Alice Bárbara assinava o blog do momento. A bíblia do lifestyle. A cartilha do bem-estar. O caderno de estilos dos fashion lovers. Seguida por cerca de quarenta milhões de pessoas perdidas na vida – que necessitavam de dicas diárias sobre o que deveriam tomar ao pequeno-almoço, que exercício físico específico lhes permitiria depois eliminar todas as calorias ingeridas nessa mesma refeição (vomitar era o exercício mais recomendado), que roupa combinar para o dia que tinham pela frente, como lidar com empregadas de loja empertigadas e todo um ror de necessidades básicas –, Alice Bárbara era o verdadeiro canivete suíço do saber viver. Em bem e com estilo, claro está. Que isto, para se viver, basta estar-se vivo, mas saber viver não se limita ao ato de respirar nem dança apenas ao ritmo cardíaco. Há todo um intrincado mundo de pequenas e fundamentais nuances, que vai desde os tons admissíveis no guarda-roupa para essa semana, até ao legume que não pode evitar, sob pena de ficar completamente out. E estar out é bem pior do que estar knockout, ou mesmo morto, como se sabe, sendo igualmente doloroso e três milhões de vezes mais humilhante.
Tinha inventado – ou antes, alguém inventou, e ela apenas se apoderou de um pedaço – um universo paralelo, onde apenas aos realmente contemporâneos é permitido viver. Um local privado e exclusivo, fechado a sete chaves, a que apenas os mais ávidos de trendsetting poderiam almejar, desde que na posse das poderosas passwords que escancaravam os portões desse outro planeta de virtudes e bem-estar celestiais, acessível apenas a gente gira do novíssimo jet setter, como se todos os restantes mortais fossem antissociais ou potenciais sociopatas. Quinoa, sementes de chia, beterraba e o divino sésamo eram alguns dos termos que abriam, de par em par, as portas de batente duplo do seu covil de maravilhas ofuscantes. Alice Bárbara tinha a vida que poderia ter pedido a Deus, caso fosse crente e o tivesse desejado. A religião, todavia, era complexa e exigia tempo, o qual não lhe sobrava, entre tanta apresentação de novos cosméticos, inaugurações de restaurantes, degustações e harmonizações, desfiles e performances várias, onde a sua presença era vital, sob pena de qualquer um desses eventos passar despercebido, ou seja, de nem chegar a ser. Claro que negava a existência a muitas coisas, através de um criterioso escrutínio assente no princípio universal do pim-pam-pum ou num outro não menos omnipresente no elemento humano: a vingançazinha. Um convite em que o seu nome fosse mal escrito, ou um comentário menos favorável, ou aquela ponta de inveja por não ter sido ela a pensar em algo fabuloso, de que todos agora falavam noutros blogs concorrentes…
Começava a necessitar de assistentes em várias frentes, para conseguir gerir toda a informação necessária. Por tudo isso, Deus sempre ficou de fora da sua guest list, até porque Deus tem lá a sua forma passivo-agressiva de criticar e julgar e Alice Bárbara preferia ocupar ela própria esse patamar de jurada. Os outros que lhe prestassem vassalagem e se lhes devotassem, que ela tinha tanto mais o que fazer. Ó, se tinha!
Ali Babá, nome do seu blog, e petit nom pelo qual era igualmente conhecida na blog e vlogosfera, determinava aquilo que merecia viver e aquilo que jamais deveria ter visto a luz de um pixel, sequer. Nem precisava de criticar ou arrasar, bastava-lhe que ignorasse para que a coisa fosse um nado morto. Temida pelas grandes marcas e madrasta para as pequenas, Ali Babá lá ia inventando tendências e modismos. Defendia, neste minuto, que a base de maquilhagem líquida deveria temperar saladas de rúcula selvagem, pelas inúmeras vantagens que isso implicava para a cútis do rosto. Era a loucura. Todos os restaurantes e chefs de serviço a reinventarem ementas e a adquirirem quilos do precioso líquido, o qual, bem o sabiam, seria solicitado já na próxima refeição desse mesmo dia. Criou-se uma profissão que se resumia a ter alguém a ver e a ler apenas tudo o que Ali Babá atirava para a fornalha do seu blog, cujos ecos faziam estremecer toda a rede internáutica. De Singapura ao Butão, da Baixa da Banheira ao Luxemburgo, de Natal à… Quaresma. Ali Babá era tão cool que chegava a comentar coisas que, de facto, não existiam. Claro que os mais atentos, e com dinheiro para investir, apressavam-se a registar a coisa, colocavam inventores, criativos e marketeers a criá-la e, com sorte, era um sucesso, exceto quando Ali Babá, no dia seguinte, decidia que a ‘coisa’ já estava ultrapassada. Era uma lotaria, um nervoso miudinho constante, mas as marcas não se podiam permitir estar desatentas, pois mais valia correr o risco de ser ridículo do que não ser, de simplesmente nem existir para ao público. Sempre eram quarenta milhões de seguidores! Quem podia virar costas a esse volume de potenciais consumidores, ou arriscar sair das suas graças? De apenas 10%, que fosse? Vendados, como se jogassem à cabra cega, lá iam todos encarneirados atrás do que ditava Ali Babá.
Como em qualquer recanto onde se instale, o poder apodrece, degrada, corrompe. De deusa do firmamento, Ali Babá não tardou a assumir o papel de tirana demoníaca, administrando uma generosa conta de pequenas, médias e grandes vendettas contra o que quer ou quem quer que fosse, desde que tal contentasse os seus malévolos caprichos. Certa vez, contra uma pobre coitada que havia elegido um vestido remotamente parecido com o seu para uma festa a que ambas foram. Outra, armou-se em juiz divino contra um apresentador de um canal televisivo periférico, por este desconhecer o teor do seu blog. Chegou ainda a perseguir um político de longa e profícua carreira que sobretaxou as bagas goji, sem as quais, qualquer pessoa contemporânea não passa hoje em dia, como já é referido em dicionários de nutrição. Sentiu-se insultada e só parou quando houve sangue, isto é, quando o pobre coitado foi expulso do parlamento. Não se perdeu grande coisa, um político é um político, mas serve isto o propósito de ilustrar o poder de Ali Babá e do seu omnipresente blog. De início, uma página bem-disposta e tonta sobre uma certa forma de vida descontraída, mas comprometida com princípios de bem-estar, de amor aos animais – cuja carne ou qualquer sucedâneo da sua pele, pelo ou carne, era cabalmente rejeitado -, de compromisso com o planeta e de respeito por todas as formas de vida. Com o tempo, claro está, e porque as suas ideias e conceitos entraram numa certa ortodoxia por parte de fiéis e acérrimos seguidores, Alice Bárbara compreendeu o seu poder e aceitou a sua superioridade em relação aos restantes seres e o respeito apenas se manteve por tudo aquilo que lhe permitia alimentar a sua ambição e potenciar o seu poder. Além de que, casacos de pelo à borla, sempre lhe pesavam menos na ‘consciência’. Não tardaram os disparates, as patetices e aquela dolorosa dose de ignorância, pois que quem não sabe inventa, já se sabe.
Determinou que a marca de cosmética Make Up For Eva se destinava apenas a mulheres que se chamavam Eva, o que levou a marca à falência. Defendeu que mais importante do que uma vaca que ri, seria uma vaca que rimasse. Lá se destronou a primeira e se inventou a segunda, com os pacotes de leite todos em métrica decassilábica. Que o Cristiano rói no Naldo, apenas porque o Naldo deixa. Lá se organizou uma marcha pelo Naldo. Instituiu que apenas se podia comer carne branca se vestido de vermelho ou carne vermelha (já se tinha deixado da cena vegan, há mais de uma semana e vivia o deleite do T-bone), se vestindo azul-celeste. Coisa inofensiva e comum em qualquer blog diário – não é fácil alimentar a besta e manter os seguidores atentos e interessados. Acontece que os disparates eram aceites como regra e as patetices seguidas à letra, como qualquer lei tão básica quanto as da física. Tornou-se numa verdadeira lei da ‘gravidade’. Intocável. Irremediável. Insuportável. Não se pode culpar a pobre miúda. Quem manteria a humildade, com um batalhão de 40 milhões de seguidores a corroborarem todo e qualquer disparate e replicando-o com rigores de ortodoxia? É como ter o mundo como séquito, aceitando como norma que se é o Rei Sol Todo Poderoso e ainda o Espírito Santo. Tudo aquilo em que tocava, virava fortuna.
Tudo mudou naquele dia, aquele em que a revolução copérnica assolou a galáctica existência de Ali Babá e um novo paradigma ditou que, afinal, o mundo não girava em seu torno. Havia outro astro-rei. Inicialmente, nem tinha dado por ele, longe que gravitava numa pequena e ainda desconhecia galáxia. Um pequeno e discreto blog, absolutamente simplório e despretensioso, quase escrito à máquina, como diria Ali Babá com escárnio, se por lá tivesse passado. Não passou, mas outros, sim. Tantos que, num ápice, era abertura de telejornal. Um único autor. Uma miúda sardenta, com roupa que a própria tricotava, com fio que fabricava a partir de roupa velha que outros deitavam fora. Pintava o cabelo com pigmentos naturais. Cultivava a sua própria horta e comia coisas como couve-portuguesa. “Que nojo”, diria a esse propósito a bem mais francófona Ali Babá, toda ela mais couve-de-bruxelas do que rábano. Esta nova estrela mão defendia o que quer que fosse. Não ditava uma moda. Não determinava um trend. Limitava-se a usar o seu site como diário de atividades. Nada dizia, apenas mostrava o que fazia e de que forma o mundo em seu redor beneficiava e se moldava a si. Chefiava pelo exemplo. Cantava para as árvores. Alimentava e acolhia todos os animais que a queriam seguir. Era uma espécie de hippie fora de tempo. Extemporaneidade que lhe dava um charme retro ultramoderno e afetivo, com cheiro a sopa da avó e doces memórias de outros tempos, que cativava um cada vez maior número de seguidores, adeptos do back to basics, encantado e seduzidos pelo regresso à simplicidade, honestidade e decência da vida de outros tempos.
Um dia, o tal fatídico dia, Ali Babá entra no seu backoffice, coloca a sua password – Abre-teSésamo, para quem ainda não sabia – e dá por falta da habitual movida de comentários e de mensagens. Entra nas suas páginas das redes sociais e nada mexe. Tudo está igual há mais de uma hora. Corre a ver quantos seguidores mais tinha desde ontem e o ‘marcador’ dispara em sentido inverso. Há pessoas a deixar de a seguir. Os seus posts têm menos alcance. As estatísticas entram a pique no vermelho. Só podia ser um hacker. Ligou para o seu webmaster. Ordenou isto e mais aquilo. Ele que visse o que se passava, ou nunca mais teria emprego. Ele que recuperasse os desertores, todos e mais alguns, ou previa-lhe uma lenta e dolorosa morte por asfixia, enquanto vestia uma camisa amarela completamente démodé com a qual seria capa de tabloides no dia seguinte ao seu ‘desaparecimento’. Ele que se assegurasse de que ela era a maior… Tinham entrado na sua gruta, estavam a roubar-lhe o seu bem mais precioso, os seus seguidores. Era um assalto… Ele tinha que… Ele tinha que…
O escândalo normal, também, neste tipo de situações desesperadas, de vida ou de morte nas redes. Foi enquanto aguardava pela reposição dos factos que percebeu o frisson que rondava este novo blog. O desenxabido Blog De Notas. Assim. Tão em sonso quanto isso. Blog de Notas. Nele, tudo era de uma simplicidade franciscana. Espartano em trends, nulo de criatividade, nem um patrocínio à vista… Apenas mais uma, pensou a arrogante blogger-da-moda-já-não-tanto-na-moda. Naquela primeira manhã, Ali Babá perdeu 40% dos seus patrocínios, uma vez que nem um post em mais de duas horas era quase sinal de morte. Estava a enlouquecer, enquanto a outra quase suplantava os seus seguidores em menos de nada. A miúda estava em todo o lado, sempre muito malvestida, sem noção do que estava a dar, sem menção aos hot spots do momento, sem a cor de cabelo indicada para aquela hora do dia. Dava entrevistas na rua, em parques e jardins, enquanto passeava os mais velhos e feios cães do planeta, também eles com trelas e coleiras tricotadas. Uma coisa pobre e medonha. Assustador! Não tardou a perceber que era aquela a sua sucessora. Uma impertinente. Não obstante o ar de pobre, não aceitava patrocínios. Falava em disparates como liberdade e que o estilo, qualquer estilo, teria de ser uma criação de autor, algo próprio e identitário, de cada um. Não queria ser apelativa. Queria apenas viver a sua vida à sua maneira, deixando claro a todos que todos podemos fazer a diferença em nome de um mundo melhor. Até porque todos somos diferentes. Apelava à não cópia. Toda uma filosofia transcendente. Sobre originalidade, honestidade, naturalidade e liberdade. Dizia que apenas falava por si. Não queria marcas a determinarem o que diria ou como o faria. Apenas relatava o seu modo de vida autossuficiente e uma maneira de viver que, não sendo comunitária, estava muito virada para os outros, aqueles que lhe estavam mais próximos, família ou apenas vizinhos. Havia algo de primitivo e de muito perigoso em tudo aquilo. Ali Babá não entendia metade e a outra parte, a que julgava compreender, desprezava-a. Sentia-se roubada. Era como trocar uma princesa por uma mendiga. O mundo estava louco. Era o regresso da gata Borralheira. Um horror!
Nisto, liga o seu webmaster, ela que estivesse descansada. Estava tudo ok com o seu site. Pelo menos agora. Antes, sim, o blog estava cheio de problemas e de bugs. Ela que não se preocupasse, pois mantinha os mesmos seguidores de sempre, 40. Quarenta milhões, corrigiu Alice Bárbara com voz enjoada. Não. Apenas 40. Os mesmos que conseguiu no primeiro mês, há dois anos, quando a sua aventura online começou, apenas o mostrador do seu template assumia mais zeros do que era suposto. Um erro de origem, um vírus de formatação, mas que já estava corrigido. Um algoritmo encalhado. Ali Babá gelou. No instante em que os reais números viessem a público, era o fim da sua carreira. Ele que voltasse a instalar os bugs, ele que mantivesse tudo como estava, ele que fizesse Control Z até tudo estar como antes, ele que ‘desformatasse’ o que fosse preciso… Ele que falasse com o “algo ritmo”… Não era possível. Tudo estava automaticamente online, além de que ele não pirateava… E ainda lhe dava lições de moral. Que mais vale contar com poucos mas bons, que a sua vida seria mais real e verdadeira. Que o estrelato pesa no quotidiano e altera personalidades… Um rol de disparates. Terminada a conversa, a pior da sua vida inteira, ao regressar ao mundo dos mais in, Ali Babá sentiu que tinha passado um século. Tentou pôr-se a par. Percebeu que a grande loucura do momento era saber tricotar e crochetar, que quem não tinha adotado um rafeiro velho e feio não era gente, que roupa em segunda mão era a nova roupa nova, que o melhor restaurante do mundo era a casa de cada um, que era imperioso ter uma capoeira… Tinham voltado à Idade Média. Pior! Estavam no neolítico. Fabricavam os seus próprios utensílios, desenhavam os seus próprios móveis, cozinhavam os alimentos que cada um produzia em hortas medonhas e deprimente que cultivavam em varandas e terraços… Pobre era o novo rico e Alice Bárbara estava irremediavelmente fora de moda.
Tinha caído do pedestal de influencer. Restava-lhe o estado febril da influenza, a própria. Era o fim de uma religião. Sentiu-se perdida. Sozinha. Abandonada no altar, num planeta giríssimo, cheio de lojas boas, mas desocupado. Sem vida. Era a sua única habitante. Tinha de voltar ao ativo. Reinventar-se. Era passado que queriam? Pois ela seria a last season, the last big thing. Ela seria paleolítica. Era pedra lascada que queriam? Pois seria pedra lascada que teriam. Ela dar-lhes-ia isso e muito mais. Abriu uma nova conta: Aqui Há Baba, Aqui Há Bárbaros!
Moral da História:
Mais vale ter menos, mas bom, do que muito, mas mau. Compre sempre coisas de qualidade. Duram mais tempo e saem mais dificilmente de moda. Vá por nós… cegos.
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