As ondas embatiam na proa do cacilheiro, vinham do mar ou do raio que as parta, e aumentavam aquele nó que se agigantava no seu estômago. A náusea invadia todo o seu corpo num mal-estar que ia e vinha ao ritmo das ondas, ao ritmo da preocupação, com o mesmo compasso do desespero, agitando os vómitos numa sucessão ritmada que piorava a cada investida. Se ao menos conseguisse vomitar. Se conseguisse expelir todos os novelos que se emaranhavam no seu estômago, na sua barriga, mas, principalmente, na sua cabeça. Se tudo desaparecesse de repente. Sob os seus pés abria-se um colossal buraco. Um poço sem fundo onde de bom grado cairia, se pudesse, para não mais dele sair. Para não mais voltar. Não voltar mais à tona. Não voltar mais à toa. Não voltar, apenas. Na barriga agigantavam-se ondas maiores do que as que fustigavam o barco. Um enjoo pegajoso, nojento, que já lhe trazia à boca um amargo indescritível. Talvez esse azedo, cadenciadamente mais frequente no seu palato, e cada vez mais intenso acabasse por ser o interruptor do vómito tão desejado.
O cacilheiro avançava, mas ela mantinha-se presa àquela dor, àquele sofrimento. Sabia bem que não eram as ondas, nem o barco – quase sua segunda casa nas viagens entre casa e trabalho – que a angustiavam, que a enjoavam. Mais do que um estômago revoltado, trazia algo mais na barriga. Recusou-se a obedecer ao impulso que quase levou a mão a aconchegar o baixo-ventre. Um impulso que bem conhecida, das gravidezes anteriores. Resistiria. Não queria compromissos que jamais cumpriria. Não queria que do lado de lá da parede daquele útero, já por várias vezes habitado, se criasse, ilusoriamente que fosse, a sensação de conforto, de abraço, de desejo e tranquilidade. Se ao menos com o vómito saísse tudo de dentro dela. Aquele feto principalmente, que a refeição a digerir era como o outro. Mas aquele ser, aquele projeto de vida. Um rascunho indesejado. Quando falta dinheiro para a comida, falta dinheiro para tudo o resto. Falta de dinheiro para preservativos – uma intolerância à pílula – e ainda a falta de capacidade para evitar as investidas do animal, mais ainda em dias de cólera pura. Mais ainda em dias de absinto. Calava. Consentia. Engravidava. A sombra do buraco aos seus pés crescia e de cinza passou a preta, a negrume total, a breu. Os negros não são todos iguais, tal como não o são os desesperos. Há graduações que aumentam a dor, o desespero.
Em casa, cinco crianças. Os seus anjinhos. Na sua barriga o filho do demónio. Na sua cabeça o nada. Um nada incomensurável. Em nada parecido a dores anteriores. Depressão, disseram-lhe. Os pobres não se podem dar a esses luxos. Depressão não. De pressa. Sim. O buraco parecia amigo. Alice baixou-se. Talvez, assim, de cócoras e cabeça baixa, conseguisse vomitar toda a sua vida. Todos os amargos de boca. Dariam para encher aquele poço sem fim. Eventualmente ainda transbordaria por todo o deck do barco. Daquele e de todos aqueles em que já tinha subido a bordo ao longo de toda a sua vida de travessias do Tejo. Palpou o chão. Sem espanto, verificou que o negro não era apenas sombra. Não era apenas chão. Era a entrada do próprio escuro. Era um buraco de verdade. Enfiou, primeiro, o dedo indicador direito. Depois, a mão toda. O antebraço… Não encontrava fundo. Era fundo. Mesmo fundo. Uma espécie de útero. Quem sabe toda ela não caberia lá dentro. Ela e os seus fardos. Sendo que estes ocupariam um espaço obscenamente maior do que o seu corpo mirrado, com o seu peito descaído e as pernas escanzeladas. No fundo, uma pequena luz, um rosto peludo. Diria que um coelho. Apontando para o mostrador do seu relógio de pulso.
Compreendeu. Era tarde de mais. Tinha de ir. Foi. Caiu no buraco que era, afinal fofo e sedoso. Sempre que julgava que ia embater nas paredes daquele túnel a pique, era protegida por uma imensidão de chapéus. De feltro, talvez. Cartolas, parecia-lhe. Milhares de milhão delas. Muito acolhedor. Sentia, durante a queda, que o seu corpo diminuía de tamanho. Decrescia. Minguava. Mirrava. Desaparecia. Não voltaria a Cacilhas. Não da mesma forma com que de lá tinha saído, madrugada dentro, para apanhar o primeiro barco da manhã. O dos desafortunados, já se vê. No dia seguinte, não foi nada disso que a manchete do Correio da Manhã referiu. Apenas a alusão ao suicídio de uma louca referenciada pela Assistência Social e pela Polícia, onde quase semanalmente apresentava queixa contra um marido abusador, violento, psicótico. Ah, não foram esquecidos os cinco órfãos. Mas ela sabia que eram mais do que isso. Eram todos eles. Os sete.
Moral da história: Não julgue a vida dos outros e jamais a sua cabeça. Por vezes, mais vale viver em delírio do que na realidade. Acorda para a tua vida e para a dos outros também.
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