casa. Até o cão fugia dele, aproximando-se apenas a medo, todo a tremer com a cauda entre as pernas, após insistência moderada da sua parte.
Primeiro, pensou que ela fumava ganzas durante o dia, às escondidas, o que justificaria as suas oscilações de humor, as suas arrelias constantes e a falta de energia para o sexo e até os atrasos no jantar. Em tempos, ambos se divertiam com uma ervazita, era certo, mas isso fora quando eram novos e despreocupados. Já não era o caso. Ambos se tinham licenciado em aflições e azedume. Era a vida a acontecer, pensava ainda sem grandes preocupações. A vida a acontecer. E a vida tem muitas formas de acontecer, um pouco mais macabras para os pobres, bem entendido. Eram as contas por pagar, os ordenados a minguar, a escola e roupa dos miúdos a absorver o pouco que entrava e os anos a vestirem-se de intolerância, perante todos os sonhos sonhados e jamais concretizados. A vida acontecia-lhe, é certo. Acontecia-lhe na forma bizarra e perversa da negação, de tudo o que não fazia. Uma espécie de negativo de vida. As viagens que não se realizavam, as festas para as quais nem se era convidado, as alegrias que cresciam tristezas, o futuro que nascia passado. Era o tudo a transformar-se em nada. Mas desde que o amor ainda vingasse um pouco, que os corpos se encontrassem por acaso, numa dobra dos lençóis, que a alegria assomasse ainda que por segundos num ensaio de sorriso… Que bom que tudo isso ainda seria. Mas, ultimamente… Tomaria ela algo mais do que erva ou haxixe? E a quem é que raio ela os compraria? Não há propriamente uma secção no supermercado dedicada às drogas leves e as amizades do secundário, onde difícil teria sido passar pelos intervalos da droga, também a vida as tinha consumido há muito. A não ser que lá no trabalho dela… Cocaína?
Não lhe parecia, a avaliar pela eterna má disposição e falta de energia da mulher. Ela era um verdadeiro aterro de negatividade. Heroína, também lhe parecia excessivo, além de que faltaria dinheiro para alimentar tal vício. Se bem que ela podia andar a ganhar bastante mais do que levava para casa e ele andar cego. Tinha de abrir a pestana para a contabilidade doméstica, mas só de pensar nisso, cansava-se e desistia antes mesmo de avançar para o deve e haver das finanças caseiras. Ela sempre gostara de beber, recordava-se, agora já na estação de metro, a caminho de mais uma das muitas etapas que o levavam a casa. Vodka era a sua perdição e foi precisamente isso que lhe ocorreu a ele pedir ao balcão daquele café tipo kitchnet, numa espécie de homenagem à mulher. Tchim-tchim, disse num faz de conta que obrigou alguns pescoços a virarem-se na sua direção. Tinha mais o que fazer do que dar troco àqueles falhados, que se sentem compelidos a beber antes de ganharem coragem para voltar a casa. Logo naquele dia em que se sentia tão feliz. Se bem que o sentimento começava a esbater-se com os pensamentos em que já se emaranhava. Ela tinha deixado de beber quando engravidou da primeira vez e nunca mais deu conta de que tivesse voltado. Mas, quer dizer, quem sabe? A bem da verdade, apenas estavam juntos algumas horas no final do dia, quando os afazeres eram tantos que mal se encontravam, ou logo de manhã, quando a azáfama familiar estava ao rubro. Se ele próprio há anos que colocava vinho tinto no frasco de vidro castanho escuro onde ela julgava guardar o betadine, porque não conseguiria ela esconder vodka ou gin ou mesmo aguardente num qualquer dos milhões de frascos, garrafas e demais recipientes da casa?
Até mesmo em pequenos frascos de perfume devolutos, entre as camisolas de uma qualquer gaveta. Como podia jurar que ela não bebia, que não consumia drogas ou que não tinha um amante? Parou. Esta última possibilidade só agora era disparada na sua mente, mas acionou muito mais dúvidas, receios e ódios do que qualquer uma das duas primeiras. Um charro? Que diabo, apetece a qualquer um. Uma linha de coca, já nem tanto, mas também não queria colocar-se no papel de juiz, menos ainda de carrasco. Todavia, um amante?! Não apenas explicava muita coisa como apresentava justificação para todos os comportamentos aberrantes dela. Não acertava uma conversa com ele, não concordava com uma que fosse das suas ideias ou sugestões, os seus horários não coincidiam com os dele, os seus corpos não se encontravam no espaço e no tempo necessários aos mínimos olímpicos de um casal, já nem diria apaixonado, apenas um casal em comunhão de bens e afetos… E quando tal acontecia afastava-o, pior, repelia-o, alegando que ele tinha mau hálito, que não a forçasse, que não a violentasse, que não sabia o que estava a fazer… Não que não sabia. Foi com ele que ela aprendeu tudo. Só podia ser um amante. Vigiá-la-ia. Parou na estação dos barcos, ainda em Lisboa. Precisava de equacionar algumas possibilidades e deixar as ideias assentarem, antes de regressar a casa. A bem de todos, precisava de pensar, calma e friamente. Parou numa tasquinha muito simpática perto da estação. Pediu tinto. Algumas ocasiões exigem tinto.
Recordava-se como tudo vinha a arrefecer nos últimos… Ia dizer meses, mas se assim o entendesse preparava-se apenas para estar a mentir a si mesmo. As coisas estavam mal há anos. Tentava recordar-se dos primeiros sinais de mal-estar. Diria que desde o nascimento do filho mais novo, logo, há cinco ou seis anos. Ela nunca desejou a criança. Não se sentia preparada para mais uma gravidez – com as quais bastante sofria, reconhecia isso –, nem para mais fraldas e infantários… A lista de ‘nãos’ era infinita, mas ele não permitiu que abortasse. Proibiu-a terminantemente. Era um filho seu, que diabos! Claro que mais um filho bebé em casa, para mais uma criança de saúde frágil, sempre a caminho dos médicos, um visível somatório de despesas, o cansaço acrescido… Tudo isso fez com que a relação se ‘desalicerçasse’, mas tudo voltaria a encontrar o seu caminho. Estava certo disso. Acreditou nisso. Já no barco, deu de caras com o Arsénio, vizinho da frente. Olhou-o como se fosse a primeira vez que estivesse a ver aquele homem. Para os seus quase 50 anos, tinha um corpo todo musculado. Mantinha a farta cabeleira preta e não era, de forma alguma, mal-apessoado. Gelou. Era a ele que a mulher recorria sempre que alguma coisa corria mal lá em casa. Desde uma avaria no esquentador a uma torneira a pingar. Certa vez apenas conversavam na escada do prédio, quando ele chegava a casa. Era um tipo muito, muito prestável. Como nunca lhe tinha ocorrido tal coisa? O Arsénio, não querem ver? Enquanto o negrume invadia a sua mente, as imperiais faziam o mesmo ao seu estômago e não só. Uma onda de racionalidade ia-se instalando no seu cérebro. Começava a juntar todas as peças do puzzle. Sentia-se como se visse pela primeira vez. Tudo bem debaixo do seu nariz. Demasiado óbvio para ser visível. Aqueles dois devem andar a comer-se sabe-se lá há quanto tempo. Ali mesmo. No próprio prédio, quem sabe, na sua própria cama. A cabra! Quem desconfiaria, pois se ambos têm o mesmo endereço, podem coincidir sem suspeitas no mesmo elevador, saem no mesmo piso. Podem até entrar para a mesma casa que jamais alguém dará por isso. Genial. Simples e genial. Apetecia ir-lhe às trombas. A ela claro. Porque ela é que tinha feito promessas perante Deus e não só. Ela é que lhe devia respeito. O Arsénio estava apenas a surfar a onda, a aproveitar o que a providência colocava no seu encalço, como qualquer homem faria. Sobre isso tinha tudo bem esclarecido na sua cabeça. Ainda bem que a viagem até casa era longa e lhe dera tempo para aclarar ideias e ver aquilo que lhe andavam a esconder. Traído. Ele. Um marido excelso, apaixonado, trabalhador. Um homem que só tinha olhos para a família. Tudo aquilo que ganhava lhe entregava. Um marido fiel que só tinha um trilho: emprego-casa, casa-emprego. E ela no bem bom com o Arsénio, vizinho da frente. Musculado e bem-parecido. O barco atracou violentamente contra o cais, deixando-o ainda mais zonzo. Não podia mais fazer de conta que não sabia aquilo que agora era tão óbvio. Que era traído. Enganado. Era o cornudo. Não podia admitir tal coisa.
– Tens tinto, Zé?
Claro que o Zé tinha tinto. Não tinha ele outra coisa há mais de quatro décadas. Mas era a forma habitual que sempre usava para pedir um copo ao Zé. Nesse dia, parecia que todos congeminavam contra si. Até o parvalhão do Zé o enganava, servindo-lhe copos miserentos, que pareciam ter encolhido com a chuva do ódio que sentia por dentro. Ou seria essa chuva a deturpar o seu olhar? Mandou vir com o raio do Zé. Pagava o mesmo que os outros, exigia a mesma quantidade. Quando o Zé lhe disse que estava na hora de ir para casa, olhou-o bem fundo nos olhos e compreendeu tudo. Já todos sabiam que a mulher era uma vadia. Mandavam-no para casa para ver se ele chegava a horas de os apanhar em flagrante. De os confrontar com a afronta. Com o delito. O crime. Seria punida, a grande cadela. Entrou no autocarro. Acha que dormitou. Não se recorda. Uma placa. Sarilhos Pequenos. Estava perto de casa, mas aí já seriam Sarilhos Grandes, não duvidava. Não conseguia meter a chave à porta, tal era o seu estado de nervos. Alguém abriu do lado de dentro. O raio dos miúdos, perfilados com aqueles olhos esbugalhados. O cão a farejar-me para, de seguida, fugir com um latido sussurrado. Também eles deveriam saber. Deviam ser todos cúmplices da sua tristeza e vergonha. Que um raio os levasse a todos. Agora é que iriam ver quem ele era. Traidores. Dissimulados. A primeira a levar seria a mulher, mas tudo o que mexesse merecia porrada. Apenas levantou o punho cerrado e já uma gritaria tal que parecia estar alguém a morrer. Bando de dramáticos. Amadores. Deviam estar a querer que o amoroso do Arsénio aparecesse para os salvar. Ali, na sua casa, o único salvador era ele. Não admitia tais honrarias a ninguém mais. O primeiro golpe, o segundo… Ela gritava. Os miúdos berravam. O cão uivava. Não sabe o que aconteceu a seguir. Caiu. Perdeu os sentidos. Deve ter passado muito tempo. Acordou gelado. A cara esborrachada sobre o mármore feio do chão da entrada. Estava todo dorido. As canelas mordidas, as mãos arranhadas, o peito ferido. Aquele mau humor da mulher estava a dar com ele em doido.
Já nem dormia na sua própria cama. Acordou todo vestido, babado e ferido no hall. Era o fim da linha. Tomou um banho rápido. Não sabe como, mas estava na hora de voltar ao trabalho. Tinham de falar seriamente logo à noite, quando regressasse do trabalho. Não saberia ela o quanto a amava? Levantou a tampa do autoclismo. Enfiou lá para dentro a mão, o braço e metade da manga do casaco. Era uma situação desesperada. Retirou de lá uma garrafa que levou à boca. Sem tempo para tomar o pequeno-almoço, tinha de ter alguma coisa no estômago. Sentiu-se melhor. Muito melhor. Apressou-se. Logo, tinha de os fazer ver o quanto os amava. Caramba! Como é que não percebiam isso?
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